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MS. Ashmole 1462. Miscelânea de textos médicos e erbário em latim. Inglaterra (séc. XII, fol. 9v). Na parte superior desse belo documento médico medieval, três pacientes em repouso, deitados; abaixo, duas figuras de pé. Cinco estão despidos, um semi-vestido e outro (abaixo), vestido. Esses sete homens estão marcados com pontos vermelhos, indicando o processo de cauterização ou sangria com sanguessugas. Na Inglaterra o médico era um “sanguessuga”. Os textos ao lado de cada paciente dizem a causa: de cima para baixo, elefantíase, asma, febre terçã e dor de dente. Repare que o que está vestido tem os pontos de cauterização nas orelhas.

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Resumo: O texto apresenta e analisa o Regimento proveitoso contra a pestilência, obra escrita por volta de 1496 em Portugal. A abordagem faz uma contextualização da obra, inserindo-a nas principais teorias vigentes então e nas correntes médicas medievais, baseadas na tradição árabe.

Abstract: This essay presents and analyzes the Regimento proveitoso contra a pestilência, written in Portugal around 1496. The work is situated within the context of the era's main theories and of medieval medical thought, based on the Arab tradicion.

Palavras-chave: Regimento proveitoso contra a pestilência – História da medicina – Idade Média – Portugal medieval.

Keywords: Regimento proveitoso contra a pestilência – History of medicine – Middle Ages – Medieval Portugal.

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Começa-se um bom regimento muito necessário e muito proveitoso aos viventes. E per conservação de suas saúdes e segurança das pestinências. Feito per o reverendíssimo Senhor Dom Raminto, bispo arusiense do reino de Dácia. E traladado de latim em linguagem per o reverendo padre frei Luís de Rás, Mestre em Santa Teologia da Ordem de São Francisco. (fol. a2, linhas 1-8)

Assim inicia o pequeno incunábulo Regimento proveitoso contra a pestilência, publicado em Lisboa provavelmente em 1496 (ROQUE, 1979), escrito originalmente em latim por um bispo da Dácia, traduzido para o português por frei Luís de Rás, provincial da ordem dos franciscanos na capital portuguesa e publicado pelo editor luso-alemão Valentino de Moravia (SILVA, s/d). Dele temos notícias não somente através de suas várias impressões, mas também por cartas pessoais, documentos e ao menos uma tradução.

A natureza do texto inscreve-se na tradição dos regimina, textos medievais de natureza normativa, escritos para advertir sobre a higiene do corpo e sobre a prevenção a enfermidades. Muito embora fossem quase sempre endereçados a algum rei ou grande senhor, o que nos propomos a apresentar dirige-se à coletividade.

À luz de uma análise textual, o Regimento proveitoso se espelha no Regiment de Jaime d´Agramot, no Regimen de epidemia de Sanç de Ruidor e no Regimen contra epidemian de Joannes Jacobi, versão que ora apresentamos transcrita para o português.

Em Portugal, a recorrência de epidemias foi a principal característica desse reino no fim da Idade Média (séculos XIV e XV). Oito moléstias eram consideradas contagiosas no período medieval: peste bubônica, tuberculose, epilepsia, sarna, erisipela, antraz, tracoma e lepra. Acreditava-se que a lepra, por exemplo, se propagasse através do coito. Assim, quando o Regimento proveitoso se refere às pestilências, pode estar sugerindo qualquer uma dessas doenças.

A maior parte dessas epidemias proveio da África e do Oriente – conseqüência funesta da abertura de Portugal para o mundo (CHANDEIGNE, 1992). O intenso deslocamento demográfico, as condições sanitárias deficientes e a baixa imunidade decorrente de algumas carências alimentares (FLANDRIN, 1998) aprofundaram as conseqüências da epidemia em Portugal. Elas sangraram a tal ponto o tecido social que até a primeira metade do século XV a população portuguesa apresentou queda demográfica constante. Por esse motivo, os deputados das Cortes de 1433 (Leiria-Santarém) advertiram ao rei: “Vossos regnos são muito despovorados por as pestelências contínuas que padecem” (SOUZA, s.d.: 342). No mesmo ano da publicação do Regimento proveitoso (c. 1496), Portugal teria sofrido uma dessas pestes de ação bastante prolongada, presente cerca de dezessete anos, de 1480 a 1497 (OLIVEIRA MARQUES, 1987b: 474).

