A conquista de Córdoba (1236)

Por Fernando III, o Santo (1199-1252)

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Imponente Porta da ampliação feita por Almançor (940-1002) da antiga mesquita de Córdoba.

Para que o vitorioso rei-conquistador pudesse pôr os pés na cidade, ela deveria antes ser “limpa das sujeiras de Maomé”. Assim, logo que os muçulmanos se renderam e lhe entregaram Córdoba, Fernando ordenou que colocassem sua bandeira e uma grande cruz na torre mais alta da magnífica mesquita da cidade. Isso para que o nome de Jesus Cristo fosse louvado e exaltado pelos cristãos, exatamente no mesmo lugar onde era louvado “o nome do excomungado Maomé”.

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Um dos famosos ambientes internos da Mesquita de Córdoba, com seu característico estilo do arco em forma de ferradura vermelho e branco. “É inútil tentar descrever a energia quase cinética de um monumento poderoso como esse; seria como tentar parafrasear um poema.” – MENOCAL, 2004: 68.

Só depois desse significativo gesto é que Fernando III de Leão e Castela (c. 1198-1252), mais tarde cognominado o Santo, entrou na cidade de Córdoba – “que a estória chama de a patrícia de todas as cidades”. Solene, Fernando seguiu à frente de uma grande procissão, em uma perfeita entrada real (LE GOFF, 2002: 396), com todos cantando Te Deum laudamus, no mesmo dia da festa dos apóstolos Pedro e Paulo, 29 de junho. Era sua primeira grande vitória contra os mouros.

I. “Louvado seja Deus! Cheguei a Córdoba, casa das ciências e sede dos reis” (Al-Saqundi)

Córdoba, cidade de jardins e prados, terra de esplendor e beleza. Nela, “os exércitos do Islã foram favorecidos por Allah contra os seguidores da cruz”, é o que nos conta al-Saqundi (Abu-I-Walid al-Saqundi, 1231-?), um dos mais célebres escritores de al-Andaluz, em sua obra Rissla fi fadl al-Andalus (Elogio do Islã espanhol, 1976).

Córdoba, capital do império omíada (756-1031), então sede da maior mesquita do mundo (23.400 m2), era uma cidade esplendorosa, com uma notável biblioteca (além de dezenas de outras, pertencentes a aristocratas), onde acorriam estudantes (especialmente médicos e filósofos, mas também astrônomos, geógrafos e matemáticos) de toda a Península (MIQUEL, 1971: 182).

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Mapa de Córdoba no período omíada. O palácio do califa encontra-se ao lado da mesquita e, curiosamente, o bairro judeu (que também dá nome a uma das portas da cidade) também está ao lado do palácio. Em SÁNCHEZ-ALBORNOZ, 1986, tomo I, p. 451.

Com bairros de pergaminheiros, perfumistas e sapateiros, a cidade contava com poderosos mercados de livros, de escravos e de grãos, e para lá acorriam comerciantes de diferentes partes (SÁNCHEZ-ALBORNOZ, 1986, tomo I: 450). Durante todo o período omíada se desenvolveram notáveis manifestações artísticas.

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Refinadíssima placa de marfim do Período Omíada (provavelmente uma produção cordovesa, final do séc. X). In: Heilbrunn Timeline Art History. O motivo que compõe essa elaborada peça (10,8 x 20,3 cm) é o famoso locus amoenus literário, em que jovens casais apaixonados (no centro da placa e nas duas laterais também ao centro) se encontram furtivamente em um jardim paradisíaco. Cercados de plantas e casais de animais (também enamorados), os jovens, felizes, dão as mãos e se entregam ao amor, em uma curiosa dança, sob um emaranhado de árvores e flores. O tema era caro aos cordoveses: por exemplo, Ibn Hazm (384-456/994-1064), escreveu em 1022 O Colar da Pomba, um dos primeiros tratados medievais sobre o tema do amor.

Além disso, para deixar a capital ainda mais fulgurante, os omíadas ergueram seu palácio nos arredores de Córdoba, em Medina al-Zahra (HOURANI, 1994: 138), outra belíssima construção que mostra a riqueza e a opulência da vida islâmica cordovesa.

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Sítio arqueológico de Medina al-Zahra (مدينة الزهراء - Madīnat al-Zahrā, a cidade de Zahra), cidade palatina localizada a cerca de 5 km de Córdoba (direção oeste, junto do Monte da Desposada). Sua construção começou em 936 d. C., a mando de Abderramão III (primeiro califa de al-Andalus). Foi saqueada em 1010 (por ocasião da Guerra civil [fitna] que causou o fim do Califado).

