Extratos de documentos medievais sobre o campesinato (sécs. V-XV)

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Famosa iluminura do Espelho das Virgens (séc. XIII), manuscrito destinado às freiras noviças, que mostra o trabalho no campo, realizado, em sua maior parte, pelas próprias monjas.

Sumário

1. Sermão 13 (para uma paróquia rural), de São Cesário de Arles ( 470-543)
2. (c. 574) Da correção dos rústicos, de São Martinho de Braga ( 520-580)
3. (séc. VII) Etimologias, de Isidoro de Sevilha (c. 570-636)
4. (séc. VIII) Fórmula Turonense
5. (c. 800) Capitular De Villis
6. (séc. IX) Políptico de Saint-Bertin
7, 8 e 9. (c. 830-840) Cartas de Einhard
10. (séc. IX) Políptico de Irmignon
11. (séc. X) Documento da abadia de Cluny
12. (997) Roman de Rou (Romance de Rolão), de Guillaume de Jumièges e Wace
13. (1067) Cartulário da Igreja de Notre-Dame
14, 15. (séc. XI) Os dois homens da cidade e o camponês (de Petrus Alphonsus, nascido em 1062) e Os estudantes e o camponês (autor anônimo)
16, 17 e 18. (c. 1110-1120) De vita sua, do monge Guiberto de Nogent (c. 1053-1125)
19. (1192) Foral de Penacova, Portugal
20. (meados do século XII) Arte de amar
21. (final do século XII) Tratado do Amor Cortês, de André Capelão
22, 23, 24 e 25. (c. 1220-1235) Passagens da obra Dialogus miraculorum, de Cesário de Heisterbach
26. (séc. XIII) Carta do abade de Beaulieu, no Limousin
27. (c. 1255) Crónica anónima de Sahagún primera (autor desconhecido)
28. (1274-1276) O Livro da Contemplação em Deus, de Ramon Llull (1232-1316)
29, 30, 31, 32 e 33. (1288-1289) Passagens da obra Félix ou o Livro das Maravilhas, de Ramon Llull
34. (1295-1296) A Árvore Questional, de Ramon Llull
35, 36, 37, 38, 39, 40 e 41. (séc. XIII-XIV) Sete fabliaux (contos satíricos burgueses) que retratam o camponês
42. (1311) A disputa entre Pedro, o clérigo, e Ramon, o fantástico, de Ramon Llull
43. (1358) Crônicas, de Jean Froissart (c. 1337-1410)
44. (c. 1394) Um camponês inglês e sua família
45. (1462) Capítulos do Projeto de Concórdia entre os camponeses da Catalunha e seus senhores.

Extrato 1

Sermão 13 (para uma paróquia rural), de São Cesário de Arles ( 470-543)

“III. (...) Vede, irmãos, como quem recorre à Igreja em sua doença obtém a saúde do corpo e a remissão dos pecados. Se é possível, pois, encontrar este duplo benefício na Igreja, por que há infelizes que se empenham em causar mal a si mesmos, procurando os mais variados sortilégios: recorrendo a encantadores, a feitiçarias em fontes e árvores, amuletos, charlatães, videntes e adivinhos?

IV. (...) Onde quer que estejais, em casa, em viagem, comendo ou em reuniões, não profira vossa boca palavras torpes e obscenas, e exortai os vizinhos e vossos próximos a que falem sempre o que é bom e belo, e não palavras más ou maledicência. Evitai as danças organizadas nas festas religiosas, com suas canções torpes e obscenas: a língua, com a qual o homem deveria louvar a Deus, é então usada para ferir a si mesmo.

V. E ainda que eu creia que, com a ajuda de Deus e graças a vossos esforços, erradicados estão daqui aqueles desgraçados costumes herdados do paganismo, no entanto, se ainda souberdes de alguém que pratique a torpeza sordidíssima das annicula ou do cervulus,1 repreendei-o severamente para que se arrependa de ter cometido sacrilégio. E, se conhecerdes quem ainda lança clamores à lua nova, exortai-o e mostrai-lhe quão grande é este pecado de ousar confiar-se à proteção da lua - que, simplesmente, por ordem de Deus, esconde-se de tempos em tempos - por meio de seus gritos e imprecações sacrílegas.

E se virdes alguém dirigir votos junto a fontes ou a árvores e ir procurar, como já dissemos, charlatães, videntes e adivinhos, pendurar no próprio pescoço - ou no de outros - amuletos diabólicos, talismãs, ervas ou âmbar, repreendei-o duramente, dizendo que quem cometer estes males perderá a consagração do Batismo.”2

Extrato 2

c. 574Da correção dos rústicos, de São Martinho de Braga (520-580)3

“Ao santíssimo e por mim muito amado irmão em Cristo, Bispo Polêmico, Bispo Martinho.

Recebi a carta de vossa santa caridade, na qual você me escreve que, para o castigo dos rústicos que ainda vivendo na superstição primitiva dos pagãos adoram os demônios em vez de Deus, devo-lhe enviar um certo trabalho, um tanto breve, a respeito da origem dos ídolos e de suas abominações. Mas, como é necessário oferecer-lhe uma breve descrição das coisas desde o início do mundo de modo a satisfazer suas vontades, fui obrigado a tocar a vasta floresta de tempos e atos do passado em um curto compêndio e temperar o alimento para os rústicos com a fala rústica. Então, com a ajuda de Deus, assim deve ter início seu sermão (...)

Agora, o que é que pode ser lamentavelmente dito do erro tolo pelo qual [os rústicos] observam os “dias” das mariposas e dos camundongos e um cristão (se é que pode ser chamado assim) que venera ratos e mariposas em vez de Deus? Pois o pão ou o tecido não é guardado em um baú ou em uma caixa, assim de modo algum eles [os diabos] o pouparão por causa de banquetes especiais a eles ofertados. Mas homens miseráveis fazem predições do futuro inutilmente, como se estando, no início do ano, alimentado e feliz de todas as maneiras, assim será por todo o ano. Todas essas observâncias de pagãos são engendradas por artifício dos demônios (...)”4

Extrato 3

Séc. VIIEtimologias, de Isidoro de Sevilha (c. 570-636)

“Ao rústico damos este nome porque ele trabalha o campo, a terra.”5

Extrato 4

Séc. VIIIFórmula Turonense (Recomendação: ato jurídico no qual um homem livre entrava no patrocínio de alguém)

“Aquele que se recomenda ao poder de um outro. Ao magnífico senhor x, eu, y. Dado que é inteiramente conhecido de todos que eu não tenho com que me sustentar nem com que me vestir, solicitei à vossa piedade – e a vossa vontade concedeu-mo – poder entregar-me ou recomendar-me na vossa maimbour6; o que fiz: pelo que, deste modo, devereis vós ajudar-me e auxiliar-me tanto quanto ao sustento como ao vestir, na medida em que eu puder servir-vos e merecer-vos. E enquanto eu viver vos deverei servir e respeitar como o pode fazer um homem livre, e em todo o tempo em que viver não terei poder para me subtrair ao vosso poder ou maimbour; mas, pelo contrário, deverei ficar todos os dias da minha vida sob o vosso poder ou proteção. Em conseqüência destes fatos, ficou convencionado que, se um de nós quisesse subtrair-se a estas convenções, seria obrigado a pagar ao seu co-contratante a quantia x em soldos, ficando em vigor a convenção. Pelo que pareceu bom que as partes fizessem redigir e confirmar dois diplomas do mesmo teor; o que fizeram.”7

Extrato 5

c. 800 – Capitular De Villis (Sobre o rendimento de uma villa carolíngia)8

“Cap. 62 – Que cada judex faça um relatório anual de todos os nossos rendimentos agrícolas9; um rol do que os nossos boieiros cultivam com os bois e dos mansos que devem lavrar10: um rol dos leitões, das rendas, das obrigações e das multas; da caça apanhada sem licença nas nossas florestas; das várias composições11; dos moinhos, das florestas, dos campos, das pontes e barcos; dos homens livres e das centenas12 que têm obrigações para com o nosso fisco; dos mercados, das vinhas e daqueles que nos devem vinho; do feno, da lenha, varas, tábuas e outras espécies de madeiras; das terras vedadas; dos vegetais, milhete e painço13; da lã, linho e cânhamo14; dos frutos das árvores, das aveleiras, tanto das maiores quanto das menores; das árvores enxertadas de todas as espécies; dos hortos; dos nabos, dos viveiros de peixes; das peles e couros; do mel e cera; da gordura, sebo e sabão; do vinho cozido, hidromel, vinagre, cerveja, vinho novo e velho; do trigo recente e antigo; galinhas e ovos; dos gansos; dos pescadores, ferreiros, armeiros e sapateiros; das arcas e cofres; dos torneios e seleiros; das forjas covas, ou seja, das minas de ferro e outras e das minas de chumbo; dos potros e éguazinhas. Dar-nos-ão conta de tudo isto, descrito separadamente e em ordem, na Natividade do Senhor, a fim de podermos saber o que temos de cada coisa e em que quantidade.”15

Extrato 6

Séc. IXPolíptico de Saint-Bertin16

“Guntberto tem oito bunnuaria e cultiva quatro17, Gerbardo tem três bunnuaria e cultiva uma, Stracfero tem seis bunnuaria e cultiva uma e meia, o chefe da comunidade, Thegen, tem uma casa principal e outros edifícios, cinco bunnuaria de prados, vinte bunnuaria de terra cultivável, cinco bunnuaria de um pequeno bosque e doze escravos; o caballarius Berharius tem um manso, vinte bunnuaria de terra cultivável, cinco de prados, seis de bosque, dois mansos de doze bunnuaria e oito escravos.”18

Extratos 7, 8 e 9

c. 830-840Cartas de Einhard (Eginhard, ou Eginhardo, c. 770-84019, em favor de camponeses)

1. Ao magnífico, honrado e ilustre homem, o gracioso conde Poppon, Eginhardo saúda-o no Senhor. Dois pobres homens refugiaram-se na igreja dos bem-aventurados Marcelino e Pedro, mártires de Cristo, confessando que eram culpados e que tinham sido convictos no roubo em vossa presença, como tendo furtado caça grossa numa floresta senhorial.20 Já pagaram uma parte da composição e devem pagar o resto, mas declaram que não têm com o que fazer, por causa de sua pobreza. Venho, pois, implorar a vossa benevolência, na esperança de que (...) vos digneis tratá-los com toda a indulgência possível (...)

2. Ao nosso querido amigo, o glorioso vicedominus21 Marchrad, Eginhardo, saudação eterna no Senhor. Dois servos de São Martinho, do domínio de Hedabach, de nome Williran e Otbert, refugiaram-se na igreja dos bem-aventurados mártires de Cristo, Marcelino e Pedro, por causa do assassinato cometido pelo seu irmão num companheiro.22 Pedem que lhes seja permitido pagar a composição pelo irmão, a fim de que lhes façam graça dos seus membros. Dirijo-me, pois, à vossa amizade, para que vos digneis, se isso for possível, poupar estes desgraçados pelo amor de Deus e dos santos mártires junto dos quais vieram procurar um refúgio. Desejo que tenhais sempre boa saúde, com a graça do Senhor.

3. Ao nosso mui querido amigo, o glorioso conde Hatton, Eginhardo, saudação eterna no Senhor. Um dos vossos servos, de nome Huno, veio à igreja dos santos mártires Marcelino e Pedro pedir mercê pela falta que cometeu contraindo casamento sem o vosso consentimento, com uma mulher da sua condição que é também vossa escrava.23 Vimos, pois, solicitar a vossa bondade para que em nosso favor useis de indulgência em relação a este homem, se julgais que a sua falta pode ser perdoada. Desejo-vos boa saúde com a graça do Senhor.24

Extrato 10

Séc. IXPolíptico de Irmignon (Passagem de um cadastro das propriedades e rendimentos da abadia de Saint-Germain-des-Prés [Paris], mostrando as obrigações do colono)

“Walafredus, um colonus e mordomo, e sua mulher, uma colona (...) homens de Saint-Germain, têm 2 filhos (...) eles detém 2 mansos livres com 7 bunuaria de terra arável, 6 acres de vinha e 4 de prados. Deve por cada manso uma vaca num ano, um porco no seguinte, 4 denários pelo direito de utilizar a madeira25, 2 módios de vinho pelo direito de utilizar as pastagens26, uma ovelha e um cordeiro. Ele lavra 4 varas para um cereal de inverno27 e 2 varas para um cereal de primavera. Deve corvéias, carretos, trabalho manual, cortes de árvores quando para isso receber ordens, 3 galinhas e 15 ovos (...)”28

Extrato 11

Séc. XDocumento da abadia de Cluny (Encomendação servil com perda de liberdade)

“Eu, Bertério, coloquei a corda no pescoço e me entreguei sob o poder de Alariado e de sua esposa Ermengarda para que desde este dia façais de mim e de minha descendência o que quiserdes, os vossos herdeiros o mesmo que vós, podendo guardar-me, vender-me, dar-me a outros ou manumitir-me, e se eu quiser subtrair-me a vosso serviço podeis deter-me vós mesmo ou vossos enviados, do mesmo modo como o faríeis com vossos restantes escravos originais.”29

Extrato 12

997Roman de Rou (Romance de Rolão), de Guillaume de Jumièges e Wace (Revolta de camponeses na Normandia em 997)

“Os camponeses e os vilões / Os da mata e os da planície / Aos vinte, aos trinta, aos cem / Tiveram muitas reuniões / E espalharam a divisa de seu conselho / “Nosso inimigo é nosso senhor” / E falaram isso em segredo / E muitos juraram entre si / Que jamais, por sua vontade / Teriam senhor ou mediador (...) / Com tais ditos e palavras / E outras ainda mais loucas / Marcaram seu consentimento / E juraram solenemente / Que todos ficariam juntos / E juntos se defenderiam / E elegeram, não sei onde nem quando / Os mais hábeis, os que falavam melhor / Que foram por toda a região / Recolher os juramentos (...) / Raul se exaltou de tal modo / Que não fez qualquer julgamento / Colocou todos tristes e doloridos / De muitos arrancou os dentes / E outros mandou empalar / Arrancou os olhos, cortou os pulsos / A todos mandou assar os jarretes30 / Mesmo que com isso morressem / Outros foram queimados vivos / Ou colocados em chumbo fervente / Assim tratou a todos / Ficaram com aspecto horroroso / Não foram vistos depois disso em lugar nenhum / Onde não fossem reconhecidos / A comuna ficou reduzida a nada / E os vilões se portaram bem / Se retiraram e se demitiram / Daquilo que tinham começado.”31

Extrato 13

1067Cartulário da Igreja de Notre-Dame (Revolta dos servos de Viry contra os cônegos de Notre-Dame de Paris)

“No ano 1067 da Encarnação do Senhor, sob o reinado de Felipe, rei dos francos, durante a vida de Godofredo, bispo de Paris, de Eudes, deão, e de Raul, preboste; durante a vida, igualmente, de Heberto, conde de Vermandois, e de Vuacelino, procurador de Viry, os servos de Viry, revoltando-se contra o preboste e os cônegos de Santa Maria, afirmaram não dever aquilo que seus ancestrais manifestamente pagaram, a saber, a guarda da noite, e poder, além disso, sem a autorização do preboste e dos cônegos, esposar as mulheres que quisessem. Sua oposição levou-nos a participar de uma audiência na qual eles demonstraram que não deviam precisar esperar a autorização dos prebostes e dos cônegos. Mas como queriam, por seus raciocínios, reduzir esse costume a nada, pelos méritos de Maria, a santíssima Mãe de Deus, suas línguas se embaraçaram de tal forma que o que eles haviam avançado, pensando fazer progredir os seus negócios, se voltou para confundi-los e dar plena satisfação aos nossos. Assim confundidos, segundo julgamento dos oficiais emitido conforme a lei, eles nos restituíram o direito de guarda, repondo o deão Eudes a luva esquerda. Pelo direito, eles abandonaram a reivindicação sobre as mulheres estrangeiras: doravante não as desposarão sem a autorização do preboste e dos cônegos”.32

Extratos 14 e 15

(séc. XI) – Os dois homens da cidade e o camponês (de Petrus Alphonsus, nascido em 1062) e Os estudantes e o camponês (autor anônimo)33

Os dois homens da cidade e o camponês   (Petrus Alphonsus)

Conta-se que dois homens da cidade e um camponês faziam juntos a peregrinação a Meca e tomavam as refeições em comum. Quando já estavam próximos de Meca, começou a faltar-lhes comida e só lhes restou um pouco de farinha, suficiente para fazer um pequeno pedaço de pão. Os dois citadinos, vendo isto, disseram entre si: “Temos pouco pão e este nosso companheiro come muito. Convém, portanto, que pensemos em um modo de nos apropriarmos da parte dele para que o pão fique só para nós”.