Isso significa que cada português quatrocentista assistiu ainda em vida a duas ou mais epidemias, e, também, que o editor da obra decidiu publicá-la em meio à propagação das pestes. Tal abalo demográfico explica o grande interesse de médicos, curandeiros, boticários e até bruxos para descobrir precauções, remédios e ungüentos que protegessem a população da morte.

Foi nesse contexto social e epidêmico que publicou o Regimento proveitoso contra a pestilência. A obra está dividida em cinco capítulos, todos relacionados a temas pertencentes à tradição médica antiga e medieval: 1) “Dos sinais”; 2) “Das causas da pestilência”; 3) “Dos remédios da pestilência”; 4) “Sobre as conformidades do coração e dos outros membros”; e 5) “Da sangria”.

De todos os capítulos, o primeiro é o mais “medieval” – observe, leitor, que os tempos em História são descontínuos: o antigo e medieval na medicina prolongou-se Renascença adentro, pois os modernos, nesse campo, continuaram a fundir matéria e espírito, corpo e alma ao tratarem das questões da existência (DELUMEAU, 1984: 132). Por esse motivo, o tratado que apresentamos aqui possui conteúdo baseado nos tratados médicos medievais – os quais, por sua vez, baseavam-se nos antigos e na cultura árabe – e não no mundo moderno que se iniciava. O texto que serviu de matriz, o Regimen contra epidemian de Joannes Jacobi, não apresenta o primeiro capítulo.

Nele, o autor do Regimento temerosamente aponta os indícios, as premonições, os avisos divinos que antecediam a dor, a doença, a morte. Ele nos diz que são sete (apesar de descrever somente seis), número considerado universal pelos ocidentais, com significação capital para as mentalidades desse tempo, pois a simbologia medieval (BEAUJOUAN, 2002: 293-303) baseava-se na crença de que tudo pudesse ser conhecido pelo homem (a natureza, o universo) estava associado a um número, já que Deus teria criado o universo segundo proporções bem determinadas para que seus atos fossem compreendidos (“Dispôs tudo com medida, quantidade e peso”, Sabedoria 11, 21).

Sete virtudes, sete vícios (os famosos pecados capitais), sete sacramentos, sete dons do Espírito Santo, sete gozos de Nossa Senhora, sete Artes Liberais, sete planetas, sete notas musicais. Deus criou o mundo em sete dias, logo, sete são as premonições dos céus no Regimento: manhãs chuvosas, escurecimento súbito do dia, moscas no ar (indício que o ar está empeçonhado, venenoso), cometas no céu, relâmpagos e trovoadas e ventos do meio-dia. A Senhora Natureza imperava, e aqueles homens tinham medo dela. Frágeis, perscrutavam o céu em busca de um presságio (COSTA, 2002). Por isso, o cronista conclui a primeira parte afirmando que “quando esses sinais aparecem, é para se temer a grande pestilência, isso caso o Senhor Deus Todo Poderoso não o queira quitar” (fl. a2v, linhas 25ss.).

O segundo capítulo trata das causas da pestilência, das origens ou motivos do sofrimento físico. Está baseado em três princípios: 1) da raiz superior, 2) da raiz inferior e 3) de ambas. Subjazem motivações pitagóricas – a expressão numérica do triângulo, a representação da Santíssima Trindade e a idéia de princípio, meio e fim.

Antes de explicá-las, devemos comentar a analogia com a árvore. Para o Ocidente cristão, era o símbolo judaico-cristão por excelência da vida. Na tradição bíblica, a árvore significa tanto a vida e a morte (Gn 2, 16-17) quanto o conhecimento (Gn 3, 22) e a cura (Ap 22, 1-2). Os medievais utilizavam este símbolo apropriando-se da imagem real da árvore e criando uma árvore-imagem fabricada (GUERRA, 1986: 68). Portanto, no texto, a raiz inferior refere-se a tudo o que ocorre na Terra, com os homens, com a matéria, inclusive tudo aquilo que dizia respeito ao Inferno. Os odores provenientes dos dejetos humanos e de matérias putrefatas provocavam pestilências. Corpos mortos, charcos podres e chafarizes fedorentos trazem a peste (os chafarizes eram numerosos em Lisboa, Santarém, Évora, Porto e Coimbra) (OLIVEIRA MARQUES, 1987b: 479).