A respeito desse palácio, o berbere Ibn Idari (sécs. XIII-XIV), em sua História dos reis de al-Andaluz (1306) nos conta que

Em 368 (9 de agosto de 978) Almançor fez construir um palácio chamado al-Zahra, quando sua posição era preponderante, sua chama brilhava em todo o seu esplendor, sua independência era manifesta, e numerosos eram os seus inimigos. Temeroso de arriscar sua vida mais tempo no palácio do príncipe e de se expor a alguma emboscada, tomou precauções (...)

Elegeu como instalação um lugar que fez seu, chamado al-Zahra, notável por seus palácios esplêndidos, situado na ponta de uma região que avançava sobre o grande rio de Córdoba, e ali dispôs e arrumou o que pôde para fazê-lo extraordinário... (IBN IDARI, Bayan al-Mugrib, em SÁNCHEZ-ALBORNOZ, 1986, tomo 2, p. 477-478).

Contudo, a partir do século XI, em um período relativamente curto todo esse esplendor do império omíada e sua capital sofreram três violentos baques. Em primeiro lugar, a fitna (1008-1031) – violenta guerra civil que varreu Córdoba alguns anos após a morte de Almançor (1002), uma das causas do posterior surgimento dos reinos de taifas. Depois, o sítio, o saque e a destruição de parte da cidade pelos muçulmanos berberes (que durou três meses).

Por fim, a conquista de Córdoba em 1070 por al-Mutamid (Muhammad ibn 'Abbad al-Mu'tamid, 1040-1095), rei da taifa de Sevilha (e poeta), fato de graves conseqüências, pois Córdoba nunca mais recuperaria sua condição de capital califal (BENABOUD, 1988: 74).

II. Fernando III (c. 1198-1252)

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Fernando III. Iluminura do Tumbo A da Catedral de Santiago (c. 1129-1255).

Com pouco mais de cinqüenta anos, Fernando está à beira da morte. É o momento da passagem, majestosa mudança de estado, morte que nós hoje perdemos (DUBY, 1988: 10).

Em seu leito, o rei fez vir seu filho, D. Filipe, e outros homens da Igreja. Ordenou que trouxessem uma cruz, e “o santo sacramento do corpo e do sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo”. Quando as relíquias chegaram, mesmo combalido, Fernando saiu da cama, se ajoelhou, tomou a cruz e chorou muito, “com grande contrição”, adorando Cristo, “que nela padecera tantos tormentos por nossos pecados”.

Depois disso, despiu-se; chegava a hora da verdade. Tirou sua roupa real e chamou os seus: Afonso, Frederico, Henrique, Filipe e Manuel, todos filhos de D. Beatriz da Suábia (1202-1235), e também Fernando, Leonor e Luís, filhos de sua segunda esposa, D. Joana D’Aumalle, condessa de Ponthieu (1210-1279), e seus ricos-homens de Castela. Pediu a mão de Afonso, seu primogênito e futuro rei, e lhe deu muitos e sábios conselhos.

Então chegou o momento em que a alma “partiria do corpo”: Fernando sentiu faltar-lhe as forças, alçou as mãos e os olhos ao céu e disse:

Senhor Jesus Cristo, rei dos reis e senhor de toda a terra, Tu deste-me um reino para governar que eu não tinha, e me exaltaste em honra e poder mais do que eu merecia. Agora, Senhor, te entrego o reino que me deste com a melhoria que eu pude fazer e Te peço, por misericórdia, que receba a minha alma em Tua glória. (Crónica Geral de Espanha de 1344, cap. DCCCLVI).

O rei ainda teve tempo de pedir perdão aos homens presentes por qualquer coisa que tivesse feito. Todos o perdoaram. Os clérigos presentes então cantaram Te Deum laudamus, a mesma da entrada triunfal em Córdoba dezesseis anos antes. Ele “inclinou os olhos e deu seu espírito a Deus”.

*

Fernando fora um rei-guerreiro, um rei-conquistador, alçado à glória maior da luta contra o infiel. Filho de Afonso IX de Leão (1171-1230) e D. Berenguela (1180-1246, filha, por sua vez, de Afonso VIII de Castela e neta, por linha materna, de Henrique II da Inglaterra) (JESÚS FUENTE, 2003: 198), Fernando tinha tudo para não ser rei. O casamento de seus pais foi anulado pelo papa Inocêncio III (1198-1216) – Afonso IX era primo de segundo grau de Berenguela; Fernando era o quinto filho de Afonso IX de Leão e, em Castela, o menino Henrique (seu tio, irmão de Berenguela) era o sucessor.