E combinaram o seguinte: preparar o pão e enquanto este cozinhava todos dormiriam e aquele que em sonhos visse as coisas mais admiráveis, comeria sozinho o pão. Propunham isto manhosamente para enganar o rústico em sua simploriedade. Prepararam a massa, puseram-na ao fogo, deitaram-se e adormeceram. O camponês percebeu o ardil e, enquanto dormiam os companheiros, tomou o pão ainda mal cozido, comeu-o e voltou a deitar-se. Depois, um dos homens da cidade, como que sonolento e espantado, despertou e chamou seu companheiro. Este lhe disse:

– Que tens?

– Tive um sonho maravilhoso: parecia-me que dois anjos abriam as portas do céu e me tomavam e levavam ante Deus.

Disse o outro citadino: “– Mas que admirável teu sonho! E eu sonhei que dois anjos me tomavam e, fazendo uma fenda na terra, levavam-me para o inferno”.

O camponês ouvia tudo isto, mas fingia estar dormindo. Então, os homens da cidade – que queriam enganar e foram enganados – chamaram o camponês para que acordasse. E ele discretamente, como que espantado, respondeu: “– Quem me chama?”

– Nós, teus companheiros.

– Mas vocês já voltaram?

– Como assim: “voltaram”? Se nós não fomos a parte alguma.

– Engraçado, tive a impressão que dois anjos tomaram a um de vocês, abria-lhe a porta do céu e o levava ante Deus. Depois outros dois anjos tomaram o outro e, abrindo a terra, levavam-no ao inferno. Ao ver estas coisas pensei que nenhum dos dois jamais voltaria, levantei-me e comi o pão.

E, assim, aqueles que – engenhosamente – quiseram enganar, saíram enganados. É como diz o provérbio: “Quem tudo quer, tudo perde”.

Os Estudantes e o Camponês - Autor anônimo do século XI (Tradução: Jean Lauand)

ESTUDANTE I – Companheiro!

ESTUDANTE II – Que é?

ESTUDANTE I – A caminho!

ESTUDANTE II – O que você quer fazer?

ESTUDANTE I – Uma peregrinação!

ESTUDANTE II – Quando?

ESTUDANTE I – Já!

ESTUDANTE II – Aonde?

ESTUDANTE I – A um lugar perto daqui.

ESTUDANTE II – Tudo bem!

ESTUDANTE I – Preparar alforges!34

ESTUDANTE II – Pronto!

ESTUDANTE I – Cruz ao ombro!

ESTUDANTE II –  Pronto!

ESTUDANTE I – Bastão na mão!

ESTUDANTE II – Pronto!

ESTUDANTE I – Então, vamos. Tudo certo!

ESTUDANTE II – Tudo certo, uma ova!

ESTUDANTE I – Qual é o problema?

ESTUDANTE II – Falta o dinheiro.

ESTUDANTE I – Quanto você tem na bolsa?

ESTUDANTE II – Tá tudo aqui, ó?

ESTUDANTE I – Mas, não há nada! (Os estudantes se põem a caminho e um camponês se junta à peregrinação)

ESTUDANTE I – É inadmissível! Estamos indo com muita morosidade. Já o crepúsculo se prefigura e precisamos apropinquar-nos da cidade. Vamos! Mais depressa!

ESTUDANTE II – Mas, quem adiantar-se-á para inquirir de alojamento? Urge que algum de nós... (olha para o camponês) ...se disponha a ir na frente.

O CAMPONÊS – Se oceis quisé, eu posso i.

ESTUDANTE I – Assentimos! Sim, precede-nos, vai na frente você, que caminha mais rápido.

O CAMPONÊS – Tá bão... (O camponês vai um pouco à frente)

ESTUDANTE I – Ele vai lá adiante e estamos aqui só nós. Vamos garantir a nossa! Tudo o que temos em comum é uma torta35: dá para dois, mas não para três. Esse caipira comilão vai acabar comendo-a de um só bocado e não sobrará nada para nós. Mas ele é tolo e simplório, podemos enganá-lo facilmente. Ele pode ser bom de apetite para comer, mas, na esperteza, os bons somos nós.

ESTUDANTE II – Boa idéia! Vamos aproximar-nos dele e enganá-lo.

ESTUDANTE I – Camponês! Ó, camponês!

O CAMPONÊS – O sinhô chamô?

ESTUDANTE I – É para saber se está tudo bem.

O CAMPONÊS – Tá tudo bão...

ESTUDANTE I – Avaliemos nossas provisões, o que temos para comer?

ESTUDANTE II – Só essa torta aqui.

ESTUDANTE I  – Mas ela não é grande. Não bastará para nós três.

ESTUDANTE II – É deveras insuficiente.

ESTUDANTE I – Proponho que façamos um trato entre nós.

O CAMPONÊS – Qual?

ESTUDANTE I – O trato é o seguinte: quem tiver o sonho mais bonito, fica com a torta. Vocês concordam?

ESTUDANTE II – Sim!

CAMPONÊS – Sim...

ESTUDANTE I – Bom, então vamos dormir. (Os estudantes adiantam-se um pouco e se põem a dormir)

O CAMPONÊS (pensando em voz alta) – Sei não, esses estudante da cidade vive aprontando. Acho que eles tão querendo é me inganá. Primero é pr'eu i na frente, depois eles é que passa na frente e, agora, vem com essa história de trato. Acho que eles tão quereno é me inganá. Mais mió é eu cumê iscundido a torta, porque eu acho que eles tão querendo é me inganá... [O camponês come a torta]

ESTUDANTE I (acordando) – Ah!, quem me despertou, subtraindo-me a visões edênicas. Perambulava eu por epiciclos e excêntricos, zodíacos e constelações, asteróides e potestades, pela pulcritude dos céus empíreos e sidéreos. Que beleza insuperável: nada mais magnífico! Quem poderia descrever tais maravilhas? Para encurtar a história: eu nem queria mais voltar para a Terra!

ESTUDANTE II – Também a mim usurparam-me onírico espetáculo. Nos braços de Morfeu, percorria múseas mitológicas. Contemplava eu as quatro fúrias: Alecto, Megera, Tisífone e... – como é que é o nome da outra? – Ah!, claro, a quarta era Erínia. E vi Prometeu, torturado pelo abutre; Tântalo no Estige; Íxion, pela roda arrastado; Sísifo e sua pedra. Desfilavam ante mim todas as versões e inversões da Hélade... Ah! Mas por que tentar narrar o inefável? Basta dizer que eu nem queria mais voltar para a Terra!

O CAMPONÊS – Uai! Eu também vi toda essas coisa aí qui ceis tão falano e, como oceis num queria vortá, eu peguei a torta e apropriei pra substância de natureza individuar aqui o gênero universar36: comi tudinho!

Extratos 16, 17 e 18

c. 1110-1120De vita sua, do monge Guiberto de Nogent (c. 1053-1125)37

O castigo divino para os repugnantes camponeses

“Eles foram recebidos em quase todos os lugares com a reverência que mereciam. Mas em uma vila a eles foi recusada admissão pelo padre em sua igreja e pelos camponeses em suas casas. Encontrando duas casas desabitadas, eles guardaram sua bagagem em uma e a usaram para alojamento enquanto a outra era usada para abrigar as santas relíquias. Entretanto, os repugnantes camponeses persistiram em sua obstinada recusa de coisas divinas e os clérigos deixaram a vila no dia seguinte. Assim que partiram, repentinamente e com um terrível estampido de trovão, um relâmpago estourou entre as nuvens e atingiu a vila, reduzindo a cinzas todas as suas casas. E – um maravilhoso sinal do senso de discriminação de Deus! – aquelas duas casas que estavam situadas no meio das outras que estavam em chamas foram poupadas. Deus quis dar um sinal muito claro que se patifes foram afligidos com fogo era por causa do desrespeito que tiveram com a Mãe de Deus.

Em relação ao padre perverso, que simplesmente havia aumentado a crueldade daqueles bárbaros e que era supostamente educado, ele organizou os bens domésticos que pensou terem escapado do fogo divino e veio para a margem do rio (ou do mar, eu não tenho certeza), esperando atravessar. Mas lá, tudo que ele coletou para se mudar para outro lugar foi aniquilado no local por relâmpago. Assim, esse bando selvagem de rústicos que não eram instruídos nos mistérios de Deus foi levado a entender através de seu sofrimento.” (De vita sua, 3, 13)

O camponês e o demônio

Cap. III, 19 – “Nessa mesma província, ao anoitecer de um sábado, um camponês que retornava de seu trabalho havia se sentado sobre a margem de um córrego, descobrindo suas pernas e pés para lavá-los. De repente, do fundo da água na qual suas pernas estavam sendo banhadas, um demônio saiu e agarrou seu pé. Sentindo-se preso, o camponês gritou pedindo ajuda a seus vizinhos. Eles o levaram de volta a sua casa, onde em sua típica maneira rude eles tentaram de todas as formas libertar seus pés. Eles se esforçaram por um longo tempo nessa série inútil de esforços, mas todas as tentativas para livrar o homem foram vãs.

Coisas espirituais somente podem ser contra-atacadas por coisas espirituais. Finalmente, depois que andaram em círculos por um longo tempo, um peregrino uniu-se a eles agarrando os pés acorrentados do homem enquanto observavam e os libertou em segundos. Depois disso, ele desapareceu antes que alguém pudesse perguntar quem ele era.” (De vita sua, 3, 19)

O processo de dois camponeses heréticos da aldeia de Bucy (Bucy-le-Long, cerca de três milhas a leste de Soissons)

Cap. XVII – “Visto que conhecemos os heréticos que esse ímpio conde de Soissons amava38, podemos mencionar certo camponês chamado Clemente, que vivia em Bucy com seu irmão Evrard, uma vila na vizinhança de Soissons. Freqüentemente anunciava-se que ele era um dos líderes de uma heresia. O infame conde costumava perambular dizendo que um homem mais sábio do que esse Clemente não podia ser encontrado em lugar algum. Esse não é o tipo de heresia cujo ensinamento é abertamente defendido pelos seus mantenedores. Pior, ela rasteja clandestinamente como uma serpente e somente se revela através de seus contínuos deslizes.

Laconicamente, era encorajada pelos seus seguidores: eles declaram que a encarnação do filho da Virgem é uma ilusão; rejeitam o batismo de crianças antes da idade da razão, quaisquer que sejam seus padrinhos; invocam em seu próprio discurso a palavra de Deus, que se sucede através de uma longa recitação de palavras; odeiam o mistério que nós cantamos sobre nossos altares e chamam a boca de qualquer padre de boca do inferno. A fim de ocultarem sua heresia de outros, eles sempre recebem nossos sacramentos. Naquele dia, se consideram obrigados a jejuar e não comem mais nada. Não fazem distinção entre os cemitérios de solo sagrado e qualquer outro tipo de solo. Condenam o casamento e a procriação da prole.

De fato, por onde quer que estejam espalhados pelo mundo latino, esses homens podem ser vistos vivendo com mulheres sem tomar o nome de marido ou esposa. Nem mesmo podem-se ver homens e mulheres se confinarem aos mesmos parceiros: homens dormem com outros homens e mulheres com mulheres, pois asseguram que a relação de homens e mulheres é um crime. Eliminam qualquer descendência que brote de suas relações. Eles mantinham seus encontros em galerias sob o solo, em porões escondidos e sem distinção de sexo. Acendiam velas e se apresentavam para exibirem a uma jovem que – e isso está relatado – posicionava-se inclinada tendo suas nádegas expostas para todos verem.

Em breve, as velas se apagavam e eles gritam ‘Caos!’ de todos os lados e todos tinham relações com a primeira pessoa que tinham em suas mãos. Se uma mulher ficasse grávida no processo, voltavam para o mesmo lugar depois que ela tivesse dado à luz. Uma grande fogueira é acesa e aqueles sentados ao redor arremessam o bebê de uma mão para a outra através das chamas, até que a criança esteja morta. Quando o corpo da criança está reduzido a cinzas, fazem pão com elas e uma parte é distribuída a todos, como um tipo de sacramento e, uma vez tomado, ninguém se salva daquela heresia. Se alguém relê a lista de heresias compilada por Agostinho, percebe que ela é muito parecida com a dos maniqueístas.39

Originalmente iniciada por pessoas bem educadas, essa heresia absorveu os camponeses que, alegando estarem absorvendo a vida apostólica, tinham lido os Atos dos Apóstolos e um pouco mais. Então, o bispo Lisiard de Soissons, um homem muito ilustre, intimou-os para o propósito de uma inquirição entre os dois heréticos que mencionamos, diante dele. O bispo começou acusando-os de realizar encontros fora da igreja e com heréticos bem conhecidos por aqueles ao redor deles. Clemente respondeu: ‘Meu senhor, você não leu no Evangelho beati eritis?’ [‘Você deverá ser abençoado?’].40 Como era iletrado, pensou que a palavra eritis significava ‘heréticos’ e, além disso, pensou que ‘heréticos’ era para ser entendido no sentido de ‘herdeiros’, ainda que não de Deus, para ser sincero.