Por sua vez, a raiz superior trata de tudo que ocorre nos céus. Os corpos celestes corrompem os espíritos vitais das criaturas viventes. Citando Avicena (980-1037) o cronista afirma que “a má disposição dos céus rapidamente empeçonhenta os corpos”. Avicena, o maior filósofo islâmico da Idade Média, é tão citado na obra porque o Quinto Livro de seu Cânon era um dos cinco livros que, obrigatoriamente, deveriam constar em todo boticário português do século XV, juntamente com a Pandecta (compilação árabe do século XIV), o Mesue (texto árabe do século XI), o Nicolau (Antidotarium, de Nicolau de Myrepso, século XIII) e o Liber Servitoris (OLIVEIRA MARQUES, 1987a: 477). Avicena representa a melhor sistematização do saber médico de origem grega, tanto no plano teórico como no prático, chegando a consolidar uma nomenclatura médica que duraria muito tempo.

O Quinto Livro do Cânon fornece instruções para o preparo de 760 drogas, havendo uma relação direta entre o conteúdo do texto e a vida prática e medicinal de Portugal daquele tempo. A citação a Avicena explica-se pelo contexto da medicina medieval. Nesse período, os árabes dominavam tanto essa área do conhecimento médico que o ideal seria denominá-la de medicina árabe ou islâmica, já que a própria língua árabe era seu meio de expressão (MICHEAU, 1991).

De acordo com crença astrológica da época – considerada científica – os corpos superiores poderiam imprimir nos corpos inferiores a podridão e as chagas. E o ar era o elo condutor. Caso estivesse corrompido pelos astros, “feriria o coração” e agravaria a natureza do corpo sem que a pessoa sentisse nada (fol. a3v, linhas 14-15).

Esse ferimento invisível e de percepção retardada expressava-se na urina. Por isso o Regimento sugeria aos pacientes que lembrassem sempre de dizer a seus médicos a quantas andava a cor de suas urinas (CARRERAS I ARTAU, 1947: 36). O exame da urina tornou-se tão popular que muitos lugares adotaram o urinol como emblema do médico.

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Ademais, as pestes definitivamente são contagiosas: segundo o autor do Regimento proveitoso, os corpos mais predispostos a elas são aqueles por natureza mais quentes e com os poros mais dilatados. Também os mais luxuriosos e que vão tomar “banhos”, são mais propensos à peste. Todos esses corpos, latrinas humanas, cheiram mal, “têm humores e fumos peçonhentos que corrompem o ar” (fol. a4-a4v).

O texto repousa sobre a teoria dos humores. Como a medicina da época era uma medicina total, pois integrava o homem ao universo, ela afirmava haver no corpo humano quatro tipos de líquidos em permanente correspondência com os quatro elementos existentes (fogo, ar, terra e água) e com os astros celestes (os doze signos do Zodíaco). Eram os humores: o sangue (com sua qualidade de úmido), a fleuma (a linfa, o soro, o muco nasal, a saliva, o muco intestinal, com sua qualidade de seco), a bílis (amarela, quente) e a atrabílis (ou bílis negra, secreção do pâncreas, com sua qualidade de fria) (MICHEAU, 1991: 61).

Segundo a doutrina dos humores o bem-estar do corpo dependia desses quatro fluidos corporais (BLACKBURN, 1997: 165). Na Idade Média, essa teoria foi reforçada pela medicina árabe – especialmente por Avicena e Averróis. Em várias combinações com os signos do Zodíaco, que governavam partes específicas do corpo, os humores e as constelações determinariam os graus de calor e umidade, além da proporção de masculinidade e feminilidade de cada pessoa (COSTA, 2002).

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Iluminura com médico instruindo seu aluno a examinar a urina.
Livro III do De corporis aegritudinibus (f. 8r). In: Medieval Illuminated Manuscripts.

E para não piorar as complexas e invisíveis relações entre os homens e o universo, o Regimento sugere constantemente uma precaução: deve-se ficar afastado das multidões nas ruas e do vento sul. Alguém na aglomeração poderia estar “peçonhentado” ou ferido, e o vento sul, por ser “inchado” (isto é, denso) agravava o ouvido e feria o coração (fol. a4v, linhas 4-5).

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Iluminura com médico instruindo seu aluno a examinar a urina.
Livro V do De antidotario (f. 306r). In: Medieval Illuminated Manuscripts.