Contudo, uma série de acontecimentos inesperados o alçou à coroa. Em Leão, morreu o primogênito (também Fernando) e o rei Afonso IX estava disposto a deixar a coroa para suas duas filhas, Sancha e Dulce – e, de fato, o fez; em Castela, o herdeiro Henrique morreu ainda criança, em um acidente (caiu uma telha em sua cabeça enquanto brincava com outras crianças), e a coroa passou para Berenguela.

Assim, em um ato de grandes conseqüências políticas, em 1219 a rainha renunciou à coroa de Castela em favor de seu filho:

Depois que todos foram juntos e deram o reino à D. Berenguela, ela rogou-lhes que recebessem seu filho como rei, e eles ficaram muito contentes com isso. Partiram logo com ele para uma igreja de Santa Maria e ali o alçaram como rei. Quando isso aconteceu, ele tinha dezoito anos de idade. E todo o clero cantava Te Deum laudamus (Crónica Geral de Espanha de 1344, cap. DCCCLVI).

Berenguela, que com “suas tetas cheias de virtude lhe deu seu leite” sempre acompanhou Fernando, guiando-o no poder. Ela foi “a sombra de seu filho, e Fernando a necessitava” (JESÚS FUENTE, 2003: 204). Berenguela aconselhou seu filho “sempre nos bons costumes, guardando-o com muito cuidado” (Crónica Geral de Espanha de 1344, cap. DCCCLXXXII).

Fernando e Berenguela conseguiram sufocar a revolta dos condes de Lara, importante família castelhana que se opunha a Fernando – além de conter uma invasão leonesa comandada por seu pai, Afonso IX. Assim pacificaram o reino de Castela. Enquanto isso, Fernando reunia as mais importantes qualidades do bom rei e cavaleiro: a difusão da fé católica e a guerra contra os mouros.

Em uma de suas primeiras “correrias” em terras mouriscas, Fernando reuniu os concelhos de Cuenca, Orto, Alarcos e Amaya e partiu para o coração do reino almôada, “queimando muitas aldeias, matando muitos mouros, e trazendo um grande roubo” (Crónica Geral de Espanha de 1344, cap. DCCCLXXXIII).

Algum tempo depois, partindo de Toledo, o rei chegou a Las Navas de Tolosa, palco da vitória cristã de 1212 sobre os almôadas (COSTA, 2004), e passou a Baeza e Jaén, mais ao sul, no coração do território muçulmano. Nessa impetuosa razia, quatrocentos cavaleiros cristãos fizeram as forças islamitas recuarem de volta às portas de Jaén, quando então morreram cento e oitenta mouros “dentre os mais honrados”, além de dois mil “dos outros”. Nesse momento, a pressão cristã era tamanha que o rei de Baeza pagou a Fernando a soma de oitenta mil maravedis de prata. Além disso, presenteou-o com “cinqüenta cavaleiros dos mais honrados, e cinqüenta e cinco senhoras mui formosas” (Crónica Geral de Espanha de 1344, cap. DCCCLXXXIV).

Essa predestinação divina era percebida pelo rei-conquistador, e ele deveria retribuir publicamente a graça, reforçando e difundindo a fé católica. Assim, além de erigir a catedral de Burgos (1221-1260), Fernando reparou e renovou a de Toledo, “porque Deus lhe dava honra e vitória com tantas boas conquistas contra os mouros” (Crónica Geral de Espanha de 1344, cap. DCCXCIII).

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Imponente fachada dianteira da Catedral de Burgos (iniciada em 1221 e consagrada em 1260 - o que explica sua unidade e coerência artística).

III. A conquista de Córdoba (1236)

Com a morte de seu pai, e pelas hábeis negociações de sua mãe (JESÚS FUENTE, 2003), Fernando conseguiu o trono de Leão em 1230. A partir de então, os dois reinos nunca mais se separaram. Assim, tendo pacificado a revolta nobiliárquica de Castela, anexado Leão e firmado um pacto com Sancho II de Portugal (1209-1248) para a cruzada ibérica (MATTOSO, s/d: 126), Fernando estava pronto para a grande aventura de sua vida.

