O que é, de que é feita e por que existe?

Definições lulianas no Livro da Alma Racional (1296)

Ah, Deus piedoso, misericordioso, amoroso e gracioso! Assim como o homem não poderia existir no ser sem o corpo e a alma, Senhor, a alma do homem não poderia existir no ser sem três coisas: a memória, o entendimento e a vontade. RAMON LLULL. Livro da contemplação em Deus (c. 1274), (Livro Segundo, Distinção XXVIII, Cap. CLXIV, 1).

Em 1296, Ramon Llull se encontrava em Roma. O beato viajara para a cidade eterna com o intuito de se encontrar com o papa e suplicar, com todas as suas forças, algumas coisas que considerava úteis para a propagação da fé cristã. Enquanto lá esteve, acompanhou fielmente a corte pontifícia, sentindo “muitas angústias” por não ser escutado. Ele esperava que o papa Bonifácio VIII não duvidaria dignar-se a escutar uma pessoa que, publicamente, suplicava pelo bem público da fé católica. No entanto, vendo que não conseguia obter nada do sumo pontífice, foi embora, desgostoso, para Gênova (RAMON LLULL, Vida coetânia, VIII, 31-32).

Ramon sentia-se angustiado porque acreditava ter recebido de Deus uma Arte para converter os infiéis, mas ninguém o ouvia. Estava então com cerca de sessenta e quatro anos. Sua estada em Roma foi um imenso fracasso. Bonifácio VIII estava então demasiado ocupado com questões políticas entre a Santa Sé e os poderes laicos, especialmente os abusos cometidos pela monarquia francesa (GARCIA-VILLOSLADA, 2003: 575).

Por esses motivos, foram anos de grande depressão para nosso autor, e que se traduziram em livros. Vários livros. Essa era uma das características psicológicas de Ramon Llull: de seus momentos mais depressivos, ele extraía forças para escrever obras. Assim, entre 1295 e 1296, Llull escreveu em Roma nove importantes textos de sua pena: a Super Leitura da Arte Inventiva e da Tábula Geral(III.19), a Leitura Compendiosa da Tábula Geral (III.20), a Petição de Ramon ao papa Bonifácio VIII para a conversão dos infiéis (III.21), o poema Desconsolo (III.22), a Árvore da Ciência (III.23), o Livro da Apóstrofe (III.24), o Livro da Alma Racional (III.25), o Livro da Potência, Objeto e Ato (III.26) e os Provérbios de Ramon (III.27) (BONNER, OS, 1989, vol II: 556-558).

Como se percebe de sua produção, Ramon Llull tratava simultaneamente de vários temas: política, poesia, ciência e filosofia. No entanto, entre todos esses assuntos existia um elo: sua Arte, método de conversão dos infiéis e de busca da verdade que ele acreditava ter recebido de Deus. Nos anos 1295-1296, Llull havia simplificado os princípios de sua Arte para que ela fosse mais bem entendida (os especialistas chamam esse período de sua produção de Etapa ternária – 1290-1308) (BADIA Y BONNER, 1993: 72-73). Na Vida coetânia, autobiografia ditada a um monge da cartuxa de Vauvert, Llull nos informa que tomou a decisão de simplificar sua Arte “por amor da fragilidade do entendimento humano” (RAMON LLULL, Vida coetânia, VIII, 19). O Livro da Alma Racional é, entre outros, fruto dessa fase ternária.

Pretendemos tratar aqui das três perguntas básicas da alma feitas pelo filósofo nessa obra. São elas: 1) o que é a alma, 2) de que ela é feita e 3) porque ela existe? Essas questões eram de grande interesse para os medievais. Como bem observou a Professora Betsey Price, a “abstração”, isto é, o estudo do processo de pensamento do homem, o estudo da alma, desempenhou um importante papel no pensamento medieval. Portanto, esse é um tema fundamental que deve ser pesquisado pelo historiador que investiga o passado em todas as suas formas de expressão e de testemunhos documentais (PRICE, 1996: 241-242).