Quando foram interrogados sobre suas crenças, eles responderam da maneira mais cristã e negaram manter tais encontros. Mas como essas pessoas tipicamente negam todas as acusações e, em segredo, seduzem os corações e as mentes de pessoas simples, foram sentenciados para exorcismo ao ordálio da água. Enquanto os preparativos para esse ordálio estavam sendo feitos, o bispo me pediu para tomar em particular as opiniões deles. Quando levantei a questão do batismo de crianças, eles responderam: ‘Quem acredita e é batizado será salvo’.41 Como estava atento que uma boa resposta poderia, nesse caso, ocultar a mais soberba perversidade, perguntei a eles o que pensavam a respeito dos que são batizados de acordo com outra fé, e eles responderam: ‘Por Deus, não nos investigue tão profundamente!’ E para cada uma das questões, acrescentaram: ‘Nós acreditamos em tudo o que você diz.’ Então, eu me lembrei de um daqueles dizeres ao qual todos os priscilianistas costumavam aderir: ‘Faça juramento, perjure, mas não entregue o segredo.’42

Então virei para o bispo e disse: ‘Como as testemunhas que os ouviram professar essa doutrina não estão aqui, levem-nos para o julgamento que foi preparado.’ As testemunhas eram certa dama que Clemente havia enlouquecido durante o ano passado, e um diácono que ouviu Clemente dizer as coisas mais perversas. Então, o bispo celebrou a missa e os heréticos receberam os sacramentos de sua mão assim que ele disse: ‘O corpo e o sangue do Senhor pedem por vocês a prova neste dia.’ Mais tarde, esse bispo mais que sagrado dirigiu-se para as águas com Pedro, o arquidiácono, um homem de fé inabalável que havia rejeitado os pedidos dos heréticos para não serem submetidos ao ordálio. Com muitas lágrimas, o bispo recitou as litanias e procedeu ao exorcismo.

Depois disso, o acusado jurou que nunca havia acreditado ou pensado em coisa contrária à nossa fé. Atirado dentro do tanque de água, Clemente ficou boiando como um pedaço de palha. Vendo isso, toda assembléia foi arrebatada com júbilo. Deve ser acrescentado que esse teste havia arrastado uma multidão de ambos os sexos e que ninguém conseguiu se lembrar de ter visto algo assim. O companheiro de Clemente confessou seu erro, mas sem expressar qualquer remorso. Com seu irmão condenado, ele foi atirado em uma cela. Dois outros heréticos declarados da vila de Dormans43 vieram para o espetáculo e do mesmo modo foram arrastados. Nós então fomos ao Concílio de Beauvais para consultar os bispos sobre o que deveria ser feito. Mas enquanto isso, o povo, cheio de fé e temendo a fraqueza do clero, correu para a prisão, forçou-a e queimou os heréticos em uma grande pira acesa fora da cidade. Assim, o povo de Deus, temendo que esse câncer se espalhasse, fez justiça com suas próprias e zelosas mãos.44

Extrato 19

1192Foral de Penacova, Portugal (A dependência dos habitantes do novo concelho45 [cavaleiros vilãos46] ao senhor local)

“Aquele que lavrar com um jugo dê um moio.47 Aquele que lavrar com dois dê um moio. Aquele que lavrar com mais de dois, de quantos bois forem, dois quarteiros48, um quarteiro de trigo e outro de milho. Aquele que lavrar trigo e milho dê metade de um e metade de outro. Aquele que não houver onde dar jugada de milho, dê a quarta. O cavão que lavrar trigo ou milho ou centeio dê uma teiga do pão que lavrar.49 O peão dê a dízima de seu vinho (...) O peão de Penacova faça no ano uma via e seja tão longa aquela via que possa tornar nesse dia à sua casa; e faça o seu fossado.50 O cavaleiro que houver herdades fora, sejam-lhe livres (...) E o cavaleiro e os seus homens irão no fossado de El-Rei (...) Os cavaleiros e os peões façam cubas e casas no castelo de Penacova ao senhor de Penacova e dessa mesma terra. E quando fizerem as cubas ou as casas, o senhor da terra dará aos que aí lavrarem de comer (...) e o senhor da terra receba o seu relego por três meses51, convém a saber, Janeiro, Fevereiro e Março (...) Dos peixes do mar que trouxerem pelo rio Mondego, dêem a dízima ao senhor da terra até ao mês de Maio (...) Os monteiros que forem a monte, daquele veado que matarem darão ao mordomo o lombo (...) E se alguma coisa por esquecimento ficou que não fosse aqui escrita, ponham-na depois (...)”52

Extrato 20

Meados do século XIIArte de amar

“A vontade de amar que o vilão sente o excita como a uma besta selvagem; ele não pode empregar seu coração em nenhum tipo de cortesia nem em bondade alguma, pelo contrário, ele ama loucamente e sem dissimulação. E o que há não é amor, mas uma espécie de furor quando os vilões resolvem amar. Pois ninguém pode saber amar se não conhecer a maneira de amar do século e seus uso.”53

Extrato 21

Final do século XIITratado do Amor Cortês, de André Capelão (André responde ao amigo Gautier “...como dois amantes podem preservar a integridade de seu amor bem como os meios pelos quais os que não são amados podem libertar-se das flechas que Vênus lhes enterrou no coração.”)

Capítulo XI – Do amor entre rústicos

“Para que não chegues a pensar que o que dissemos antes a respeito do amor entre os plebeus se aplica também aos camponeses, acrescentaremos algumas observações a respeito destes. Afirmamos que é perfeitamente impossível encontrar camponeses que sirvam na corte do Amor, pois eles são naturalmente levados a realizar as obras de Vênus como o cavalo e o mulo54, que são ensinados pelo instinto natural. É que aos camponeses bastam os incessantes trabalhos da terra e os prazeres ininterruptos da lavoura e da charrua.

Mas mesmo que, contrariando a sua natureza, lhes aconteça – raramente, é verdade – ser instigados pelo aguilhão do amor, não convém iniciá-los na arte de amar: seria de se temer que, desejando comportarem-se em oposição às suas disposições inatas, eles abandonassem a cultura das ricas terras que frutificam habitualmente graças a seus esforços, e que estas se tornassem improdutivas para nós. Mas se por acaso o amor das camponesas te atrair, abstém-te de lisonjeá-las com muitos louvores, e, se encontrares ocasião propícia, não hesites em satisfazer teus desejos e possuí-las à força; porque dificilmente poderias vencer o rigor que ostentam a ponto de se confessarem prontas a ceder sem restrições ou permitir que obtenhas os prazeres que delas esperas. Antes de tudo é preciso coagi-las um pouco para curá-las do pudor. No entanto, dizendo isso, não pretendemos incitar-te a amar camponesas; queremos apenas que, se imprudentemente fores levado a amá-las, possas aprender com estes poucos preceitos que atitude adotar.”55

Extratos 22, 23, 24 e 25

c. 1220-1235 – Passagens da obra Dialogus miraculorum, de Cesário de Heisterbach

O camponês e o diabo

“Um camponês agonizava; um diabo ameaçava enfiar-lhe na boca uma estaca inflamada. Conhecendo o seu pecado, o camponês se virava para cá e para lá, mas o diabo não parava de assombrá-lo com sua estaca. Ele tinha plantado uma estaca da mesma forma e da mesma grossura que tinha em seu campo no de um honesto cavaleiro da mesma aldeia, para ganhar parte de sua propriedade. Mandou os seus até esse cavaleiro, prometendo restituir-lhe o que havia tomado e implorando-lhe para perdoá-lo. O cavaleiro lhes disse: ‘Não perdoarei: que ele seja bem torturado.’ De novo o camponês se viu aterrorizado, como da primeira vez; de novo enviou os seus, mas não obteve o perdão. Uma terceira vez seus mensageiros, banhados em lágrimas, foram até o cavaleiro, dizendo: ‘Nós lhe suplicamos, senhor, em nome de Deus, perdoe esse infeliz, pois ele não pode morrer e não lhe é permitido viver.’ O cavaleiro respondeu: ‘Estou bem vingado: eu perdôo.’ Nesse momento cessou toda a angústia diabólica.”

O ódio entre as duas linhagens de camponeses

“Na diocese de Colônia, um ódio mortal separava duas linhagens de camponeses. Cada qual tinha por chefe um camponês influente, orgulhoso, que sempre fomentava novos conflitos, instigando-os e impedindo qualquer acordo. Quis o céu que eles morressem no mesmo dia. E como fossem da mesma paróquia, pela vontade de Deus, que queria fazer conhecer através deles quão ruim é a discórdia, os dois cadáveres foram colocados na mesma cova. Coisa admirável e inaudita: todos os que ali se encontravam viram os dois corpos voltarem as costas para o outro, entrechocando-se impetuosamente com a cabeça, com os pés, com as costas, como cavalos indomados. Um deles foi retirado a fim de ser enterrado em outra cova. E, por causa da rixa entre os dois mortos, a paz voltou a habitar entre os vivos.”

O cavaleiro e o camponês

“Havia em Saxe um cavaleiro chamado Ludolfo. Ele era um tirano. Um dia, quando cavalgava pela estrada trajando roupas novas e escarlates, encontrou um camponês conduzindo sua carroça. O movimento das rodas sujou de lama a roupa do orgulhoso cavaleiro que, fora de si, puxou da espada e cortou um dos pés do homem.”

O camponês e a pedra

“Um camponês chamado Henrique estava à beira da morte: ele viu uma pedra grande e ardente suspensa no ar acima dele. Doente, queimado pelo calor dessa pedra, ele clamou com voz horrível: ‘O fogo desta pedra acima de minha cabeça me devora’. Chamaram um padre que o confessou, mas em vão; o padre então lhe disse: ‘Lembras de ter feito mal a alguém com essa pedra?’ Forçando a memória, o camponês disse: ‘Lembro-me: para aumentar meus campos, desloquei essa pedra para além dos limites.’”56

Extrato 26

Séc. XIIICarta do abade de Beaulieu, no Limousin (Rendas e serviços dos camponeses)

“...Os camponeses devem entregar ao vigário no tempo da colheita duas gavelas por cada quatro de terra.57 E as darão segundo a lei tal como é costume, segundo o salário dos ceifadores, a mesma coisa com relação ao feno. Devem entregar por cada quarto de terra o peso que um homem pode levar normalmente desde a casa do lavrador à do vigário sem utilizar-se de artimanhas. Esta renda pagar-se-á desde São Martinho até o jejum. Quanto à mistura de trigo e centeio que devem abonar os camponeses, segundo o censo, é a seguinte: dois sectários por quarto, três medidas de aveia e um quarto de cevada ou mistura de trigo e centeio. E se não quiserem entregar a mistura de uma só vez, ao entregá-la acrescentarão à quantidade indicada uma medida cheia e não rasa de cevada, acrescentarão uma medida colmada58 e de mistura de trigo e centeio em medida rasa.

Sobre o feudo do juiz, o vigário não tem jurisdição nem poder de embargo: nem tampouco o vigário tem jurisdição nem o juiz poder de embargo sobre o feudo do despenseiro, nem do cozinheiro, guarda-bosques, pescador, coletor de censos, nem sobre os bosques senhoriais. Os homens do território de São Pedro não se casarão com mulheres de fora, enquanto possam encontrar no domínio mulheres com as quais possam casar legalmente. As mulheres ficarão igualmente sujeitas a esta norma. E se o juiz ou o vigário tivessem infringido esta lei por qualquer razão, paguem ao abade ou ao preboste a multa determinada pela lei que é de 60 soldos. E se o camponês tivesse agido sem o consentimento deles pagará segundo a lei, e o homem ou mulher voltarão para a sua terra, sem recorrer a enganos.”59

Extrato 27

c. 1255Crónica anónima de Sahagún primera (autor desconhecido) (Revolta dos camponeses contra o senhorio do abade do mosteiro de Sahagun)

“Nesse tempo se juntaram todos os rústicos e lavradores, ou gente pequena, e fizeram uma conjuração contra seus senhores para que nenhum deles desse aos seus senhores o serviço por causa dessa conjuração chamada de “A Irmandade”; e pelos mercados e vilas os pregoeiros andavam pregando a altas vozes: “saibam todos que em tal e em tal lugar, em tal dia assinalado se juntará “A Irmandade”, e quem faltasse e não viesse sua casa seria derrubada.

Então eles se levantaram como bestas feras, fazendo grandes reuniões contra seus senhores e maiores, e contra seus vigários, mordomos e feitores, pelos vales e colinas, perseguindo-os ou afugentando-os, rompendo e quebrando os palácios dos reis, as casas dos nobres, as igrejas dos bispos, as granjas e obediências dos abades, e assim gastando o pão, o vinho e todas as coisas necessárias à manutenção, matando os judeus que eram culpados; além disso, negavam as taxas, tributos e trabalhos a seus senhores, e se porventura alguns mandavam, logo o matavam; e se algum dos nobres fizesse um favor ou ajuda, desejavam que este fosse seu rei e senhor; e se alguma vez parecia que cometia um excesso, ordenavam que dessem a seus senhores somente o cultivo, negando e tirando-lhes todas as outras coisas.

Um dia o abade foi a uma planície da vila chamada Grajal, onde estava reunida a dita irmandade, e como se queixou a muitos deles que os moradores da vila de Sant Andres se negavam a fazer o cultivo devido a ele, aqueles rústicos ali reunidos, com grande ímpeto e ruído quiseram matá-lo. O abade sentiu o perigo, fugiu de seu ayuntamiento60 e foi para as portas da vila, quando os burgueses fecharam as portas. Então, como os ditos rústicos o seguiram para prendê-lo, ele foi se refugiar na cidade de Leon, e dali foi para o mosteiro de Nogal, e por três meses continuou fugindo”.61

Extrato 28

1274-1276O Livro da Contemplação em Deus, de Ramon Llull (1232-1316) (obra confessional dirigida a Deus)

Cap. CXXI – Como se deve olhar o que fazem os lavradores62

1.    Oh, Deus amoroso! De Vós seja conhecida toda a altura, toda a grandeza e toda a honra como livre Senhor. Bendito sejais Vós, pois vemos que os lavradores lavram a terra e a maduram para que dê fruto; e vemos, Senhor, que a terra que é mais bem lavrada e pensada é aquela que melhor dá fruto. Assim, se a terra, que é coisa morta, sem entendimento e sem razão, dá fruto onde é mais bem pensada e lavrada, da mesma forma a alma humana deixa dar fruto se o corpo é obediente e submetido às Suas virtudes.

2.    Glorioso Rei da glória, assim como os lavradores restituem a saúde à terra e a maduram para semear nela a semente, da mesma forma vemos que Vós, Senhor, tendes semelhantes homens pobres diante da presença de homens ricos para que os ricos dividam suas riquezas com os pobres, pois aquelas riquezas dão frutos e se duplicam para os homens ricos.

3.    Portanto, bendito sejais Vós, Senhor Deus, pois assim como haveis dado muitas e diferentes sementes aos lavradores para que semeiem a terra, da mesma forma haveis dado aos homens ricos muitas e diferentes riquezas para que eles possam dar e dividi-las com os homens pobres que, pelo Vosso amor, desejam ser pobres e adquiri-las dos homens ricos.

4.    Santo Senhor, poderoso, no qual está toda a nossa salvação e a nossa saúde. Vemos que os lavradores percebem que conforme o tempo do ano convém semear, e então semeiam; e vemos, Senhor, que conforme convém o tempo de secar o trigo e reunir os frutos, eles secam e reúnem. Mas disso muitos homens fazem totalmente o contrário, pois não esperam nem o tempo, nem a maturidade para fazerem suas obras, e mal iniciam, já esperam ter o fruto, e quando poderiam receber e colher o fruto, não sabem reunir nem receber.