No início de 1236, alguns cavaleiros fidalgos e almogávares (tanto a cavalo quanto a pé) fizeram uma cavalgada até Córdoba, e capturaram alguns mouros. Os prisioneiros confessaram que a cidade estava desguarnecida e que, mesmo em pleno inverno, não seria difícil tomar um de seus subúrbios (conhecido como AjarquiaAxarquía).

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Detalhe da Iluminura da Cantiga 63 das Cantigas de Santa Maria (Codex Rico, folio 92r). Uma típica cena de combate cavaleiresco entre cristãos e muçulmanos.

O grupo decidiu empreender a escalada de um dos muros à noite. Disfarçados como mouros, rogaram a Deus, à Santa Maria e ao apóstolo Santiago o sucesso daquela arriscada investida.

Liderados por Pedro Ruiz Tafur, Martin Ruiz d’Argot e Domingo Muñoz, o adalid (líder), eles construíram três escadas de madeira para a escalada. Os primeiros a subir foram Álvaro Colodro e Bento de Baños – ambos conhecedores da língua árabe (algarabiados). Com os seus, conseguiram tomar uma das torres, graças à traição de um dos muçulmanos que ali dormia (Estoria de España que mando componer Alfonso el Sábio, 729, § 1046, em SÁNCHEZ-ALBORNOZ, 1986, tomo 2, p. 417).

Durante a noite, eles escalaram a torre. Ao alvorecer, o grupo cristão já controlava todo o subúrbio cordovês. D. Pedro Ruiz Tafur entrou a cavalo pelo portão de Martos, quando então os muçulmanos fugiram para dentro da vila e passaram a lutar contra os invasores.

Acossados, eles decidiram pedir socorro “a seu senhor, o rei Dom Fernando” e a Dom Álvaro Perez de Castro “um dos grandes homens do reino de Castela, poderoso e nobre” (Estoria de España que mando componer Alfonso el Sábio, 729, § 1046, em SÁNCHEZ-ALBORNOZ, 1986, tomo 2, p. 417).

Fernando estava em Benavente (hoje Zamora). Assim que recebeu a notícia, saiu apressado, com cem cavaleiros, e ordenou que avisassem seus vassalos, nas cidades e castelos. Apesar do mau tempo (era inverno e chovia muito), eles deveriam sair até a fronteira, até Córdoba, para ajudar os seus a conquistar a cidade.

Em sua viagem, Fernando parou em Benquerença (entre Salamanca e Coimbra, hoje pequena freguesia portuguesa do concelho de Penamacor), que então pertencia a “um alcaide mouro que era um excelente cavaleiro”. Quando soube que o rei castelhano estava em sua terra, o muçulmano ordenou que colocassem uma tenda negra perto de seu castelo e próxima de uma fonte, para acolhê-lo. Ele recebeu Fernando com todas as honras, dando-lhe “pão e vinho, carne e cevada”. O rei pediu o castelo do mouro, que respondeu em íntimo tom de ironia: “Tu vais agora ganhar Córdoba. Até que tu tenhas concluído isso, não te darei o castelo. Mas se conseguires, eu te darei o castelo e te servirei com tudo o que tenho” (Crónica Geral de Espanha de 1344, cap. DCCCII).

Sua chegada a Córdoba, no início de fevereiro, revigorou o ânimo dos cristãos. Desde janeiro eles estavam encurralados na Ajarquia. No entanto, apesar do número cada vez maior de cavaleiros que acorriam às hostes cristãs, eles ainda não eram páreo para as forças do rei Abetihen (ou Abenhut) – “rei dos mouros de além-mar”.

Nesse ponto de suas narrativas, tanto a Crónica de Espanha de 1344 quanto a Primera Crónica General contam a curiosa estória de um exilado, Dom Lorenzo Suárez, expulso de Castela por D. Fernando, e que agora vivia com o rei muçulmano.

“Com a ajuda de Deus”, D. Lorenzo foi o protagonista decisivo na conquista de Córdoba. Abetihen era muito precavido: apesar de saber que as forças cristãs eram em menor número, ele pediu o conselho de D. Lorenzo, a quem confiava por saber que “queria mal a D. Fernando”. E perguntou: “Lorenzo, o que me aconselhas a fazer a esse respeito?”. Para que pudesse dar um bom conselho, Lorenzo pediu ao rei mouro três homens a cavalo para espionar a hoste do rei castelhano – e ter uma idéia mais precisa do número de combatentes inimigos.