Nesse aspecto, o estudo da alma, ou melhor, do que os medievais entendiam como “corpo e alma”, faz parte do que posteriormente foi chamado por Kant de antropologia. Para os medievais, as palavras “corpo” e “alma” serviram de base para definir os componentes da pessoa humana, além de motivar a redação de todos os temas sobre o drama da existência humana (SCHMITT, 2002: 253).

I. O que é a alma?

Livro da Alma Racional é dividido em dez partes, e possui a seguinte estrutura:

Livro da Alma Racional (1296)
I. A alma existe?
I.1. Se a alma é racional ou não
I.2. Se a alma foi criada ou gerada
I.3. Se ela é imortal
II. O que é a alma?II.1. O que é a alma em si mesma?
II.2. O que a alma tem em si mesma?
II.3. O que é a alma em outra coisa?
II.4. O que a alma tem em outra coisa?
III. De que é feita a alma?III.1. A alma possui liberdade em si mesma?
III.2. Materialmente a alma é de outra coisa?
III.3. A alma é possuída por outra coisa
IV. Por que a alma existe?IV.1. A busca da existência
IV.2. A busca da agência
V. Qual é a quantidade da alma?

V.1. A quantidade simples

V.2. A quantidade composta
VI. Qual a qualidade da alma?VI.1. A qualidade própria
VI.2. A qualidade apropriada
VII. Sobre o tempoVII.1. O instante e o agora
VII.2. A sucessão
VIII. Sobre o lugarVIII.1. Sobre o colocado
VIII.2. Sobre quem coloca
IX. Sobre o modoIX.1. A forma que a alma tem em si mesma
IX.2. A forma que a alma tem em outra coisa
X. Como a alma é agente ou pacienteX.1. A ação
X.2. A paixão

Ramon estrutura seu texto com base nas quaestiones: perguntas impessoais, respostas também impessoais. Com isso, busca a Deus. E logo em seu Prefácio, Llull faz uma afirmação capital: a alma é substância. A substância é um conceito da metafísica aristotélica (ARISTÓTELES, De anima, II, 1, 412-10) e, mais tarde, agostiniana, e significa “essência necessária”, isto é, aquilo que existe necessariamente. Substância é tudo o que tem estabilidade, constância e autonomia no ser (MONDIN, 2003: 274).

Aristóteles e Agostinho são dois pilares da exposição luliana sobre a alma. Agostinho já dissera: a alma busca a si mesma porque Deus vive nela e é sua vida (AGOSTINHO, Confissões, X, 27). O bispo de Hipona afirmou que todas as criaturas têm impressas em si vestígios da Santíssima Trindade. No caso da alma, para Agostinho, a imagem da Trindade transparece na íntima relação da tríade memória – entendimento – vontade (AGOSTINHO, De trinitate, X, 11-18).

Essa estrutura ternária agostiniana terá grande influência nos escritores medievais e será adotada por Ramon Llull em seus escritos sobre a alma (DOMÍNGUES REBOIRAS, 2000: 123). Por exemplo, em uma passagem de sua novela Félix ou o Livro das Maravilhas (1287-1289), Llull coloca a seguinte resposta do eremita a Félix: “A alma é uma em essência e existe em três coisas diversas que formam seu ser: a memória, o entendimento e a vontade. Sem essas coisas, a alma não poderia ser uma substância” (Fèlix, I, 4).

Como a alma é “substância invisível”, afirma Ramon, muitos homens não têm conhecimento dela, nem sabem usá-la e ordená-la para a finalidade para a qual foi criada, isto é, lembrar, conhecer e amar a Deus (RAMON LLULL, Livro da Alma Racional, Prólogo). Essas três finalidades são uma exata correspondência de base agostiniana com as funções da alma. Llull as designa pelo conceito de “potências ativas criadas”, mais um conceito aristotélico, potência, que significa “capacidade de realizar mudança em outra coisa ou em si mesmo” (ABBAGNANO, 1998: 782) em um fundo agostiniano. Na filosofia de Ramon, essas potências ativas foram ampliadas em sua noção conceitual e receberam o nome de correlativos (GAYÀ, 1979).