5.    Assim como o lavrador seria louco e néscio se sempre que semeasse a semente quisesse logo ter o fruto e não desejasse esperar o tempo em que o fruto pode frutificar, assim vejo, Senhor, que existem muitos homens néscios e tolos nesse mundo, pois mal começam algum feito logo desejam a coisa chegar ao seu fim, e não querem esperar o que convém ao tempo e à hora que a finalidade pode chegar ao seu término. Assim, por causa desse tal desordenamento que existe em nós, muitos feitos são perturbados e destruídos, porque o homem apressa muito o seu tempo.

6.    Senhor, vemos que aqueles que são lavradores sábios diferenciam o tempo do tempo, o lugar do lugar, e a semente da semente, pois de acordo com o tipo de semente convém que sejam diferentes os lugares e os tempos. Mas os homens mundanos fazem o contrário disso, pois não esperam o tempo, nem diferenciam um lugar de outro, nem uma pessoa de outra. Por isso, quase tudo o que fazem é feito vilmente, malvadamente e falsamente.

7.    Serenidade e altura, paternidade e senhoria sejam conhecidas em Vós, Senhor Deus, que dais exemplo nas obras que os lavradores fazem, pois assim como os lavradores separam o trigo e o limpam para que as más ervas não matem nem destruam os grãos, da mesma forma nós, Senhor, se fôssemos homens sábios limparíamos nosso corpo de todos os vícios e pecados, para que a alma não morresse pelos pecados e pudesse crescer e se multiplicar nas obras das virtudes.

8.    Senhor justo, vemos que quando os lavradores secam o trigo, o batem, e após baterem-no, o ventilam para que o vento separe a palha do grão; vemos também que eles estocam o trigo em seus celeiros e depósitos subterrâneos e deixam a palha de fora. Assim, tudo isso é semelhança e demonstração para nós, que no dia da morte neste século, que é vento, a alma sairá do corpo, e então Vós, Senhor, tomareis as almas dos homens justos e colocareis em Vossa glória, e as almas dos homens pecadores, que não são dignos de estarem na glória, serão deixadas para serem atormentadas no fogo perdurável.63

9.    Senhor liberal, nós vemos que quando os sábios lavradores colhem seu trigo, o estocam em seus depósitos subterrâneos conforme a necessidade anual de comer e de semear. Mas muitos homens fazem o contrário disso, Senhor, pois sempre que colhem seus frutos e sua colheita que Vós haveis dado, colocam tudo a perder e os destroem, e quando chega o inverno e os frutos encarecem, eles têm que procurá-los e comprá-los.

10. Paciente Senhor, amoroso, sábio acima de todos os sábios, bom acima de todos os bons. Nós vemos que os lavradores podam as vinhas e as árvores para que elas durem mais e dêem mais frutos. Tudo isso, Senhor, é exemplo para nós, para que quando o corpo estiver com superfluidade da natureza e com muito desejo de ter o movimento de pecar, que nós mortifiquemos nossa carne com jejuns, com aflições e com orações para que não tenhamos o movimento ao pecado.

11. Senhor, vemos que os hortelãos e os lavradores adubam e maduram a terra com fezes, que é coisa feia, fétida e suja. Assim, quem é sábio neste mundo falso e enganador, cheio de fedor, de luxúria, de carne e de ossos fedorentos e cheios de vermes, pode encontrar e receber a glória celestial, que é glória muito gloriosa e muito abundante de todos os bens e de todos os cumprimentos.

12.  Senhor, vemos que os lavradores sabem ter conhecimento das terras e quais árvores e sementes são convenientes a elas conforme suas propriedades e natureza. Mas vemos que existem muitos homens malvados neste mundo que não sabem ter conhecimento de Vossa bondade nem daquelas coisas que vêem de Vós em gratidão e em prazer. E isso é uma grande loucura e uma grande estupidez, que o homem saiba conhecer qual terra é boa ou má, mas não deseje ter conhecimento de Vossa bondade.

13.  Ah, Senhor sábio acima de todas as sabedorias! Ah, Senhor poderoso acima de todos os poderes! Nós vemos que quando os lavradores precisam muito de chuva, sempre recorrem a Vós, que lhes dá tanta chuva quanto eles necessitam; e depois, quando Vós haveis dado muita chuva, eles sempre pedem que Vós façais cessar a chuva e lhes dê belo tempo. E ainda vemos, Senhor, que quando Vós não fazeis de sua maneira, eles sempre mentem e ficam irados com Vós.

14.  Senhor, isso me parece coisa muito injuriosa, pois assim como os lavradores agradecem quando Vós dais chuva ou sol, eles deveriam Vos agradecer por não receber chuva ou sol, já que louvam e bendizem quando obrais com justiça em nós ao dar-lhes chuva quando pedem, como louvam e bendizem quando obrais misericórdia em nós ao dar o que vos pedem, pois tanto sois bom por obra da justiça quanto por obra da misericórdia.

15.  A melhor e mais proveitosa arte que nós vemos neste mundo, Senhor, é aquela dos lavradores, pois todos os homens deste mundo vivem com os lavradores, em nenhuma arte existe tão pouco engano e falsidade como na agricultura, nenhum homem confia tanto sua arte em Vós como os lavradores, e nenhuma arte, Senhor, está tão freqüentemente demonstrada Vossa grande justiça, Vossa grande misericórdia e Vosso grande poder quanto no ofício dos lavradores.

16.  Oh, Senhor Deus, que dais gozo, suspiros e amores a Vossos servidores, e aos olhos daqueles dais lágrimas e prantos!64 Nós vemos que os lavradores aram, cavam, trabalham e sofrem; e vemos, Senhor, que do trabalho e do maltrato que os lavradores sofrem, os reis, os barões e os homens ricos têm felicidade, remédio, deleite e descanso. E quanto mais os príncipes e os homens ricos têm deleites e alegrias, vemos que os lavradores mais têm males e sofrimentos pelas grandes injúrias que recebem dos príncipes, dos cavaleiros e dos homens que vivem de seu duro trabalho.

17.  Em todo o mundo, Senhor, vemos que não há arte e ofício tão necessário aos homens como a arte dos lavradores; pois se os lavradores não existissem, nenhum homem viveria. Assim, como os lavradores são tão proveitosos e necessários para a vida do homem, é uma grande maravilha para mim que os lavradores sejam os mais aviltados, os mais injuriados e menosprezados homens de todo o mundo.

18.  Senhor, todos os homens, todas as aves e todas as bestas fazem mal aos lavradores, porque os reis e os cavaleiros os roubam, os forçam e os colocam em guerra, quando os fazem morrer e perder tudo o que têm, cortam e destroem seus grãos, suas vinhas e suas plantas, queimam e destroem suas casas; e os ladrões e os homens falsos os roubam e os enganam e as aves e as bestas quebram seus grãos e comem seu bestiário. De todas as maneiras vemos que os lavradores são injuriados, escarnecidos e maltratados.

19.  Senhor honrado, Senhor amado, Senhor desejado em todos os bons pensamentos, em todos os bons desejos e em todas as forças. Nós vemos que quando os lavradores têm um mau ano e suas colheitas são perdidas, todos os outros ofícios e mesteres valem menos e estragam, e quando os lavradores têm bom tempo e bom ano, todos os outros ofícios e mesteres valem mais. Assim, Senhor, já que através deles todas as outras artes e os outros ofícios são melhorados ou desvalorizados, como todas as gentes podem ser contrárias e inimigas dos lavradores? E porque eles são menosprezados por todas as gentes?

20.  Ah, Senhor Jesus Cristo! Bendito sejais Vós e tudo que é de Vós, pois assim como a arte da agricultura é mais aviltada e afrontada que qualquer outra arte, da mesma forma, Senhor, Vossa dolorosa Paixão e Vossa angustiosa morte foram a morte mais aviltada e desonrada que qualquer outra morte. E assim como a arte dos lavradores é a mais proveitosa arte para a vida temporal, a Santa Paixão que Vós suportastes na cruz foi mais proveitosa para a vida celestial que qualquer outra paixão ou morte.

21.  Senhor, os lavradores são tão amantes da paz e do bem que não vejo nenhum homem em todo o mundo que tenha tão grande desejo de paz quanto os lavradores. E eles têm maior desejo de paz que qualquer homem porque sofrem mais na guerra que qualquer outro homem. Assim, Senhor, como os lavradores desejam paz, grande desconhecimento e vilania fazem todos aqueles que os colocam na guerra e não os deixam ter paz.

22.  A Vós, Senhor, seja dada e conhecida glória e louvor, e nobreza e honra por todos os tempos, pois haveis dado os lavradores para que através deles o corpo humano possa ter vida, e haveis dado homens sábios e homens religiosos para que sejam ocasião da alma humana receber a vida em glória, por sua sabedoria, sua prece e seu bom exemplo.

23.  Ah, Senhor sábio e amoroso! Assim como a vida corporal se estraga e se destrói quando os lavradores param e, por sua negligência, não desejam cultivar os frutos para que se possa viver, vejo, Senhor, que a vida da alma adoece e se estraga com o fim das preces, dos bons exemplos e dos bons costumes.

24.  Senhor, se os lavradores têm seus pensamentos e seu coração na terra, não é nenhuma maravilha que na terra vivam e ajudem a todos nós. O que é uma maravilha são os malvados prelados, religiosos e outros homens que são designados para pregar e castigar os pobres para que a alma viva e eles tenham seu coração na terra para que o corpo viva. Pois assim como os lavradores têm seu coração em seu ofício, os beneficiados da Santa Igreja e os religiosos deveriam ter seu coração naquele ofício que Vós haveis encarregado.

25.  Senhor, verdadeiro Deus, que sois amado e desejado no coração dos homens justos e dos bem-aventurados religiosos. Não vejo nenhum homem, Senhor, que tenha tanto trabalho na terra quanto os lavradores, pois eles todos os dias lutam com ela, lavram-na, mexem-na para cá e para lá e não a deixam estar em paz ou em descanso.

26.  Se os lavradores, Senhor, tivessem paciência em sua arte e não fossem homens invejosos, seriam os melhores homens de todo o mundo. Mas por causa das grandes injustiças que os homens lhe fazem, e por razão do grande menosprezo das gentes, são quase todos cheios de má-vontade e impaciência, e por causa da grande pobreza e carência que suportam, são quase todos cheios de inveja e cobiça.

27.  Ah Senhor! Como são bem-aventurados aqueles lavradores que têm paciência, que não são invejosos, que não têm má-vontade e são verdadeiros em todas as suas obras, pois assim como os lavradores são mais propícios de serem impacientes e invejosos que quaisquer outros homens, têm mais mérito se conseguem reprimir a inveja e ter paciência.

28.  Benigno Senhor, onde está toda a bondade, toda a santidade, toda a virtude e todo o fim. O melhor lavrador que eu vejo, Senhor, sois Vós, que com Vosso corpo glorioso e com Vosso precioso sangue haveis restaurado os corpos e as almas de todos aqueles que amam a Vossa Paixão.

29.  Os lavradores retiram as más ervas dos campos, das vinhas e das hortas, arando, cavando e limpando. Mas Vós, Senhor, limpais a nós com o derramamento de Vosso sangue e as feridas de Vossa carne, com o pranto, as lágrimas, as dores profundas e a morte angustiante.

30.  Como Vós, Senhor Deus, sois um lavrador tão bem-aventurado e piedoso, e como o vosso servidor e o vosso submetido é tão sujo e tão cheio de más ervas, peço a Vós, Senhor, que neste mundo derramou o precioso sangue e as lágrimas amorosas, que limpe o Vosso servidor de seus pecados e de suas pesadas culpas, para que dê glória e louvor de seu Senhor Deus.65

Extratos 29, 30, 31, 32 e 33

1288-1289 – Passagens da obra Félix ou o Livro das Maravilhas, de Ramon Llull (1232-1316) (Novela alegórica)66

Cap. 42 – Da batalha do Leopardo e a Onça

“Um rico camponês desejava honraria e deu sua filha como mulher a um cavaleiro que amava a riqueza do camponês. A honraria converteu-se em riqueza, e a riqueza não pôde ter tão grande poder no camponês para torná-lo honrado, mas a honraria do cavaleiro tirou a riqueza do camponês de tal maneira que ele ficou pobre e sem honra e o cavaleiro rico e honrado. Naquele momento o camponês disse ao cavaleiro que a intimidade entre o cavaleiro e o camponês fez o camponês estar em trabalho e pobreza e o cavaleiro em honra. Assim, disse o Boi, a intimidade do Boi com o Leão resultará na morte do Boi e na satisfação do Leão.”67

Cap. 66 – Da Justiça e da Injúria

“Um rei tinha condenado à morte um camponês que havia morto outro camponês. Aquele rei, após muito tempo, foi à caça e por acaso foi depois albergar na casa do filho do camponês que condenara à morte. Quando estava na casa do camponês e deitou-se em seu leito, o camponês teve vontade de matá-lo porque ele tinha mandado enforcar seu pai. Estando o camponês em tal consideração, relembrou a justiça pela qual o rei havia punido seu pai e pensou que desejava matar o rei por causa da injúria. Após ter pensado isso, disse para si mesmo estas palavras: ‘Injúria, estais excessivamente multiplicada no mundo e afrontando a justiça. Ao menos para fazer honra à justiça em alguma coisa, queira ser justa com o rei, que é meu senhor, e que enforcou meu pai com a justiça. Faço isso para honrar a vós, justiça, e para diminuir a injúria’. Enquanto o rei adormecia, pensou que talvez o camponês desejasse matá-lo, mas a justiça o ajudava, e ao adormecer fez uma promessa à justiça: se ela o ajudasse e impedisse o camponês de matá-lo, ele jamais lhe faria um ultraje ou falta.”

Cap. 73 – Da Humildade e do Orgulho

“Era uma vez um camponês que tinha uma bela mulher que era de linhagem nobre. Aquele camponês amava muito sua mulher, a vestia bem, a fazia estar ociosa e dava-lhe o melhor de comer, mais que para si. A mulher do camponês, por se ver bela, por ser de linhagem nobre e vendo que o camponês a honrava mais que a si mesmo, era orgulhosa e menosprezava seu marido, pelo qual menosprezo caiu no pecado da luxúria. O camponês se maravilhou muito por sua mulher ser tão orgulhosa. E maravilhou-se de como ela era mais orgulhosa quanto mais ele a amava e honrava.”

Cap. 74 – Da Continência e da Inveja

“O eremita disse a Félix que havia um camponês pobre que tinha uma vinha próxima do campo de um cavaleiro que era muito rico e poderoso: ‘Aquele camponês tinha inveja do campo daquele cavaleiro e o cavaleiro tinha inveja da vinha do camponês. Aconteceu de ambos irem se confessar com um freire, e cada um confessou seu pecado. O freire deu maior penitência ao camponês que ao cavaleiro, porque o cavaleiro opunha-se à inveja mais fortemente que o camponês, pois não desejava usar de seu poder contra o camponês, já que poderia tomar a vinha se assim o desejasse.’”