O terceiro capítulo indica como o indivíduo deve proteger-se da peste. Em primeiro lugar, como ela é um castigo de Deus, deve-se confessar e fazer penitência, atitudes melhores e mais eficientes que as mezinhas – remédios caseiros, ungüentos feitos à base de misturas de ervas. Aqui o texto se abre para a modernidade, pois o estabelecimento da confissão por parte da Igreja foi o primeiro motor propulsor da individualidade moderna (DELUMEAU, 1991). Lado a lado com a confissão e o arrependimento dos pecados, o texto sugere que se mude de casa – daí a conhecida expressão “mudar de ares”.

Buscar ares novos, não infectados e, mais importante de tudo, evitar o coito e toda a luxúria (fol. a5, linhas 16-17). Pecado ignonimioso a Deus, fede como outras coisas que devem ser evitadas: as estrebarias, os corpos mortos e podres, as casas com águas sujas de esgoto.

Prescritivo, o texto sugere que regularmente se acendam fogos nas lareiras, com fumos de boas ervas. Estas podem ser compradas nos boticários (apotecayros; boticairos; boticayros): ervas de losna, hissopo, arruda e artemísia (artamija), combinadas com madeira de aloés nas chamas da casa (o aloés é uma planta medicinal e resinosa). O texto ainda afirma que, embora dêem resultado, esses produtos são muito caros! (fol. a5v, linhas 17-25)

Essa característica herbária da medicina medieval salta aos olhos na passagem seguinte: “pela manhã, logo após se levantar, a pessoa deve comer “[uma folha de] arruda lavada em água limpa e espargida com sal e uma ou duas nozes-moscadas bem limpas. Caso não tenha isso, [que] então coma pão ou uma sopa molhada em vinagre, e que isso seja [feito] principalmente em tempo de nevoeiro e chuvoso” (fol. a6, linhas 15-18). Como todos os tratados médicos medievais, o Regimento nos faz apreciar virtudes ignoradas ao nosso redor: plantas, animais, ervas, madeiras.

Os cuidados com a higiene são destacados em seguida. A casa deve ser regularmente lavada – uma influência da cultura médica muçulmana – especialmente no alto verão, com “vinagre rosado e folhas de vinhas. E também é muito bom amiúde lavar as mãos com água e vinagre e limpar o rosto e depois cheirar as mãos, como é bom, tanto no inverno quanto no verão, cheirar coisas azedas (fol. a6, linhas 23ss).

Observe-se que o vinagre é um tipo de desinfetante, especialmente de bactérias pseudomonas (Pseudomonas aeruginosa). O odor do azedo é bom para a saúde porque desinfeta (não há a palavra ali, mas é esse o sentido). Viajado, o autor do Regimento ainda explica que esteve em Montpellier (Monpilher) – cidade universitária medieval que possuía um dos cursos de medicina mais conceituados de então – curando enfermos de casa em casa por causa de sua pobreza (precisava ganhar algum dinheiro),

“...e então levava comigo uma esponja ou pão ensopado em vinagre, e sempre o punha nos narizes e na boca, porque as coisas azedas e tais cheiros opilam e cerram os poros, os meatos e os caminhos dos humores, e não consentem que entrem as coisas peçonhentas. E assim [eu] escapei de tal pestilência que meus companheiros não podiam crer que eu pudesse viver e escapar. Eu certamente provei todos esses remédios” (fol. a6v, linhas 6-14)

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MS. Ashmole 1462. Miscelânea de textos médicos e erbário em latim. Inglaterra, final do século XII (fols. 15v-16r).
Mais duas páginas do Manuscrito Ashmole 1462. Na iluminura da página à esquerda (15v), uma imensa verminatia. A seguir, em um brilhante fundo azul, um homem segura uma erva e perfura uma serpente com sua espada (possivelmente indicando que o tratamento com aquela erva cura o veneno da serpente). Na página à direita (16r), um cão perverso com uma cabeça azul vai embora da figura de um homem doente (semi-despido) após o ter mordido. O homem está sendo tratado por um médico (repare que tanto nessa iluminura quanto na da imagem 1 os médicos estão de azul). No alto da cena do homem mordido há uma galinha, suspensa no ar. Ela é um augúrio: se seu apetite for bom, o homem se recuperará, caso contrário, poderá morrer. Por fim, na extrema direita da página 16r, uma bela simphoniaca. Em ambos os casos retratados pelas iluminuras dessas páginas, portanto, o livro indica uma erva específica para o tratamento.

O capítulo quatro trata das coisas que confortam o coração e outros membros, e destaca novamente a importância das ervas. É o capítulo que diz respeito ao tratamento propriamente dito, em que o autor prescreve seus remédios para os doentes da pestilência.