Os correlativos lulianos merecem rápida explicação para que possamos compreender melhor sua filosofia. Como Deus é bondade e a bondade se difunde da eternidade por toda a eternidade (conhecida doutrina neoplatônica aceita pelas três religiões do Livro) a Trindade era, para Llull, o resultado da atividade intrínseca das dignidades de Deus (Bondade [B], Grandeza [C], Eternidade [D], Poder [E], Sabedoria [F], Vontade [G], Virtude [H], Verdade [I] e Glória [K]) (RAMON LLULL, Art Breu, 1989: 535-536).

Essa eterna e generosa atividade intrínseca das dignidades de Deus obrava em cada coisa criada, agia no mundo, criando assim uma permanente situação real e ternária: aquele que agia (sujeito), aquele que recebia a ação (objeto) e o próprio ato em si. Llull designou nominalmente essas ações, criando uma terminologia própria e diferenciando os sufixos em cada palavra.

Assim, os atos da bondade de Deus foram chamados de bonificativo (capacidade que a bondade tem de bonificar), bonificável (aquele que pode receber a bondade) e bonificar (o ato da bondade) (COLOM I MATEU, GGL, 1982, vol. I: 252-253); os atos da grandeza de Deus (magnitude) de magnificativo, magnificável e magnificar, e assim por diante. Essa nova terminologia lingüística causou muita estranheza aos contemporâneos de Llull, dificultando o pleno entendimento de sua Arte. Como ele próprio nos diz em seu melancólico poema Desconsolo escrito um ano antes do Livro da Alma Racional:

...se meus livros fortemente o homem estudasse como eu gostaria / mesmo com outro saber, ele não os esqueceria / e conhecido eu seria. Mas eles os lêem como um gato faria / se passasse rapidamente sobre brasas. Assim, ao contrário do que eu queria / não realizam meu negócio. E se alguém lembrasse o que neles havia / entendesse e não duvidasse, eu poderia / com meus livros, colocar o mundo em harmonia. RAMON LLULL. Desconsolo (1295), vv. 258-264.

No Livro da Alma Racional, Llull definiu esses atos correlativos (-ivo, -ável, -ar) como três concretos reais (LAR, Parte I, II, q. 4), ou seja, atos que se inserem na realidade, realidade essa privilegiada e qualificada com apreço pelo filósofo. Para nos atermos à compreensão do homem das potências de sua alma, reproduzimos o quadro de Robert Pring-Mill (1991: 106):

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O quadro acima mostra, na parte dedicada à alma, suas três potências e seus nove correlativos. Llull afirma a necessidade da existência dessas potências da alma (a memória, o entendimento e a vontade) da seguinte forma: caso elas não existissem, a memorabilidade, a inteligibilidade e a amabilidade das criaturas se frustrariam, pois fora de Essência divina, não haveria nenhuma criatura que O objetivasse ou O atingisse (LAR, Parte I, I, 1). Portanto, a existência dessas potências na alma é uma necessidadealgo necessário, outro conceito aristotélico utilizado por Llull – o Estagirita afirmou que o bem, a vida e o ser não poderiam existir sem algumas condições; elas foram chamadas de necessárias; sua causa era a própria necessidade (ARISTÓTELES, Metafísica, V, 5, 1014 b 35).

Portanto, substância espiritual e necessária para o homem, a alma o aproxima de Deus, e faz com que ele sobrepuje sua imaginação, que julga falsamente, e entenda a verdade de maneira transcendental, acima dos falsos juízos da imaginação (LAR, Parte I, I, 4). Llull demonstra que os juízos baseados somente nos sentidos iludem a consciência, e que a inteligência dada pela alma racional é capaz de transcender a percepção sensorial.