Cap. 92 – Da Honra e da Desonra

“Aconteceu em uma cidade que um homem, filho de um pobre camponês, foi eleito bispo. Seu bispado era muito honrado e ele se tornou muito rico. O bispo, tanto quanto podia, honrava seu pai, sua mãe, e todos os seus parentes, mas não lhes dava nada porque tinha prazer com o fato de serem pobres. Todos aqueles do bispado se maravilhavam com o bispo, pois ele não tinha vergonha de honrar pessoas tão vis como seu pai e sua mãe, pelo contrário, honrava-os sem lhes dar nada nem os tornava ricos-homens. Aconteceu que um arcebispo que fazia todo o contrário disso foi hóspede daquele bispo e ouviu sua fama, isto é, que ele não enriquecia seus parentes e os honrava. O arcebispo repreendeu o bispo por não enriquecer seus parentes e porque os fazia andarem pobremente vestidos diante si. O bispo respondeu ao arcebispo com estas palavras: ‘Riquezas são perigosas quando vêem para o homem vil e de vil linhagem, e o mesmo se segue da honraria.68 Assim, eu honro meus parentes porque me humilham e mostram minha vil linhagem, pois a humildade é amável a mim na pobreza de meus parentes. E assim como honro meus parentes em minha honraria, da mesma forma Deus honra a mim em Sua honraria’”.69

Extrato 34

1295-1296 – A Árvore Questional, de Ramon Llull (1232-1316) (Um dos capítulos da obra enciclopédica Árvore da Ciência, com perguntas e respostas acerca do conteúdo da obra)70

Questão 158: Ramon, como nenhuma arte mecânica é mais necessária que a agrícola, porque o camponês é menos honrado que qualquer outro mecânico?
Solução: Conforme o corpo natural, a utilidade pública é mais amável que a específica. Por isso, atenta contra a natureza aquele que não faz honramento ao camponês e faz ao mestre que constrói a torre ou o navio.

Questão 159: Ramon, em qual arte existe mais filosofia?
Solução: Conforme a experiência, nenhum homem sabe tanto de filosofia quanto os camponeses.

Questão 160: Ramon, quais homens têm maior esperança nas artes mecânicas?
Solução: Nenhum mecânico tem maior esperança que o camponês, que semeia o grão na terra e cava a vinha.71

Extratos 35, 36, 37, 38, 39, 40 e 41

Séc. XIII-XIV – Sete fabliaux (contos satíricos burgueses) que retratam cruelmente o camponês72

O escroto negro

Senhoras, em vossa presença eu quero dizer diante de todos o motivo pelo qual vim à corte. Já se vão sete anos que sou casada com um aldeão, que nunca conheci a fundo atém ontem à noite, quando descobri, pela primeira vez, o motivo pelo qual não posso mais ficar com ele, nem permanecer em sua companhia. Dai fé a meu testemunho: meu marido tem o membro mais preto que o ferro e o escroto mais negro que a túnica de um monge ou de um padre; e é hirsuto73 como a pele de um urso, e nem sequer a mais velha bolsa de um usurário parece mais estufada que o seu saco. O que vos conto é a pura verdade como não saberia contar melhor.74

Do vilão de Bailleul, de Jean de Boves

Se um fabliau pode ser verdadeiro, então aconteceu, diz meu mestre, que um vilão morava em Bailleul.75 Cultivava o trigo e a terra e não era usurário nem cambista. Um dia, na hora do almoço, ele veio para casa muito esfaimado. Era grande e terrível e mau e feio de cara. Sua mulher não se ocupava dele por que era tolo e mau, e ela amava o capelão.

Assim, os dois, a mulher e o padre, tinham planejado passar o dia juntos. Ela havia feito seus preparativos. O vinho já estava no barrilete76 e ela também mandara cozer o capão. E o bolo, creio eu, estava coberto com uma toalhinha. E eis que chega o vilão, bocejando de fome e de fadiga. Ela corre ao seu encontro e lhe abre o portão. Porém não ligou para sua vinda. Teria preferido receber o outro. Diz então, para enganá-lo, como quem, não tendo outro recurso, gostasse mais dele enterrado do que morto:

–    Senhor, que Deus me santifique, como vos vejo combalido e pálido! Não tendes mais que os ossos e o couro.

–    Erme, estou morrendo de tanta fome – responde ele. – As almôndegas estão cozidas?

–    Por certo estais morrendo, não tenho a menor dúvida. Nunca ouvireis dizer verdade maior. Deitai depressa, pois estais morrendo. Ai, isso é mau para mim, pobre miserável! Depois de vós, não cuido em viver, pois que me deixais. Senhor, como estais vos afastando! Morrereis daqui a pouco.

–    Zombais de mim, dona Erme? – torna ele. – Entretanto estou ouvindo muito bem nossas vacas mugirem. Não creio que vá morrer. Em vez disso eu poderia viver bem mais.

–    Senhor, a morte que vos entontece torna-vos pálido e vos ensombrasse o animo, tanto que já não há em vós mais que a sombra. Daqui a pouco ela tocará vosso coração.

–    Deitai-me então, bela irmã77, se estou tão mal – responde o vilão.

Ela se afaina – não poderia ser mais rápida – em o enganar com suas patranhas. Fez para ele uma cama num canto à parte, uma cama de palha picada e restolho, com lençóis de cânhamo grosseiro. Depois despe-o e deita-o. Fechou-lhe os olhos e a boca. Então se deixa cair sobre o corpo.

–    Irmão – diz ela –, estás morto. Que Deus tenha piedade de tua alma. Que fará tua infeliz mulher, que se matará de tristeza?

O vilão jaz sobre o lençol, o tempo todo acreditando-se morto. E a outra vai ao encontro do padre, que era muito astuto e ardiloso. Coloca-o a par da história com o vilão e conta sobre a tolice dele. Ambos rejubilaram por ter acontecido assim. Voltaram os dois juntos tramando o seu prazer. Assim que o padre cruzou a porta, começa a ler os salmos e a mulher põe-se retorcer as mãos. Mas essa dona Erme mal consegue fingir, e desiste antes que uma só lágrima lhe caia do olho. O padre, por sua vez, encurta o ofício. Não se preocupava em encomendar sua alma. O padre puxou a mulher pelo pulso. Vão para um cantinho à parte. Ele despiu-a e desarrumou-a. Sobre a palha recém-cortada ambos se engalfinharam, ele em cima, ela embaixo. O vilão, que estava coberto com o lençol mortuário, viu tudo, pois tinha os olhos abertos. Por isso viu muito bem a palha se mexer e viu o capelão se mover. Sabia que era o capelão.

–    Ai! Ai! – disse o vilão para o padre. – Filho de uma puta suja, se eu não estivesse morto, certamente vos arrependeríeis de a ter agarrado. Jamais um homem seria tão bem batido como vós, senhor padre.

–    Amigo, é bem possível – responde este. – Ficai sabendo que se estivésseis vivo, eu teria vindo a contragosto enquanto vossa alma estivesse no corpo. Porém, como estais morto, preciso aproveitar. Ficai quieto. Fechai os olhos. Eles não devem mais permanecer abertos.

Com isso o vilão tornou a fechar os olhos e calou-se novamente. E o padre obteve seu prazer sem medo e sem temor. Não sei declarar-vos se eles o enterraram pela manha, mas o fabliau vos diz no final: Louco seja chamado aquele / Que crê mais na mulher do que nele. Explicit du Vilain de Bailleul.78

O vilão e o camundongo

Em seguida, vou contar-vos a aventura de um camponês tolo que acabara de tomar mulher. Ele ignorava tudo, não sabia o que podiam ser as delícias de ter uma mulher nos braços, pois nunca havia experimentado. Mas a recém-casada já tinha descoberto tudo o que os homens sabem fazer, pois para dizer a verdade, o padre fazia com ela sua vontade quando a desejava e lhe apetecia, até o dia em que ela casou.

Nesse dia o padre lhe disse:

–    Doce amiga, se vos aprouver, quero ver-vos antes que o vilão toque em vós.

E ela respondeu:

–    De bom grado, senhor. Não ouso vos esconder aqui, mas apressai-vos quando souberdes que está na hora. Então vinde depressa, antes que meu marido se faça homem, pois eu não gostaria de ficar sem vossa benção.

Assim o plano foi combinado. Depois disso, o vilão não tardou a vir deitar. Mas a mulher pouco se importava com ele, com seu contentamento e seu prazer. Ele a toma nos braços e aperta-a com toda força, pois é tudo que sabe fazer, de forma que ela se vê achatada sob seu peso. Defende-se o melhor que pode e pergunta:

–    Mas o que estais querendo fazer?

–    Quero erguer meu pau e depois vos foderei, se puder e se conseguir achar vossa cona.79

–    Minha cona? – diz mais que depressa a mulher. – Não achareis minha cona.

–    Onde ela está? Não a oculteis de mim!

–    Senhor, pois que quereis saber, direi onde ela está, por minh’alma. Está escondida ao pé do leito de minha mãe, onde a deixei esta manhã.

–    Vou buscá-la, por São Martinho!80

Sem mais delongas, ele vai correndo buscar a cona. Mas o burgo onde nasceu sua mulher fica numa comuna situada a mais de uma légua. Enquanto o camponês ia em busca da cona, o capelão deitou em seu leito com prazer e delícia e ali fez tudo o que lhe aprazia.

Mas ainda não terminei de contar-vos como o vilão foi logrado. Ninguém nunca viu homem mais tolo. Quando chegou à casa da mãe de sua mulher, disse-lhe:

–    Minha cara senhora, vossa filha mandou-me aqui para buscar sua cona, que ela escondeu junto de vosso leito, segundo me contou.

A mulher refletiu um pouco e depois que a filha o enganava para lhe pregar uma peça. Então ela vai até o quarto e encontra uma cesta cheia de retalhos. Não importa como pretendesse usá-los, agora os recorta.

–    Esta cesta vai servir.

Então ela pegou a cesta. Mas no meio dos trapos havia se escondido, e tão bem que se enrolara todo... um camundongo. Sim, é isso mesmo... um camundongo. A mãe entrega-lhe o pacote e ele prontamente enfia-o embaixo do casaco e tão logo pode escapa dali para refazer caminho. Chegando à charneca, diz uma cousa bastante espantosa:

–    Por São Paulo – diz ele –, não sei se a cona de minha mulher está dormindo ou acordada, mas, por São Vol, eu bem que a foderia antes de voltar para casa, se não temesse que ela me fuja campo afora. Sim! Mesmo assim vou fodê-la, para saber se é verdade ou não o que dizem: que cona é um bicho mui macio e suave.

Com essas palavras, a cabeça de seu pau se levanta ereta como uma lança e se enfia por entre os panos e começa a escarafunchar. O camundongo pula da cesta e foge lá para o meio dos campos. O camponês corre atrás com quantas pernas tem, pois acredita que ele vai fazer uma bobagem. E vai dizendo consigo:

–    Meu Deus! Um bichinho tão bonito! Creio que inda não foi desmamado, pois nasceu há pouco tempo. Posso ver que é bem pequeno. Recomendo-o ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo. Na verdade, creio que a cona tem medo de meu pau. Sim, pelos olhos de Deus! Quando deparou com sua cara toda vermelha e preta, ela ficou com medo. Ai de mim! Cada vez mais percebo que na certa sentiu medo. Se morrer, será uma grande perda. Santa Maria! Se cair na vala, vai se afogar e estará perdida. Molhou toda a barriga, as costas e os lados. Pára aí! Oh, senhor Deus! Pára! O que será de mim se ela morrer?

O camponês retorce as mãos por aquele camundongo que berra e negaceia. Quem o visse fazer beicinho e morder as bochechas olhando o vilão se lembraria da careta zombeteira do macaco.81 Inutilmente o vilão grita:

–    Cona bonita, cona gentil, voltai depressa! Dou minha palavra de que não mais vos tocarei antes de estarmos em casa e de vos ter entregado à minha mulher. Se pelo menos eu conseguir vos livrar do orvalho! Serei motivo de chacota para todo mundo se souberem que me fugistes. Ai de mim! Acabareis vos afogando nesse orvalho. Vinde, entrai em minha luva, eu vos colocarei aqui em meu peito.

Assim ele se fatiga em vão. Por mais que chame, ela não retorna, e desaparece no capim rasteiro. O camponês fica triste e pensativo, põe-se a caminho e continua sem parar até chegar à sua casa. Sem uma só palavra, sem explicação, sentou num banco e começou a tirar as roupas. Ficai sabendo que ele não estava nada alegre. Sua mulher pergunta:

–    Caro senhor, o que há? Não ouço uma só palavra. Não estais contente? Não estais bem?

–    Eu não, senhora – responde o vilão, que continua a se calçar e a se despir.

Ela ergue a coberta e abre espaço. O vilão joga-se ao seu lado, deita e vira-lhe as costas. Não fala mais que um monge votado ao silêncio, e permanece assim, estirado. Ela o viu mudo e silencioso e perguntou:

–    Senhor, então não trouxestes minha cona?

–    Eu... não, senhora, não, senhora... não. Foi uma desgraça ter ido buscá-la, pois lá fora ela me caiu por terra e agora se afogou nos prados.

–    Ah! – torna a mulher. – Estais zombando de mim!

–    Por certo que não, senhora. Não estou brincando.

Então ela o toma nos braços.

–    Senhor – diz ela –, não vos atormenteis. Sem dúvida ela sentiu medo de vós, pois não vos conhecia. Penso que deveis haver feito algo que a desagradou. Se a tivésseis nas mãos neste momento, que faríeis com ela? Dizei-me.

–    Eu a foderia, por minha fé! Eu lhe daria uma de furar o olho, por todo o desgosto que me causou.

A mulher responde na mesma hora:

–    Senhor, ela agora está aqui, no meio das minhas pernas. Mas, como voltou às vossas mãos tão mansa e docilmente, eu não queria, por Santo Etampes, que ela fosse infeliz.82

O vilão estende a mão, agarra-a e diz:

–    Está na minha mão!

–    Prendei-a bem com as duas mãos, para que não fuja – diz a mulher. – E não receeis que vos morda. Segurai-a bem para que não vos escape.

–    É mesmo – diz ele –, acho que nosso gato, Deus nos livre, certamente a comeria se a encontrasse. Então ele começa a acariciá-la e sente que está toda molhada.

–    Coitada! Está ainda ensopada do orvalho em que caiu. Coninha, hoje me humilhastes muito. Por mim ela nunca será censurada porque se molhou. Podeis dormir e repousar, pois não quero mais vos perturbar. Estais sem fôlego, esgotada.

Nesta fábula vos ensino: Mulher sabe mais que o maligno / Meus olhos podeis arrancar / Se a verdade tento ocultar / Com o que diz, se lhe dá gana / Mais o atordoa e mais o engana / Do que o homem o mais ladino / Minha fábula assim termino: / Não deixeis que vossa querida / Vos atormente assim a vida./ Ci fenit de la Sorisete des estopes.83

Do vilão que conquistou o Paraíso defendendo sua causa

Encontramos na escritura uma maravilhosa aventura que aconteceu a um vilão. Ele morreu numa sexta-feira pela manhã. Por acaso aconteceu que nem anjo nem diabo apareceu na hora em que ele morreu e a alma deixou o corpo. Ninguém veio lhe pedir nada nem lhe ordenar cousa alguma. Sabei que sua alma ficou mui feliz com isso, pois estava cheia de medo. A alma do vilão olhou para o céu e viu o arcanjo São Miguel, que jubiloso levava consigo uma outra alma. Então a alma do vilão se pôs a caminho atrás do anjo.