Ao chegar ao acampamento do rei castelhano, D. Lorenzo ordenou aos três cavaleiros que aguardassem, e se infiltrou hoste adentro. Chegou à tenda do rei e pediu para falar-lhe. O rei, estupefato, perguntou:

– Como ousastes vir até mim?
– Senhor, vós me expulsastes para a terra dos mouros por meu mal, e esse mal tornou-se um bem para vós e para mim.
(Estoria de España que mando componer Alfonso el Sábio, 729, § 1046, em SÁNCHEZ-ALBORNOZ, 1986, tomo 2, p. 420).

Disposto a trair Abetihen, Lorenzo recebeu o perdão do rei castelhano, que o aceitou novamente como vassalo. O ex-renegado aconselhou ainda D. Fernando a fazer “muitas fogueiras”, para dar a impressão aos mouros que a hoste real era poderosa.

Ao voltar ao acampamento muçulmano, Lorenzo disse a Abetihen que D. Fernando estava com um forte exército. No dia seguinte, o rei muçulmano recebeu um pedido de socorro do rei de Valência, que estava sendo atacada por Jaime I de Aragão (1208-1276). Abetihen reuniu seu conselho e, após ouvir todas as deliberações – inclusive a de D. Lorenzo – decidiu “lidar com o rei D. Jaime, que tinha um poder menor, e, se o vencesse, poderia depois socorrer Córdoba” (Crónica Geral de Espanha de 1344, cap. DCCCII).

Essa decisão equivocada selou o destino de Córdoba – e de Valência, pois Jaime I conseguiu tomá-la. Para piorar ainda mais a situação dos muçulmanos, antes de socorrer Valência, Abetihen foi assassinado por “um mouro seu privado”, e suas hostes logo depois se dispersaram.

Lorenzo pôde assim voltar com todos os cristãos que trazia consigo para fortalecer o exército de D. Fernando no cerco a Córdoba. Nesse ínterim, vieram companhias de Castela, de Leão, além de forças concelhias. Os cordoveses, vendo o poderio cristão aumentar, e depois de saberem da morte de Abetihen, decidiram entregar a cidade a Fernando, “muito quebrantados em seus corações”, com a condição de poderem sair sãos e salvos.

Assim, em uma impressionante seqüência de acasos fortuitos favoráveis, Fernando conquistou Córdoba.

E quando a fama que a Cidade de Córdoba era dos cristãos ecoou por toda a Espanha, vieram povoadores de todas as partes para ela. Os que vieram para povoá-la foram tantos, que lhes faltaram casas, pois mais foram os moradores que as casas (...) Depois que a cidade de Córdoba foi povoada por cristãos e abastecida de homens de armas (...)

O rei D. Fernando retornou para Toledo, onde estava sua mãe, a rainha D. Berenguela, que o esperava com grande desejo de vê-lo, como aquela que o criara com muito cuidado, o ensinara com muito trabalho, o guardara com grande diligência, e estava muito alegre com sua vinda e pelas muitas bem-aventuranças que Deus sempre lhe dera contra os mouros, especialmente em lhes tomar Córdoba, que era a melhor cidade que eles tinham, e que os reis mouros mais prezavam. (Crónica Geral de Espanha de 1344, cap. DCCCII).

IV. O silêncio das fontes islâmicas sobre a perda de Córdoba

Infelizmente, não há contraposição às duas narrativas cristãs apresentadas, pois nenhuma fonte islâmica narra a perda de Córdoba. Isso é muito intrigante, já que a cidade fora a capital do império omíada. Ademais, as sólidas tradições muçulmanas (historiográfica e poética) peninsulares fazem com que esse silêncio seja ainda mais paradoxal.

Não há nenhum documento do século XIII que trate do tema. Nem mesmo do século XIV: Ibn Idari, em sua já mencionada obra História dos reis de al-Andaluz (1306), não menciona a conquista cristã; tampouco o autor anônimo do texto al-Hulal al-Mawsiyya (séc. XIV). Outro que omite esse acontecimento é Ibn al-Jatib (1313-1375), apesar de ter escrito uma obra histórica no final de sua vida (A’mal al-A’lam).

A única passagem existente – mesmo assim brevíssima e muito posterior – encontra-se no texto Nafh at Tib, do historiador Al-Maqqari (1577-1632): “A ocupação da cidade de Córdoba pelo inimigo – que Allah o destrua – ocorreu no domingo do dia vinte e três de Shawwal do ano 636” (citado em BENABOUD, 1988: 77).