Além disso, a alma existe para que o homem possa constranger as naturezas do corpo e ordenar sua vontade para um bom fim, fim que se encontra sempre acima da natureza corporal. Pois caso a alma não existisse, o homem teria sido criado para uma finalidade corporal, e seu próprio entendimento seria essencialmente corpóreo. No entanto, o filósofo catalão diz que afirmar isso é ignorar a experiência, pois muitos homens vêem e ouvem, mas não entendem muitas coisas e,

...pelo contrário, entendem aquelas coisas acima da natureza, como os milagres, a criação e a ressurreição, e outras coisas semelhantes a essas. Além disso, o homem que tem os olhos fechados e não ouve nada, entende ou pode entender. Portanto, o entender é de outra natureza, mais elevada que aquela do corpo, e a chamamos de alma racional (LAR, Parte I, I, 10).

Um corpo sozinho não age, é pura potência material que, para ser movida – isto é, passar da potência ao ato – precisa de um motor. Como bem sabe o maiorquino, um corpo humano sozinho não entende nada, nem corporeamente, pois sem sua forma substancial, a alma, ele não pode operar, e o ato de entender é uma operação da alma. Assim, sem a alma, o homem sequer seria homem, pois tudo o que é privado de sua forma substancial, que lhe imprime o ser, sofre corrupção e muda sua natureza. Logo, um corpo humano sem alma não é homem, mas apenas um corpo que se corrompe.

II. O que é a alma?

Após fazer essas considerações e provar que a alma é criada e imortal (LAR, Parte I, II-III), Llull pergunta: alma, o que és em si mesma? O beato formula então dez respostas que circunscrevem a alma e a definem ainda mais precisamente. Em primeiro lugar, como já disse, a alma é a parte do homem com a qual ele lembra, entende e ama a Deus. Para demonstrar isso, Ramon nos oferece duas analogias utilizando o fogo como metáfora: como o fogo aquece com seu calor, o homem lembra, entende e ama com a alma e pela alma; como o fogo constitui as outras qualidades de aquecimento na pimenta ou em outra medicina mais quente que seca, a alma constitui o corpo à homificação, pois é uma substância espiritual conjunta com a substância corporal que constitui o homem (LAR, Parte II, IV, 1, 2).

Trata-se, como bem disse o Professor Alexander Fidora, de uma definição muito complexa do homem que, para o filósofo alemão, antecipa em séculos a antropologia de Sartre, de Plessner e de outros: a alma prepara o corpo para que o homem “hominize” o mundo inteiro! É a hominização do mundo: como o homem é um ser dinâmico e processual, à medida que se apropria do mundo com seus atos, se faz homem (FIDORA, 2001: 76). Portanto, o homem recebeu uma alma racional e, com ela, conscientemente vive em um processo homificante “...porque é homificável e também para homificar a si mesmo e aos demais seres corporais, sempre e cada vez mais se homificando” (DOMÍNGUES REBOIRAS, 2000: 134).

Ainda sobre as definições da alma, Llull desenvolve outros pontos importantes. A alma é senhora do corpo, pois faz com que o homem distinga as informações dadas pelos sentidos, fazendo-o atingir “a ciência dos sentidos corporais”; como está conjunta ao corpo humano, a alma é a substância que mais participa com as demais criaturas, pois seu corpo a faz participar da influência dos astros do firmamento, dos quatro elementos (fogo, água, terra e ar), das plantas (pois o corpo tem a qualidade vegetativa), dos sentidos e da imaginação (LAR, Parte II, IV, 8).

A teoria medieval do homem como um microcosmo (PRING-MILL, 1991: 53-70), bem como a interdependência do corpo humano com os quatro elementos e suas qualidades (fogo [quente e seco], água [fria e úmida], terra [seca e fria] e ar [quente e úmido]), faziam da alma e do corpo, isto é, do próprio homem, o epicentro do universo. Na concepção medieval, nessa filosofia que sempre buscava a transcendência, o homem tinha um destino universal – e, por isso, nos angustiamos muito quando ouvimos alguém dizer: na Idade Média, o homem não era nada!