As ervas eram o mais barato e acessível à maior parte da população – ao contrário dos condimentos, destinado aos ricos (pimenta, canela, gengibre e noz-moscada), especiarias que fizeram a fortuna dos boticários a partir da segunda metade do século XII (POUCHELLE, 2002: 158).

Para o Regimento, as coisas confortativas são: o açafrão, a cassiafístola, a chantagem (provavelmente o chantão ou chanta, tanchoeira)“e todas as outras ervas endereçadas ao espírito interior” – em outras palavras, folhas que atuavam como antidepressivos. O açafrão, hoje quase desaparecido da Europa, era uma das plantas mais utilizadas na medicina medieval. Seus estigmas de cor escarlate eram utilizados como medicamento.

Mas o uso dessas ervas não adiantaria nada, afirmava o texto, se a pessoa recebesse o “bafo de outrem”, ou se comesse muito, aconselhando-se então ao paciente “vazar o ventre” (isto é, evacuar), e “se o ventre não puder vazar naturalmente, que se tome um cristal” (clister).

A seguir, o Regimento dá sua primeira receita caseira, chamada em Portugal de meezinha – palavra que vem do latim medicina, o que sugere que a arte de curar também nasceu dessas receitas caseiras, passadas de geração a geração nas culturas populares européias:

“Quanto ao teu mantimento, digo que a triaga é muito proveitosa, tanto para os sãos quanto para os enfermos. Toma-se, portanto, duas vezes por dia, com bom vinho claro e aguado ou com água clara de rosas ou [ainda] com cerveja clara, mas não se tome mais triaga que a quantidade de um pichel, e do vinho, água ou cerveja tomarás [a] quantidade de duas colheres (...) e nos mantimentos guarda-te das coisas quentes, assim como a pimenta e os alhos, embora a pimenta purgue o cérebro da fleuma e os outros membros especiais dos humores viscosos. Mas porque ela esquenta muito, e a quentura traz podridão...” (fol. b-bv)

A triaga era um medicamento composto de muitos ingredientes (57 substâncias, incluindo carne de cobras venenosas) e de sabor amargo, especialmente empregado como antídoto para a mordida de qualquer animal venenoso. Mas o mais importante a destacar nessa passagem, além do conhecimento botânico dos medievais, é a preocupação que o texto mostra com o bem-estar do paciente: os sintomas da doença eram entendidos como desregramento interior, uma conseqüência de um estado de espírito caído (PERNOUD, 1996: 88). Por isso a atenção dada às ervas e ao mantimento, isto é, a satisfação do espírito do doente.

Todo o capítulo quatro sugere receitas aos pacientes e indica remédios bons para o espírito. Junto a isso, comidas leves (cozidos e caldos), frutas azedas (especialmente cerejas, romãs, maçãs e pêras), especiarias (gengibre, canela, o aromático cominho e ainda o açafrão) para os ricos, e para os pobres, arrudas e salsas (fol. bv, linhas 25ss). E caso não seja muito pobre, que o doente misture cominho e açafrão com vinagre e tome, pois “tal salsa é muito boa, já que destrói e quita ou tira toda a podridão”.

Concluindo o capítulo, uma agradável lembrança: a “alegria do coração é um grande remédio para a saúde do corpo”; assim, que não se tema a morte, pois “a imaginação faz causa e perigo, mas qualquer [pessoa] com muito prazer e alegria, [que] sempre espere muito viver” (fol. b2, linhas 8-14).

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Miscelânea médica, iluminura anatômica mostrando as veias. Inglaterra, século XIII (MS. Ashmole 399, fol. 18r).
O conhecimento da posição das veias no corpo humano era muito importante para o sucesso da sangria. E embora a Igreja Católica e o Islamismo proibissem a dissecação de cadáveres (os médicos católicos deveriam utilizar porcos para uma dissecação comparativa), os médicos tinham, de fato, esse hábito científico. Atentamos que o historiador nunca deve “literalizar as leis”. Em outras palavras: o simples fato de legislar proibindo alguma prática significa, no mínimo, que os homens faziam isso freqüentemente. Caso contrário, não haveria a necessidade de se tentar coibi-la. No caso da Idade Média, o fracasso da Igreja em conseguir impor as normas decididas em seus concílios é um fato bastante recorrente. In: Bodleian Library.