Segundo me disseram, seguiu o anjo até a entrada do Paraíso. São Pedro, que vigiava a porta do Paraíso, recebeu a alma que o anjo trazia. E depois de receber essa alma voltou-se para a porta e lá encontrou a alma do vilão, que chegara sozinha. Perguntou então a ela:

–    Quem te conduziu até aqui? Aqui só há alojamento para quem obtiver por julgamento. E ademais, por Santo Alão, não nos ocupamos de vilãos. Nenhum vilão chega até nós.

Ouvindo isso a alma respondeu:

–    Não existe ninguém mais vilão do que vós, meu bom São Pedro! Sempre fostes mais duro que pedra! Pelo Pai Nosso, Deus foi louco quando fez de vós Seu apóstolo. Pois não houve honra alguma quando renegastes o Senhor! Vossa fé foi mui pequena quando O renegastes três vezes. Se sois de Sua companhia, o Paraíso não vos convém nadinha. Vamos, depressa, para fora, infiel! Quanto a mim, sou homem honrado e fiel e é meu direito permanecer aqui!

São Pedro sentiu-se estranhamente envergonhado. Fez meia-volta e deparou com São Tomé. Sem nada omitir, contou-lhe toda sua má aventura, seu desprazer e dissabor. São Tomé disse:

–    Vou falar com o vilão. Deus jamais consentirá que ele permaneça aqui.

Então o apóstolo Tomé foi ter com o vilão e falou-lhe assim:

–    Ei, vilão, este solar pertence apenas a nós, aos mártires e aos confessados. Em qual lugar te penitenciaste, para creres que deves viver aqui dentro? Não podes ficar, pois este é o abrigo dos fiéis.

Ao que o vilão respondeu:

–    Tomé, Tomé, estais indo muito depressa! Demasiado falais de leis! Não fostes vós que respondestes aos apóstolos que tinham visto o Senhor? Isso é mais que sabido. Depois da Ressurreição fizestes vem vosso sermão, dizendo que só acreditaríeis quando tocásseis em Suas chagas. Naquela hora fostes falso e descrente.

Ao ouvir tais palavras, São Tomé hesitou. Baixou a cabeça, sem responder, e foi ter com São Paulo e contou-lhe seu dissabor.

–    Por minha cabeça – replicou São Paulo –, vou até lá. Verei se essa alma vai querer me responder. E atravessou o Paraíso inteiro, disposto a confundir a alma.

–    Alma – perguntou –, quem te trouxe até aqui? Onde fizestes as tuas boas obras, aquelas para as quais a porta se abre? Sai já do Paraíso, vilão falso!

E a alma respondeu:

–    Por que, Dom Paulo esquentado? Sois tão atormentador quanto fostes horrível tirano? Nunca haverá outro tão cruel. Santo Estevão pagou caro por isso, ele e a quem mandastes apedrejar. Sei contar a história de vossa vida. Muito homem honrado foi morto por vós. Em sonhos, Deus recompensou-vos com um tapa de Sua mão pesada. Então não bebestes o vinho dessa mão que selou o acordo? Ahá! Que santo e que divino! Acaso pensais que não vos conheço?

São Paulo ficou em grande aflição. Mais que depressa, voltou sobre seus passos. Encontrou São Tomé, que estava falando com São Pedro. Em segredo, contou-lhe como o vilão o derrotara. E acrescentou:

–    De minha parte, ele conquistou o Paraíso, e assim lhe concedo.

E os três vão juntos consultar Deus. Pedro contou tudo honestamente, contou como o vilão o insultara. Terminou falando assim:

–    Ele nos venceu com suas palavras. Eu mesmo estou tão confuso que nunca mais falarei a respeito.

Disse Nosso Senhor:

–    Quanto a mim, vou até lá, pois quero ouvir essa nova.

Então Deus foi ter com a alma. Chama-a e pergunta como adveio que entrasse sem autorização:

–    Sem licença nunca entra aqui nunca alma nenhuma, nem de homem nem de mulher. Blasfemaste e aviltaste e desdenhaste meus apóstolos e ainda acreditas que vais ficar aqui?

–    Senhor – responde a alma –, se justiça me for feita, devo morar aqui, como fazem eles. Nunca Vos reneguei nem jamais duvidei de Vós. Não matei ninguém. Eles, porém, fizeram tudo isso outrora e estão no Paraíso agora. Enquanto permaneceu no mundo, meu corpo levou vida limpa e honesta. Dei pão aos pobres, alberguei-os de noite e de dia. Aqueci-os em meu fogo, abriguei-os até morrerem e depois levei-os à igreja. Não deixei faltar-lhes calçado nem camisa. Agora já não sei se isso foi sensato. Confessei-me como é devido, recebi Teu corpo dignamente. Segundo nos pregam, quem assim morre, Deus perdoa todos os seus pecados. Sabeis muito bem se estou dizendo verdade. Entrei aqui sem objeção. Já que aqui estou, por que ir embora? Quereis negar a Palavra? Em verdade haveis prometido que quem entrar aqui não será expulso. E não mentireis por minha causa.

–    Vilão – respondeu Deus –, concedo-te o que queres. Apresentaste tal defesa que ganhastes o Paraíso. Estiveste em boa escola, Sabes usar bem da palavra, sabres fazer valer seu verbo.

O vilão diz-me seu provérbio que muito homem ataca o erro quando seria melhor defender a causa. A arte falseou o que é direito. Os falsos venceram a natureza. Torto vai direito e direito vai de lado. Menos vale a força que a habilidade.84

O peido do vilão, por Rutebeuf

As pessoas caridosas têm um grande quinhão no Paraíso celeste, porém aqueles que não trazem em si nem caridade nem bem nem paz nem fidelidade perderam esse júbilo. E não creio que alguém desfrute dele se não tiver piedade humana dentro de si. Digo isso pelo povo dos vilões, a quem jamais padre nem clérigo amou. Não creio que Deus lhes forneça lugar nem espaço no Paraíso. Não apraza a Jesus Cristo que um vilão seja albergado com o filho de Santa Maria. Pois isso não é defensável nem certo. Está dito na Escritura. Eles não podem ter o Paraíso nem pelos dinheiros nem por outros bens.

Mas perderam também o Inferno. Os Diabos estão privados de sua posse. Ouvireis aqui por qual má ação eles perderam esse lugar.

Outrora um vilão ficou doente. O Inferno estava preparado para receber sua alma. O que vos estou dizendo é verdade. Veio para cá um diabo, por quem a justiça era mantida. Tão logo chega à casa do vilão, pendura-lhe no cu um saco de couro, pois o demônio acredita sem falha que a alma sai pelo cu.85

Mas o vilão, para se cuidar, naquela tarde havia comido peixe, havia comido bastante e boa carne de vaca na água e sorvido tanto caldo quente que sua pança não estava nada mole. Estava esticada como corda de cítara. Inda não pensam que esteja perdido, pois se conseguir peidar ficará curado. E ele se ocupa nesse esforço, se anima, se torce, se mexe tanto que, ao se empinar, um peido lhe salta, enche o saco e o lambuza, pois o demônio, para lhe puni-lo, pisara-lhe na pança com os pés. E bem dizem naquele provérbio que muito forçar faz cagar.

O demônio foi embora, até que chegou à Porta com o peido que transporta. Joga no Inferno o saco e tudo, e o peido sai pela ponta. E eis cada um dos diabos irado e inflamado, e todos maldizem a alma do vilão.

Na manhã seguinte eles reuniram o cabido e se puseram de acordo sobre este princípio: que nunca mais seja trazida nenhuma alma que tenha saído de vilão, pois ela só pode feder. Assim ficou decidido que nunca nenhum vilão pode entrar no Inferno nem no Paraíso. Ouvistes toda a explicação.

Rutebeuf não sabe dizer onde é possível colocar a alma do vilão, depois que ela faltou com esses dois reinos. Ora, que ela vá cantar com as pererecas, pois é o melhor remédio que ele vê. Ou que se mantenha no bom caminho para aliviar sua penitencia, na terra do pai Audigier.86 É na terra de Cocusse87 que Audigier caga em seu chapéu. Explicit du Pet au Vilain.88

O vilão dos asnos

Havia em Montpellier / um vilão que costumava / apanhar a bosta e acarretá-la / com dois burros para adubar a terra. / Um dia, depois de os ter carregado, / encaminhou-se rapidamente / para a aldeia, levando os burros / penosamente na sua frente / e dizendo constantemente: “arre!” / Tanto andou que chegou / à rua dos mercadores / onde os rapazes batem o pilão. / Mas quando sentiu o cheiro das especiarias / nem que lhe dessem cem marcos de prata / o fariam dar mais um passo: / caiu imediatamente esmorecido / como se estivesse morto. / Grande foi a desolação das gentes que diziam: / “Deus nos acuda! / Olhem este homem que veio aqui morrer!” / E ninguém sabia dizer por quê. / Os burros, esses ficaram quietos / tranqüilamente no meio da rua / pois o burro não está acostumado / a andar para frente sem ser obrigado. / Ora, um bom homem que ali morava / que passava por aquela rua / aproximou-se e perguntou / aos que estavam à sua volta: / “Meus senhores, disse ele, se alguém quiser / mandar tratar deste homem / eu curá-lo-ei a troco de farelos.” / Logo um burguês lhe respondeu: / “Cure-o imediatamente, / receberá vinte soldos em dinheiro.” / E o outro respondeu: / “De boa mente.” / Então pegou na forquilha que o vilão / levava para fazer avançar os burros, / levantou uma pazada de bosta / e chegou-lha ao nariz. / Quando o outro sentiu o cheiro da bosta / e deixou de sentir o cheiro das ervas, / abriu os olhos, levantou-se / e disse que estava completamente bom. / Muito contente e cheio de alegria, / disse que nunca mais ali viria / se pudesse passar por outro lado. / Por este exemplo que mostrar-vos / que se revela sábio e prudente / aquele que se desfaz do orgulho. / Ninguém deve renegar a sua natureza. / Explicit “O vilão do asno.”89