Por fim, um último e importante ponto: como a alma é agente e o corpo paciente, Llull atribui à alma, não ao corpo, o movimento da paixão e o hábito viciado (CARRERAS Y ARTAU, 2001: 539-540):

A alma é a substância que ganha virtudes morais ou vícios para si mesma e para o corpo, como a castidade ou a luxúria, pois se a alma espiritual não existisse no homem, não existiriam moralidades, nem de virtudes nem de vícios.

A alma é substância que ganha méritos de bem com virtudes morais e méritos de mal com vícios morais. E como ela é parte do homem, que a move, ela move a si mesma ou move o corpo, e procura naquele movimento a maneira com a qual o homem tenha glória ou tormento (LAR, Parte III, IV, 9-10).

Portanto, é através da alma, para Llull, que o homem adquire virtudes ou vícios. O beato segue a tradição aristotélica e coloca o corpo, “naturalmente bom” como a alma, como uma parte do homem (LAR, Parte I, III, q. 5), ao contrário de Platão, que elevara a alma acima do corpo, colocando este como um invólucro, um túmulo, uma prisão para a alma (PLATÃO, Fedro, 66b).

III. De que é feita a alma?

Substância necessária e constrangedora da natureza corporal, caminho para se chegar à verdade transcendental, fogo que arde o corpo, instrumento de hominização do mundo e caminho para as virtudes ou os vícios, após todas essas definições, o filósofo pergunta: “De existe livremente a alma?” Sua resposta: A alma existe de si mesma por seus simples princípios “...que não são de outros princípios, mas de si mesmos, como a bondade substancial, que não é de outra bondade, pois a alma foi criada e não gerada.” (LAR, Parte III, VIII, 1).

Os simples princípios da alma a que se refere Ramon são os mesmos de Deus, isto é, as dignidades divinas às quais já nos referimos (Bondade, Grandeza, Eternidade, Poder, Sabedoria, Vontade, Virtude, Verdade e Glória). Auto-suficiente, a alma existe de si mesma porque não tem necessidade de ser sustentada por outra criatura, pois assim como é constituída de seus princípios naturais, vive deles, não de outros. Ela existe por razão de duas finalidades: a sua e a do homem. Ela é a forma do corpo e existe de si mesma, para que não se escuse quando peca (LAR, Parte III, VIII, 4-7).

Quando Ramon afirma que a alma é a forma substancial do corpo, está mais uma vez se valendo de um conceito aristotélico (ARISTÓTELES, Metafísica, IV, 1015-11) ou, mais propriamente, da teoria aristotélica do hilemorfismo (de hylê = matéria + morphê = forma), a qual considera a matéria como a raiz da quantidade e a forma, a raiz da qualidade, as quais, na natureza humana, composta de corpo e alma, convergem de modo indissociável. A forma pressupõe a matéria, é razão de ser da coisa, a sua substância. E, como diziam vários escolásticos, a forma é o princípio da operação, e por este motivo um corpo sem alma – ou seja, sem a sua forma substancial – não pode operar. Assim, por ser forma e substância, a alma é a primeira a lembrar, entender e amar a Deus, ato intrínseco de sua natureza.

IV. Por que a alma existe?

Se existe o Sol, convém que exista o dia, se existe o trabalhador, convém que exista o trabalho: se existe a causa, convém que exista o efeito. A alma existe porque é efeito de Deus, que a criou. Nessas duas metáforas lulianas do Livro da Alma Racional, ela é como o dia e o trabalho, e Deus como o Sol e o trabalhador (LAR, Parte IV, XI, 1). A alma é a forma do corpo, e existe pela forma e pela matéria; existe porque tem atos internos próprios e naturais em cada uma de suas três potências (a memória, o entendimento e a vontade): da memória, ela tem a memoratividade (o ato de recordar) e a memorabilidade (o que é lembrado); do entendimento, a intelectividade (o ato de entender) e a inteligibilidade (o que é compreendido), e da vontade, a volitividade (o ato de querer) e a volibilidade (aquilo que é querido) (LAR, Parte IV, XI, 7).