O historiador marroquino M’hammad Benaboud sugere quatro hipóteses para essa intrigante omissão: 1) a historiografia islâmica do século XIII é qualitativa e quantitativamente muito inferior à do século XI; 2) devido à escassez historiográfica do século XIII, os escritores posteriores não tiveram material para comentar os acontecimentos daquele período; 3) os autores medievais consideraram a primeira queda de Córdoba no século XI mais importante que a segunda, e 4) o papel secundário da cidade no momento de sua caída (Sevilha era então mais importante) (BENABOUD, 1988: 75-76).

Quero propor uma quinta possibilidade, mais humana: estupefação e vergonha das elites literárias por uma perda tão significativa e ocorrida de uma forma tão banal. Pois se dermos crédito às narrativas cristãs, a cidade caiu por três fatores conjugados: 1) uma traição de um muçulmano que guardava uma das torres, 2) a equivocada decisão de Abetihen de socorrer Valência e deixar Córdoba indefesa, e 3) a maneira com que ocorreu a rendição dos cordoveses, que não ofereceram nenhuma resistência ou mesmo combate.

V. Conclusão

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Vista de Córdoba (com a ponte romana, do século I, em primeiro plano, e a Mesquita ao fundo).

A surpreendente conquista de Córdoba foi apenas o início de uma notável seqüência de vitórias de Fernando III, que culminaram com a conquista de Sevilha (1248). É muito difícil imaginar o grande impacto que esse acontecimento teve nas mentes de então; talvez o próprio silêncio islâmico seja um indício disso.

Seja como for, a triunfante entrada do rei-conquistador cristão na outrora capital omíada e centro da memória de al-Andaluz (MENOCAL, 2004: 199) foi a definitiva ponta de lança militar que impulsionou o avanço cristão. Esse ímpeto derradeiro, levado adiante por Fernando III, traçou indelevelmente o futuro da Península Ibérica. Isolados a partir de então em Granada, os muçulmanos nunca mais recuperariam seus domínios, nem a outrora glória dos tempos do califado.

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Fontes

AL-SAQUNDI. “Elogio del Islam Español”. In: Andalucía contra Berbería. Reedición de traducciones de Ben Hayyan, Saqundi y Ben Al-Jatib, con um Prólogo por Emilio García Gómez. Barcelona: Publicaciones del Departamento de Lengua y Literatura Árabes, 1976.

Crónica Geral de Espanha de 1344 (ed. crítica de Luís Filipe Lindley Cintra). Lisboa: MCMXC, vol. IV.

SÁNCHEZ-ALBORNOZ, Cláudio. La España Musulmana – según los autores islamitas y cristianos medievales. Madrid: Espasa-Calpe, 1986, 2 tomos.

 

Bibliografia

BENABOUD, M’Hammad. “La caída de Cordoba según las fuentes andalusies”. In: Andalucia entre Oriente y Occidente. Actas del V Coloquio Internacional de Historia Medieval de Andalucia (coord. Emilio Cabrera). Córdoba, 1988, p. 71-77.

COSTA, Ricardo da. “Amor e Crime, Castigo e Redenção na Glória da Cruzada de Reconquista: Afonso VIII de Castela nas batalhas de Alarcos (1195) e Las Navas de Tolosa (1212)”. In: OLIVEIRA, Marco A. M. de (org.). Guerras e Imigrações. Campo Grande: Editora da UFMS, 2004, p. 73-94.

Department of Islamic Art. “The Art of the Umayyad Period in Spain (711-1031 A.D.)”. In: Timeline of Art History. New York: The Metropolitan Museum of Art, 2000.

DUBY, Georges. Guilherme Marechal – ou o melhor cavaleiro do mundo. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1987.

HOURANI, Albert. Uma História dos povos árabes. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

JESÚS FUENTE, María. Reinas medievales en los reinos hispánicos. Madrid: La esfera de los libros, 2003.

LE GOFF, Jacques. “Rei”. In: LE GOFF, Jacques & SCHMITT, Jean-Claude (coord.). Dicionário Temático do Ocidente Medieval II. Bauru, São Paulo; EDUSC, São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2002, p. 395-414.

MATTOSO, José (coord.). História de Portugal – A Monarquia Feudal (1096-1480). Lisboa: Editorial Estampa, s/d.

MENOCAL, Maria Rosa. O ornamento do mundo. Rio de Janeiro: Record, 2004.

MIQUEL, André. O Islame e sua civilização. Lisboa: Edições Cosmos 1971.

 

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Palavras-chave: Córdoba, Fernando III, Reconquista.