O camponês médico

Era uma vez um rico camponês / que tinha muito, mas era muito avarento. / Tinha três charruas e oito bois / todas a trabalhar no seu lavrado / e duas éguas e dois cavalos; / tinha trigo, carne e vinho com abundância / e tudo o mais que lhe era necessário. / Mas não tinha mulher / todos os amigos o censuravam / e todas as pessoas da terra / até que ele disse que aceitaria / uma boa, se a encontrasse. / E eles disseram que lhe arranjavam / a melhor que lhe pudessem encontrar. / Na terra havia um cavaleiro / que era velho e sem mulher / e tinha uma filha muito bela / e muito bem educada. / Os amigos falaram ao camponês / e pediram ao cavaleiro / a mão da filha para o vilão / que era tão rico e opulento / e tinha jóias e tecidos preciosos. / Que vos direi? Imediatamente / foi ajustado o casamento. / A donzela, que era muito sensata / não quis contrariar o pai / pois era órfã de mãe: / consentiu em tudo o que ele quis / e o vilão, o mais cedo que pôde / fez a boda e desposou / aquela a quem muito pesou. / Ah, se tivesse ousado desobedecer / quando foi resolvida a questão / da boda e de tudo o mais / não demorou muito tempo / que o vilão reconsiderasse / e dissesse para consigo / que tinha feito muito mal. / Não convinha ao seu mester / ter filha de cavaleiro. / “Quando eu andar com a charrua / o capelão passa na rua / para quem todos os dias são de festa / e quando eu tiver me afastado / de minha casa, o sacristão / virá aqui um dia e outro / até que seduzirá a minha mulher / que nunca mais me amará / nem terá por mim (nenhuma) consideração. / Ai de mim! Infeliz! Exclama o vilão. / Não sei como me aconselhar / de nada serve arrepender-me.” / Começa então a matutar / como poderá conservá-la. / “Meu Deus, diz ele, se eu lhe batesse / todas as manhãs quando me levanto / para ir para o meu labor, / ela chorava o dia inteiro / e bem sei que enquanto chorasse / ninguém lhe faria a corte. / E à meia-noite, quando eu voltasse / pedia-lhe perdão, em nome de Deus. / Fá-la-ia feliz à noite / e desesperada de manhã!” / Depois de ter pensado nisto / o vilão pediu de comer: / não havia peixe nem perdizes / mas bons queijos e ovos fritos / e pão e vinho com abundância / que o vilão tinha arrecadado. / E quando a mesa foi levantada / com a palma da mão / que era grande e larga / bateu na cara da mulher / que ficou com os dedos marcados; / depois agarrou-a pelos cabelos / o vilão, sem nenhuma piedade / e bateu-lhe exatamente / como se ela bem o merecesse. / Depois foi-se, lavrar os campos / e ela começou a chorar: / “Ai de mim, diz ela, infeliz! / Ai de mim, porque é que eu nasci? / Meu Deus, como sou desgraçada! / Meu Deus, como o meu pai me traiu / quando me deu a este vilão! / Tinha medo que eu morresse de fome? / E eu estava completamente louca / quando aceitei este casamento. / Meu Deus, porque é que minha mãe morreu?” / Era assim que ela se lamentava / e todas as pessoas que ali vinham / para a ver, voltavam para trás. / Assim manifestou a sua dor / todo o dia até o sol se pôr / até que o camponês voltou / caiu aos pés da mulher / e suplicou: “Por Deus, perdoai-me / sabei que foi o diabo / que me fez fazer tal loucura. / Dou-vos a minha palavra / que nunca mais vos tocarei! / Estou desolado e arrependido / de vos ter batido.” / Isto disse-lhe o vilão fedorento / e a dama lhe perdoou / e depois deu-lhe de comer / do que tinha preparado. / Quando acabaram de comer / foram-se deitar na boa paz. / De manhã o vilão nojento / voltou a maltratar a mulher / que por pouco não a aleijou.90/ Depois foi para o campo lavrar / e ela começou a chorar. / “Infeliz, disse ela, que farei? / E como me aconselharei? / Bem sei que é a minha má ventura! / Meu Deus, alguma vez o meu marido foi malhado? / Decerto não sabe o que é levar pancada / se o soubesse, por nada deste mundo / me bateria desta maneira!” / E enquanto ela se lamentava / eis que chegam dois mensageiros do rei / cada um sobre um grande palafrém / e entraram pela casa adentro / e pediram-lhe de jantar. / Ela deu-lhes de comer de boa mente / depois disse-lhes: “Caros amigos, / donde sois e que buscais? / Dizei-mo se vos apraz.” / E um responde: “Dona, por boa fé, / somos mensageiros do rei / que nos enviou procurar um médico: / vamos a caminho da Inglaterra. / Por boa fé, graciosa donzela, / a filha do rei está tão doente/ que já são passados oito dias / que não pode beber nem comer / porque uma espinha de peixe / lhe ficou atravessada na garganta. / O rei está muito acabrunhado / se a perde nunca mais terá alegria.” / “Senhores, disse ela, ora ouvi-me: / ireis mais perto do que cuidais: / garanto-vos que o meu marido / é um bom médico, acreditai. / Por certo sabe mais de medicina / e de física e de urina / que nunca soube Hipócrates.”91/ “Senhora, estais a brincar?” / “Não tenho vontade de brincar, disse ela, / mas ele tem tal feitio / que não quer fazer coisa nenhuma / se não for antes bem espancado.” / Eles respondem: “Vamos a ver, / já por falta de pancada / não deixará de o fazer. / Senhora, onde o podemos achar?” / “Encontrá-lo-ão sem falta / quando saírem deste pátio / junto ao ribeiro, ali embaixo, / ao lado daquela velha rua / a primeira terra de charrua / que encontrardes é a nossa. / Ide, por São Pedro Apóstolo, / disse ela, aonde eu vos mando.” / E eles vão, dando às esporas / até que encontram o camponês. / Saúdam-no da parte do rei / e dizem-lhe sem mais rodeios / que vá junto ao rei sem demora. / “Fazer o quê?” diz o vilão / “Pelo saber que vós possuís / não há melhor médico em parte alguma / viemos de longe procurar-vos.” / Quando o outro ouviu chamarem-lhe médico / abanou a cabeça e disse / “Ah, de que é que estamos à espera? / disse um ao outro, sabes bem / que ele quer ser espancado / antes de dizer seja o que for.” / Um bate-lhe junto às orelhas / o outro dá-lhe em cheio nas costas / com um pau que tinha grande e grosso. / Tanto malharam nele os dois / que o atiraram ao chão. / Quando o vilão sentiu o pau / dar-lhe nos ombros e nas costas / bem viu que não levava a melhor / e disse-lhes: “Sou um bom médico / por Deus, mercê, deixai-me em paz!” / “Ora, só tendes de montar, / dizem eles, e vir junto ao rei!” / Não procuram outro palafrém, mas montam imediatamente / o vilão em cima de uma égua. / E quando chegaram à corte / o rei correu ao seu encontro / como quem deseja ardentemente / a saúde de sua filha. / Pergunta-lhes o que encontraram / e um dos mensageiros respondeu: / “Trazemos-vos um excelente médico, / mas é de muito má raça.” / Então contaram-lhe do vilão / e das qualidades que ele tinha / e que não queria fazer nada / sem primeiro ser espancado. / O rei respondeu: “Que mau médico! / Nunca ouvi falar de um assim! / Pois seja bem espancado, se assim é!” / Eles respondem: “Estamos prontos: / assim que vós o ordenares / pagar-lhe-emos os seus honorários.” / O rei chamou o camponês: / “Mestre, disse ele, sentai-vos aqui. / Vou mandar chamar a minha filha / que muito necessita de cura. / “Na verdade, senhor, eu bem vos digo / que nada sei de medicina / nem nunca na vida soube nada. / “Ah, disse o rei, o que é que eu ouço? / Espancai-o!” / E eles espancaram / e de boa vontade o fizeram. / Quando o vilão sentiu a pancada / nos ombros e nos costados / disse ao rei: “Senhor, piedade! / Curá-la-ei, eu vo-lo prometo!” / O rei responde: “Deixai-o agora! / Mal haja que ora lhe tocar!” / A jovem entrou na sala / muito pálida e descorada. / Por causa da espinha do peixe / tinha a garganta toda inchada. / Então o vilão pôs-se a pensar / como a poderia curar / pois sabe bem que terá / de a curar ou morrerá. / “Sei, na verdade, que se ela risse / com o esforço que fizesse / talvez a espinha se soltasse / pois não está dentro do corpo. / Tenho de fazer ou dizer / algo que a possa fazer rir.” / E disse ao rei: “Senhor, mercê! / Ora escutai: que me façais / uma fogueira acender / num lugar bem recuado / onde não haja ninguém / só eu e ela unicamente. / Depois vereis o que farei.” / E o rei responde: “Certamente!” / Saem os criados e escudeiros / e apressam-se a acender o lume / no lugar onde o rei mandou. / Na sala estão, segundo creio / juntos o médico e a donzela. / Ela sentou-se junto do lume / num assento que lhe trouxeram / e o vilão começou a despir-se / apenas ficou com as ceroulas / e sentou-se diante da fogueira / coçou-se e começou a tostar. / Tinha as unhas compridas e a pele dura: / não há homem até Saumur92/ se se coçasse daquele modo / que não ficasse logo assado. / E quando a donzela o viu / apesar das dores que sentia / quis rir e fez tal esforço / que a espinha lhe voou / da boca para a lareira. / E o vilão sem mais demora / vestiu-se, pegou a espinha / e saiu da sala triunfante. / Viu o rei e gritou: “Senhor, / a vossa filha está curada! / Aqui está a espinha, graças a Deus.” / O rei regozijou-se muito: / “Decerto, mestre, bem vos digo / que vos amo mais que tudo no mundo; / vós me restituístes a minha filha! / Bendita seja a vossa vinda / dar-vos-ei jóias e vestidos de preço!” / “Graças, senhor, mas não os quero / não posso convosco mais morar, / tenho que voltar à minha terra. / “Por Deus, disse o rei, isso não fareis vós: / sereis meu médico e cirurgião!” / “Graças, senhor, disse o vilão / na minha casa não há pão / quando parti ontem de manhã / estávamos para ir ao moinho.” / E o rei responde: “Veremos! / espancai-mo e ele ficará!” / Eles saltaram imediatamente / e bateram-no prontamente / e o vilão pôs-se a gritar: / “Eu fico, deixem-me em paz!” / O camponês ficou na corte / apararam-lhe o cabelo e a barba / e vestiram-lhe vestes de escarlate. / Já se julga livre de embaraços / quando os doentes do país / eram trinta ou quarenta, creio eu / vieram em peso junto a el-rei / e cada um contou seu caso. / O rei disse ao vilão: “Mestre, / encarregai-vos desta gente! / Depressa, curai-mos todos!” / Disse o vilão: “Por Deus, piedade! / São demais, eu vo-lo garanto.” / O rei chama os seus servidores, / cada um pega num cacete / pois ambos sabiam muito bem / porque o rei os chamava. / Quando o vilão os viu vir / cheio de medo disse ao rei: / “Piedade, senhor, Curá-los-ei!” / “Ah, disse o rei, quero ver isso!” / E o vilão mandou vir lenha / havia muita, quanta quisesse / e na sala acende uma fogueira / ele próprio era o mestre cozinheiro. / Mandou pôr os doentes em fila / e disse ao rei: “Quero pedir-vos / que vos digneis sair por ali / vós e todos os que não estão doentes.” / O rei consente de boa mente / e retira-se com sua gente. / E o vilão diz aos doentes: / “Senhores, pelo Deus que me criou, / é muito difícil obter a vossa cura! / Não poderia levá-la a cabo / senão do modo que vou vos dizer: / vou escolher o mais doente / e queimá-lo nesta fogueira. / Vós outros tereis grande proveito / pois beberei as suas cinzas / e ficareis logo curados.” / Então olharam-se uns aos outros / e não houve paralítico nem hidrópico93/ nem que lhe dessem a Normandia / que reconhecesse / ter a mais grave doença. / O vilão disse ao primeiro: / “Acho-te muito enfraquecido / de todos és o mais enfezado.” / “Mestre, disse ele, estou perfeitamente são!” / “Então sai daqui, O que vens cá fazer?” / E o outro precipita-se para a porta. / E o rei pergunta-lhe “Estás curado?” / “Sim, meu senhor, graças a Deus. / Estou são como um cachorro! / O médico é um homem nobre.” / Que vos ia eu contar? / Não houve pequeno nem grande / que por nada deste mundo deixasse / que o médico ao fogo o lançasse, / antes se foram indo assim / como se estivessem todos curados. / E quando o rei isto viu / ficou como louco de alegria / entrou na sala e disse: “Caro mestre, / maravilho-me como pode ser / que os curastes tão depressa.” / “Senhor, disse ele, eu encantei-os; / conheço um encantamento / que vale mais que gengibre ou zedoária.”94/ “Mestre, disse o rei, “agora podeis ir / a vossa casa quando quiserdes. / Dar-vos-ei panos e dinheiros / e palafréns e cavalos de luta / e nunca mais vos mandarei espancar / pois tenho vergonha de vos maltratar.” / “Graças, senhor, disse o vilão, / sou o vosso humilde vassalo / farei todo o vosso comando!” / Saiu da sala prontamente / depois voltou a sua casa / e instalou-se na terra ricamente. / Nunca mais empurrou a charrua / nem mais foi por ele batida / sua mulher, que amou e estimou. / Tudo se passou como eu vos digo: / pela mulher e pela manha / foi bom médico sem ciência.95

Extrato 42

1311A disputa entre Pedro, o clérigo, e Ramon, o fantástico, de Ramon Llull (1232-1316) (Pequena peça escrita em forma de disputatio)

(11)   Então o clérigo contou: – Meu pai foi um homem pobre e rústico e eu, quando era estudante, vivia de esmolas. Quando obtive as ciências, consegui ricas prebendas, obtive o título em Artes e dois em Direito, fui feito presbítero arquidiácono, acumulei muitos benefícios e pude tornar ricos meus irmãos, que eram rústicos. Além disso, eles se tornaram cavaleiros, e eu casei minhas irmãs com cavaleiros, exaltando minha linhagem do grau mais baixo ao mais alto. Estes três jovens estudantes – se olhares para trás poderás vê-los me seguindo a cavalo – são meus sobrinhos. Cada um deles já tem uma rica prebenda, inclusive quero agora obter nesse Concílio outros benefícios para eles. E de mim o que direi? Uma grande prelatura me faz vir até a Cúria96; creio que a obterei e viverei com muitas honras; porto uma grande companhia de cavaleiros, escudeiros, cozinheiros e numerosos criados, como vós mesmos podeis ver; como em pratos de prata, possuo grandes riquezas e tenho grandes despesas. Por tudo isso, se desejais, podeis ver claramente que eu não sou fantástico, e sim prudente e discreto.

(12)   Disse Ramon: – Escutei tudo e entendi qual é a causa que vos move e por qual motivo me tens como fantástico. Contudo, antes de vos responder, desejaria, de maneira semelhante, dizer algumas poucas palavras de mim mesmo. Eu fui um homem ligado pelo matrimônio, tive filhos; era discretamente rico, lascivo e mundano. Deixei tudo de bom grado para poder me dedicar a fomentar a honra de Deus, o bem público e exaltar a santa fé. Aprendi árabe e fui muitas vezes pregar entre os sarracenos; por causa da fé fui preso, encarcerado e surrado. Trabalhei quarenta e cinco anos tentando mover a Igreja e os príncipes cristãos ao bem público. Agora sou velho, agora sou pobre, mas ainda tenho o mesmo propósito e o terei até a morte, se Deus quiser. Assim, vos parece que tudo isso é uma fantasia ou não? Que a vossa consciência seja o juiz, embora certamente isso seja fantástico para a vossa intenção. Mas no final, Deus, que não pode ser coagido nem enganado, será o juiz.”97

Extrato 43

1358Crônicas, de Jean Froissart (c. 1337-1410)98 (Revolta camponesa)

410. No tempo que governavam os três estados, começaram a levantarem-se uns tipos de gentes que se chamavam companheiros e que saqueavam a todos que levavam cofres. Digo que os nobres do reino da França e os prelados da santa Igreja começaram a se cansar da empresa e da ordem dos três estados. Deixaram atuar o preboste dos comerciantes e alguns burgueses de Paris, mas intervinham mais do que desejavam.

Sucedeu um dia que o duque da Normandia estava em seu palácio com grande quantidade de cavaleiros e o preboste dos comerciantes reuniu também grande quantidade de comunas de Paris que eram de sua seita e de seu partido. Todos levavam gorros iguais para reconhecerem-se. Este preboste se dirigiu ao palácio rodeado por suas gentes e entrou na câmara do duque. Com grande acrimônia requereu que se ocupasse dos assuntos do reino e mantivesse conselho, de modo que o reino que devia herdar estaria bem protegido daqueles companheiros que o dominavam, saqueando e roubando por todo o país. O duque respondeu que se ocuparia com muito gosto, se obtivesse sentença de assim fazê-lo, mas que correspondia decidir o que determinava os ditames e juízos do reino.

Não sei por que nem como sucedeu, mas as palavras foram crescendo tanto e tão alto que, na presença do duque da Normandia mataram os três maiores de seu conselho, tão próximo dele, que sua vestimenta ficou ensangüentada. O mesmo correu um grande perigo, mas lhe deram um dos gorros e concedeu perdoar a morte daqueles três cavaleiros, dois de armas e o terceiro de leis. Um deles se chamava meu senhor Robert de Clermont, um homem nobre e muito gentil; o outro, senhor de Conflans, marechal de Champagne e cavaleiro de leis, meu senhor Simon de Bucy. Foi uma grande pena que ali morressem, por falar e aconselhar bem a seu senhor.

411. Depois disso que aconteceu, ocorreu que alguns cavaleiros da França, meu senhor Jean Picquigny e outros, acudiram com a ajuda do preboste dos comerciantes e dos conselheiros de algumas boas vilas ao forte castelo de Arleux, na Picardia, onde o rei de Navarra havia sido aprisionado sob a vigilância de meu senhor Tristão de Bos.99Estes hábeis cavaleiros levaram tais estandartes ao senhor do castelo que lograram libertar o rei de Navarra de sua prisão e conduzi-lo com grande regozijo à cidade de Amiens, onde foi muito bem recebido. Alojou-se na casa de um canônico que o apreciava muito e que chamavam Guy Kieret. O rei de Navarra passou quinze dias no hospital100do canônico até que houvesse preparado suas provisões e estivesse bem seguro do duque de Normandia, pois o preboste dos comerciantes, que lhe queria muito e por cujo esforço havia sido liberado, conseguiu e confirmou a paz com respeito ao duque e aos de Paris.

O rei de Navarra foi conduzido a Paris por meu senhor Jean de Picquigny e alguns burgueses da cidade de Amiens e ali foi recebido com grande alegria. Todo tipo de gentes o acolheram com agrado, inclusive o duque da Normandia o festejou muito, coisa que lhe convinha, pois o preboste dos comerciantes e os de sua seita lhe obrigaram a fazê-lo. O duque fazia isso por dissimulação, ao agrado do preboste e de alguns de Paris.

412. Quando o rei de Navarra passou um tempo em Paris, reuniu um dia a todo tipo de gentes, prelados, cavaleiros, clérigos da universidade e todos aqueles que quiseram acudir, e ali falou, a princípio em latim, muito bem e com grande sensatez, na presença do duque da Normandia, lamentando os prejuízos e vilanias que se haviam feito com grande injustiça e sem razão. Disse que ninguém suspeitava dele, pois queria viver e morrer defendendo o reino da França. E bem o devia fazê-lo, pois lhe correspondia por direito de pai e mãe e de seus antepassados. Em suas palavras, deixou entender que se quisesse disputar a coroa da França, demonstraria bem por direito que ele era mais próximo que o rei da Inglaterra. Soube que seu discurso foi ouvido com agrado e foi muito bem elogiado.

Assim, pouco a pouco foi fazendo-se na estima dos de Paris, até tal ponto que lhe eram mais favoráveis que ao regente, o duque da Normandia e também em muitas outras boas vilas e cidades do reino da França. Mas por muito amor que lhe mostraram o preboste dos comerciantes e os de Paris ao rei de Navarra, meu senhor Felipe de Navarra não quis consentir com ele nem quis ir a Paris, e dizia que com a comunidade não se podia manter nenhum trato seguro.