O último capítulo trata dessa prática comum à medicina desde o mundo antigo. Como toda a terapêutica baseava-se na teoria clássica dos humores (os líquidos corporais), e a enfermidade era entendida não só como um estado espiritual (depressivo) mas também como uma alteração dos humores, o tratamento consistia em restaurar o equilíbrio humoral ou expulsar o humor responsável pelo mal através da sangria (flebotomia), ou por sua evacuação por meio de purgantes. O uso da flebotomia possuía uma justificativa consistente: se havia no sangue um humor enfermo, o remédio mais rápido era erradicá-lo com a sangria.

Por esse princípio, o Regimento sugere uma sangria por mês, caso a idade permita (fol. b2, linhas 16-17). Depois o paciente pode beber um bom vinho ou uma boa cerveja, mas moderadamente. Também enfatiza que não se deve dormir depois de uma sangria. O sono tem “uma quentura intrínseca, e silenciosamente traz a peçonha ao coração e aos outros membros” (fol. b2v, linhas 3-5). O sono ainda é o sinal mais explícito da doença: o homem peçonhentado tem grande desejo de dormir todas as horas, “porque a peçonha intrínseca perturba o espírito vital, de modo que [ele] sempre deseja folgança” (fol. b3, linhas 8-11).

A sangria deve ser feita próxima à região do abscesso (apostema), onde há o pus acumulado: “e se porventura nascer o apostema embaixo do braço direito, sangre-se o homem no meio daquele braço na veia meã” (fol. b3v, linhas 11-13). Ventosas eram utilizadas pelos médicos, especialmente se o abscesso surgisse nos ombros. Caso o apostema estivesse muito desenvolvido, o paciente não deveria temer, pois “o abscesso lança o mal para fora e faz o homem ser muito são”. Além disso, dever-se-iam fazer as mezinhas, os famosos ungüentos caseiros, tema final do Regimento.

O capítulo cinco, sobre as sangrias, indica três receitas de ungüentos. Em uma delas, recomenda:

“Tomarás uma erva que se chama barbajovis e outra que se chama serpilho, que acharás no boticário, e [que] também tome chantagem e siligem – vá ao boticário! Pise tudo muito bem até que vejas que parece sair água ou sumo dessas coisas pisadas. Então, toma aquele sumo, mistura-o com leite de mulher e dá de beber àquele que tiver a apostema, e isso com o estômago [dele] em jejum, porque assim obra melhor no homem” (fol. b4v, linhas 8-14).

Como curandeiros, os médicos medievais conheciam muito bem os efeitos das plantas. Entre as ervas citadas nessa passagem, destaco o serpilho (ou serpão, espécie do gênero Thymus, da família das labiadas), de forte ação anti-séptica, pois tem timol como principal componente de sua essência.

Em outra receita, lê-se: “Quando a apostema aparecer primeiro, tome avelãs, figos passados e arruda, tudo bem pisado: coloque em cima do apostema. Essas coisas bastam para a pestilência” (fol. b4v, linhas 19-22). Tudo isso, “com a ajuda de Nosso Senhor Jesus Cristo, sem o qual não há saúde, e da benta Virgem Maria Sua mãe, seja glória e louvor para sempre. Amém” (fol. b4v, linhas 24-26).

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O Regimento proveitoso contra a pestilência é uma fonte histórica fundamental para a compreensão do passado ibérico e da vida dos homens quinhentistas portugueses. Seu conteúdo, além de ter claras intenções pedagógicas, parece ter tido forte aceitação popular, pois dele conhecem-se versões anônimas em prosa e verso publicadas em várias capitais européias. O texto tem suscitado curiosidade e interesses acadêmicos. Sua difusão foi tão extensa que no século XV estudiosos afirmam terem sido feitas mais de vinte e seis edições, provavelmente com modificações e acréscimos bem ao gosto dos copistas e tradutores.

O texto que publicamos encontra-se na Biblioteca Pública de Évora, em Portugal. Sua leitura é ideal para os historiadores do corpo, dos gestos e das atitudes, das sensações e dos comportamentos, enfim, para o historiador social. Trata-se de uma fonte simples, enxuta e direta, mas, sobretudo, riquíssima para o estudo das sociabilidades humanas. Através dela, o historiador compreende que a existência humana, o estar vivo e o morrer ao longo do tempo variaram enormemente, e que a história social da medicina é um aspecto desse processo no qual percebemos a eterna fragilidade de nossa existência.

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Fonte

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