Além de ter esses atos internos próprios, as três potências da alma “são de seus primeiros princípios espirituais”, isto é, para que obrem corretamente, elas recebem a interferência de todas as dignidades. Por exemplo, a memória tem sua capacidade de lembrar oriunda da bondade, da grandeza, da eternidade, etc., o entendimento tem sua intelectividade da bondade, da grandeza, etc., e o mesmo da vontade (LAR, Parte IV, XI, 9). Em outras palavras, as partes constitutivas da alma são ativas, são como Deus, são como a realidade, pois nada está ocioso no mundo (DOMÍNGUES REBOIRAS, 2000: 124).

Mas, acima de tudo, a alma existe para

...lembrar, entender e amar a Deus, pois o mais nobre fim que ela pode ter é contemplar a Deus. Por isso, Deus criou a alma para Si mesmo, para seu mais nobre fim, pois se a tivesse criado principalmente para si mesma, teria cometido um erro a Si mesmo, e a alma teria maior repouso e bem-aventurança contemplando a si mesma, não a Deus, e tal coisa é impossível (LAR, Parte IV, XII, 1).

Além de existir para alcançar a Deus – como todo o mundo criado, “desde os corpos celestes até os animais irracionais” (DOMÍNGUES REBOIRAS, 2000: 129) –, a alma existe para que o homem exista, para que existam a virtudes, o conhecimento, a ciência e as artes mecânicas com as quais o homem hominiza o mundo. E apesar dessa generosidade divina para com a ordenação do universo, a alma pode pecar – até porque não existe pecado involuntário, já que só peca aquele que o faz pela vontade, que é uma das potências da alma. E segundo o beato, se a alma não pudesse pecar, o homem não poderia servir livremente a Deus, não teria o livre-arbítrio, e a justiça divina seria ociosa, o que é impossível (LAR, Parte IV, XII, q. 1).

Para concluir a parte que explica o motivo pelo qual a alma existe, Ramon Llull trata dos órgãos corporais mais aptos às três potências, de acordo com suas compleições e temperamentos. O coração é o órgão da vontade, o cérebro da fronte (cervell del front) o órgão do entendimento, o cérebro posterior (cervell detràs) da memória e, no meio de ambos, a alma move a imaginativa a imaginar os objetos imagináveis (LAR, Parte II, IV, 6).

A argumentação de Ramon sobre a disposição corporal das potências da alma inicia com o coração: fonte do sangue, líquido que pertence à compleição do ar e mais propício à conversão que qualquer outra parte do corpo, a vontade da alma recebe o coração como instrumento, já que toma mais subitamente o objeto no entendimento que na memória (LAR, Parte IV, XII, q. 4).

Por sua vez, para harmonizar a memória e o entendimento da alma no corpo humano, Llull divide o cérebro em três partes. O cérebro da fronte (entre as sobrancelhas) é dado ao entendimento, pois, de todas as potências, o entendimento é a potência mais investigativa. Ao colocar o entendimento no que hoje chamamos de lóbulo frontal, Llull segue a tradição corânica: no Alcorão Sagrado, a fronte é designada como nássiah (topete): “Ignora, acaso, que Deus o observa? Qual! Em verdade, se não se contiver, agarra-lo-emos pelo topete, topete de mentiras e de pecados.” (Surata 96, 14-16).

Hoje, a ciência afirma que essa área do cérebro é a responsável pela motivação das ações do indivíduo, é ela que determina a capacidade de recolher e analisar o conhecimento adquirido, além de selecionar as palavras para exprimir o que se deseja. Assim, essa região é apontada como a responsável pela origem do que é certo ou errado, da verdade ou da mentira. Veja o quadro abaixo:

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InSociedade Beneficente Israelita Brasileira Hospital Albert Einstein

Prosseguindo com a exposição de Ramon Llull no Livro da Alma Racional sobre a disposição corporal das potências da alma, o filósofo afirma que o cérebro posterior é o órgão da memória:

Assim como o entendimento e o fogo convêm por concordância da luz corporal e da luz espiritual, a memória e a terra concordam na conservação corporal e espiritual, pois a terra conserva as espécies corporais e elas retêm a (luz do) Sol e o agente natural que lhes engendra e lhes renova. Além disso, a memória retém e conserva as espécies fantásticas no entendimento. Assim, como retém as espécies corporais no entendimento através da imaginação, a parte posterior do cérebro é dada à memória posterior (LAR, Parte IV, XII, q.6).

Perceba, leitor, que o filósofo associa a potência da memória da alma ao corpo conforme a teoria dos elementos vigente na época, além de também se valer da metáfora da luz (corporal e espiritual) e sua analogia com a luz do fogo para concordar o entendimento – que é investigativo – com a chama (daí a metáfora que utilizamos hoje do conhecimento como uma centelha na mente). O cérebro posterior é hoje chamado de lobo temporal: a ciência médica igualmente defende hoje que a função da memória encontra-se aí armazenada.

Por fim, o centro do cérebro (mijan) é o órgão da imaginação:

Existe um lugar que é mais comum aos sentidos particulares que qualquer outro lugar do corpo, participando com o cérebro anterior e posterior, e no meio está o órgão da imaginação, para que o entendimento possa imaginar as espécies corporais e também a memória. Isso não existiria em tão boa disposição se o órgão da imaginação não participasse com aquele lugar mais comum, conforme dissemos (LAR, Parte IV, XII, q. 7)

V. Conclusão

Ramon Llull concluiu o Livro da Alma Racional em Roma, provavelmente em 1296. No códice M (manuscrito catalão da Biblioteca de Munique, do século XIV), no fim do texto há uma referência que o livro deveria ser dado como presente ao rei Frederico III da Sicília (1272-1337), irmão de Jaime II de Aragão, rei em que Llull depositava esperanças nos últimos anos de sua vida (BADIA y BONNER, 1993: 63).

Seja como for, nas definições da alma expostas no Livro da Alma Racional, Ramon Llull pretendeu demonstrar que a alma era um reflexo da Santíssima Trindade. Essa foi mais uma tentativa sua de acabar com a barreira entre a fé e a razão, questão que dividia os teólogos de seu tempo, especialmente os da Universidade de Paris. Seu racionalismo idealista – ou seu realismo platônico total, como designam Anthony Bonner e Lola Badia (BADIA y BONNER, 1993: 104) – colocava na razão a possibilidade de ter o conhecimento de todas as coisas, mesmo aquelas que, em tese, estão acima da capacidade de compreensão humana, como as operações internas da Santíssima Trindade.

O desejo constante que moveu a sua pena era converter judeus e especialmente muçulmanos, mas no caso do Livro da Alma Racional, o objetivo de sua redação era reformar a cristandade. Como disse em seu Prólogo, “...muitos são os homens que desconhecem a alma, e como não a conhecem, não sabem usá-la, nem ordená-la à finalidade para a qual foi criada, que é lembrar, conhecer e amar a Deus.” Tornar o católico mais firme em sua fé, pois baseado na unidade do saber e da verdade, esse foi o seu objetivo.

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Agradeço ao amigo e especialista Alexander Fidora (Johann Wolfgang Goethe-Universität Frankfurt am Main) pela leitura crítica desse trabalho.

 

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Fontes

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RAMON LLULL. “Art breu”. In: Obres selectes de Ramon Llull (1232-1316). Volum I (ed., introd. i notes de Antoni Bonner). Mallorca: Editorial Moll, 1989, p. 533-599.

 

Bibliografia

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GARCIA-VILLOSLADA, Ricardo. Historia de la Iglesia Católica II. Edad Media (800-1303). Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos (BAC), 2003.

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