413. Muito pouco tempo depois da liberação do rei de Navarra, sucedeu uma terrível e grande tribulação em muitas partes do reino da França, em Beauvaisis, em Brie, junto ao rio Marne, em Laon, Valois, a terra de Coucy e os arredores de Soissons. Algumas gentes das vilas camponesas se reuniram sem chefe em Beauvaisis. A princípio não eram nem cem homens e disseram que todos os nobres do reino da França, cavaleiros e escudeiros traíram o reino, e que seria um grande bem destruir a todos. Cada um deles dizia: “É verdade! É verdade! Maldito seja quem por ele não sejam destruídos todos os gentis-homens”.

Então, sem outro conselho e sem outra armadura além de bastões com pontas de ferro e facas, foram à casa de um cavaleiro que estava próxima dali. Destruíram a casa, mataram o cavaleiro, a dama e os filhos, grandes e pequenos, e incendiaram tudo. Logo foram a um castelo e ali ainda fizeram pior, pois prenderam o cavaleiro e o ataram a uma estaca muito fortemente e muitos violaram a mulher e a filha diante do cavaleiro. Depois mataram a mulher, que estava grávida, a sua filha e todos os filhos, e o marido, depois de torturá-lo, o queimaram e destruíram o castelo.

Assim fizeram em muitos castelos e boas casas, e foram crescendo tanto que chegaram a seis mil. Aumentavam porque todos os de sua condição lhes seguiam por todos os lados por onde passavam, de tal modo que cavaleiros, damas, escudeiros, suas mulheres e seus filhos fugiam deles. Damas e donzelas levavam seus filhos dez ou vinte léguas distantes, ali onde pudessem se proteger, abandonando suas casas com todos os seus bens. E todos estes criminosos reunidos, sem chefe e sem armaduras, saqueavam e incendiavam tudo, matando todos os gentis-homens que encontravam, forçando as damas e donzelas sem piedade e sem mercê como cachorros violentos.

Certamente jamais houve entre cristãos e sarracenos os crimes que cometiam estes miseráveis, pois quem cometia maiores atos vis, atos que nenhuma criatura humana deveria jamais nem imaginar, esse era o mais estimado e valorado entre eles. Não me atrevo a escrever nem contar os horríveis e inconvenientes atos que realizavam com as damas. Pois, entre outras vilanias, mataram um cavaleiro e o cravaram em um assador para assá-lo no fogo diante de sua dama e de seus filhos. Depois que dez ou doze forçaram e violaram a dama, quiseram fazê-la comer à força e logo a fizeram morrer de má morte. Tinha um rei entre eles que chamavam Jacques Bonhomme, que era, como então se dizia, de Clermont em Beauvaisis, e o elegeram o pior dos piores.

Estas gentes miseráveis incendiaram e destruíram mais de sessenta boas casas e fortes castelos do país de Beauvaisis e dos arredores de Corbie, Amiens e Montdidier. E se Deus não houvesse posto remédio com Sua graça, a desgraça teria crescido de modo que todas as comunidades teriam destruído os gentis-homens, depois a santa Igreja e a todas as gentes ricas de todo o país, pois assim sucedeu no país de Brie e Artois. As damas e donzelas do país, cavaleiros e escudeiros que puderam escapar, tiveram que fugir a Meaux, em Brie. Assim tiveram que fazê-lo a duquesa da Normandia e a duquesa de Orléans e grande quantidade de altas damas, como qualquer outra, para protegerem-se de serem forçadas e violadas, e logo mortas e assassinadas.

Estas gentes se mantinham unidas entre Paris e Noyon, e entre Paris e Soissons, e entre Soissons e Eu, em Vermandois, e por toda a terra de Coucy. Aí se encontravam os grandes violadores e criminosos, e saquearam entre as terras de Coucy, os bispados de Laon, Soissons e Noyon, mais de cem castelos e boas casas de cavaleiros e escudeiros, matando e roubando tudo o que encontravam. Mas Deus, por sua Graça pôs remédio a tudo isso, o que muito se Lhe deve agradecer, tal e como ouvireis seguidamente.

414. Quando os gentis-homens de Beauvaisis, de Corbiois, Vermandois e Valois e das terras onde aqueles miseráveis cometiam seus crimes viram suas casas destruídas e seus amigos mortos, pediram ajuda a seus amigos em Flandres, Hainaut, Brabante e Bélgica, e acudiram de todos os lados. Estrangeiros e gentis-homens do país se uniram e começaram a matar e decapitar aqueles miseráveis, sem piedade nem mercê, e os penduravam nos galhos das árvores ali onde os encontravam. O próprio rei de Navarra acabou um dia com três mil, muito próximo de Clermont, em Beauvaisis. Mas haviam se multiplicado de tal forma que se houvessem juntado todos, haveriam sido cem mil homens. Quando lhes perguntavam por que faziam aquilo, respondiam que não o sabiam, mas que como viam os demais fazerem, eles também o faziam. Pensavam que desse modo deviam destruir a todos os gentis-homens e nobres do mundo para que não restasse ninguém.

Nessa época, o duque da Normandia marchou de Paris com toda a sua tropa, sem que se inteirassem os de Paris, pois temiam o rei de Navarra, o preboste dos comerciantes e os de sua seita, pois todos estavam aliados. Dirigiu-se à ponte de Charenton, junto ao Marne e fez um grande chamamento dos gentis-homens onde acreditava consegui-los, e desafiou o preboste dos comerciantes e aos que lhe queriam ajudar. Quando o preboste dos comerciantes ouviu que o duque da Normandia estava na ponte de Charenton e que estava ali reunindo a sua gente de armas, cavaleiros e escudeiros, e que queriam prejudicar aos de Paris, temeu que lhe sucedessem grandes males e que fossem atacar Paris à noite, que naquela época não estava fortificada. Pôs a trabalhar quantos obreiros pôde encontrar, e fez construir grandes fossas ao redor de Paris, muralhas e portas, e trabalhavam noite e dia.

Ao cabo de um ano havia reunido três mil obreiros e foi uma grande empresa a de fortificar em um ano uma cidade como Paris, de tão grande contorno. E os digo que esta foi a melhor ação que o preboste dos comerciantes fez em toda sua vida, pois de outro modo haveria sido saqueada muitas vezes e por muitas causas, tal e como ouvireis depois. Agora quero voltar a aqueles e aquelas que haviam se refugiado a salvo em Meaux, em Brie.

415. Na época em que aquelas gentes miseráveis saqueavam o país, voltaram da Prússia o conde de Foix101e seu primo, o captal de Buch.102Pelo caminho, quando iam entrar na França, ouviram a pestilência e os horríveis fatos que acossavam aos gentis-homens. Estes dois senhores sentiram grande piedade. Cavalgaram tanto que chegaram a Chalôns em Champagne, onde os camponeses não haviam entrado. Na vila de Chalôns lhes disseram que a duquesa da Normandia e a duquesa de Orléans, com outras trezentas damas e donzelas e o próprio duque de Orléans, estavam em Meaux em Brie em terrível angústia pela Jacquerie.

Estes dois bons cavaleiros decidiram ir ver as damas para reconfortá-las tudo o que pudessem, ainda que o captal fosse inglês. Mas naquele tempo havia trégua entre o reino da França e o reino da Inglaterra. O captal podia cavalgar por onde quisesse, e quis também demonstrar sua gentileza na companhia do conde de Foix. Em sua tropa deveria haver umas quarenta lanças103, não mais, pois como os tenho dito vinham de uma peregrinação. Tanto cavalgaram que chegaram a Meaux, em Brie. Em seguida, foram ver a duquesa e as outras damas, que se alegraram muito de sua chegada, pois todas estavam ameaçadas pelos jacques e os camponeses de Brie, e inclusive pelos da vila, tal e como pude ver. Aqueles miseráveis, ao inteirarem-se de que havia grande quantidade de damas, donzelas e jovens e gentis crianças, se uniram, também com os do condado de Valois, e se dirigiram a Meaux.

Por outro lado, os de Paris, que se inteiraram da assembléia, saíram de Paris um dia em tropel, e se reuniram com os demais. Entre todos deveria haver uns nove mil com grande vontade de crimes. Constantemente lhes agregavam gentes pelos distintos lugares e caminhos que conduziam a Meaux, e todos chegaram às portas da vila dita anteriormente. Os miseráveis da vila não quiseram proibir a entrada aos de Paris, senão que lhes abriram as portas. Entraram no burgo tal quantidade de gentes que encheram todas as ruas até o mercado.

Agora observai a grande graça que Deus concedeu às damas e donzelas, pois, na verdade, teriam sido violadas, forçadas e perdidas, por nobres que fossem, se não houvessem sido salvas pelos gentis-homens que ali estavam, e de modo especial, pelo conde de Foix e meu senhor captal de Buch, pois estes dois cavaleiros vieram para destruir aqueles camponeses.

Quando aquelas nobres damas, que estavam albergadas no bem protegido mercado de Meaux, porque o rio Marne o rodeia, viram tal quantidade de gentes, sentiram medo e terror. Mas o conde de Foix e o captal, com suas tropas que estavam armadas, se formaram no mercado e chegaram até a porta do mercado, que fizeram abrir. Logo se colocaram diante daqueles vilãos negros, pequenos e mal armados, com o estandarte do conde de Foix e o do duque de Orléans, e o pendão do captal, empunhando lanças e espadas, bem dispostos para defenderem-se e protegerem o mercado.

Quando aqueles miseráveis os viram assim formados, esqueceram o furor de antes. Ainda que não fossem muitos contra eles, os primeiros começaram a retroceder, e os gentis-homens a persegui-los e a lançar-lhes lanças e espadas e a derrubá-los. Então os que estavam diante e sentiam os golpes ou temiam recebê-los, retrocederam todos de uma vez de terror, e caíram uns em cima dos outros.

Nisto, todo tipo de gentes de armas saíram das filas e logo ganharam a praça, metendo-se entre os vilãos. Derrubaram-nos aos montões e os matavam como bestas, e os expulsaram fora da vila, pois entre eles não havia nenhuma ordem nem formação. Mataram tantos que se cansaram e caíram fartos, e os lançaram no rio Marne aos montões. Dito brevemente, acabaram com sete mil naquele dia, e não se lhes escapou nenhum ao que não prenderam mais adiante.

Quando os gentis-homens regressaram, colocaram fogo na parte baixa da vila de Meaux e incendiaram tudo e a todos os vilãos do burgo que prenderam dentro. Depois desta destruição que se fez em Meaux, não voltaram a se unir em nenhuma parte, pois o jovem senhor de Coucy, que se chamava meu senhor Enguerrand, ia com muitos gentis-homens acabando com todos os que encontravam, sem piedade nem mercê.104

Extrato 44

c. 1394Um camponês inglês e sua família

“...e, como eu caminhasse a chorar de desgosto, vi um pobre homem atrás de seu arado. Sua cota era de pano grosseiro, chamado cary, seu capuz todo esburacado e seus cabelos escapavam através dos orifícios; de seus calçados deformados, grossos e cravejados saíam-lhe os dedos quando ele pisava na terra; os braços pendiam sobre as polainas e ele estava todo sujo de barro; usava duas mitenes105, feitas de pobres farrapos; os dedos eram gastos e estavam cobertos de lama. O homem estava enterrado na lama até os tornozelos; diante dele, quatro vacas hécticas106 Sua mulher caminhava a seu lado, empunhando um comprido aguilhão; vestia uma saia curta bastante arregaçada e estava envolta em uma peneira de joeirar para proteger-se do mau tempo, descalça sobre o gelo, o sangue a lhe escorrer dos pés. E para completar havia uma pequena caixa de lixo, onde se achava uma criança esfarrapada, e do outro lado duas outras crianças de dois anos; e elas cantavam uma canção que se ouvia com piedade. Cantavam todas o mesmo lamento – nota miserável. O pobre homem suspirava tristemente e dizia: ‘Silêncio, crianças.’”107

Extrato 45

1462Capítulos do Projeto de Concórdia entre os camponeses da Catalunha e seus senhores108

VI – Que seja suprimido o direito de maltratar o camponês:

Item, em muitas partes do dito principado da Catalunha, alguns senhores pretendem e observam que os ditos camponeses podem justa ou injustamente ser maltratados à sua inteira vontade, mantidos em ferros e cadeias e frequentemente recebem golpes. Desejam e suplicam os ditos camponeses que isto seja suprimido e não possam ser mais maltratados por seus senhores, a não ser por meio da justiça.

Respondem os ditos senhores que estão de acordo no que toca aos senhores alodiais que não têm outra jurisdição a não ser aquela que afirma que o dito senhor pode maltratar o vassalo.

 

VII – Que a mulher do camponês não seja obrigada a deixar seu filho sem leite para alimentar o filho do senhor:

Item, acontece às vezes que, quando a mulher do senhor pare, o senhor, à força, toma alguma mulher de um camponês como ama-de-leite sem pagamento nenhum, deixando o filho do camponês morrer por não haver forma alguma de dar ao dito filho leite de outra parte, do qual se segue grande dano e indignidade, e assim suplicam e desejam que isto seja suprimido.

Respondem os ditos senhores que estão de acordo e outorgam o que lhes é pedido pelos ditos vassalos no dito capítulo.

 

VIII – Que o senhor não possa dormir a primeira noite com a mulher do camponês:

Item, pretendem alguns senhores que quando o camponês toma mulher, o senhor há de dormir a primeira noite com ela, e em sinal de senhorio, a noite em que o camponês deva contrair núpcias, a mulher, estando deitada, vem o senhor e sobe à cama, passando sobre a dita mulher e como isso é infrutuoso para o senhor e uma grande humilhação para o camponês, um mau exemplo e ocasião para o mal, pedem e suplicam que isto seja totalmente abolido.

Responderam os ditos senhores que não sabem nem acreditam que tal servidão ocorra no presente no principado, nem tenha sido jamais exigida por senhor algum. Se isso é verdade, como foi afirmado no dito capítulo, renunciam, rompem e anulam os ditos senhores tal servidão como coisa muito injusta e desonesta.109

 

IX – Do abuso de que o filho ou filha do camponês tenha que servir ao senhor, sem para e sem remuneração:

Item, usam e praticam alguns senhores que quando o camponês tem um filho ou uma filha já em idade de casar, forçam o camponês a deixar-lhe seu filho ou filha, para que lhes sirva algum tempo sem nenhum pagamento e remuneração do qual se seguem coisas desonestas e grande humilhação para o camponês.

Respondem os ditos senhores que já responderam acerca do presente no capítulo VIII.110

 

Notas

  • 1. Cervulus e annicula – facere ou exercere cervulum ou agniculas – eram práticas pagãs que envolviam fantasias (de cervo/cordeirinha). Em outro sermão (129, 2), Cesário investe duramente contra o hábito – próprio das calendas de janeiro – de fazer cervulum: os que assim procedem, querem não só se vestir de animal, mas transformar-se em animal (nota: Prof. Dr. Jean Lauand [USP]).
  • 2. Tradução, apresentação e notas de Jean Lauand (USP). Publicado em Videtur 21Internet, http://www.hottopos.com/videtur21/index.htm.
  • 3. Ed. C. W. Barlow, Martini episcopi Bracarensis Opera Omnia, Artigos e Monografias da Academia Americana em Roma, 12 (New Haven: Yale University Press, 1950), p.183-203, com correções de A. F. Kurfess, em Aevun, 29, (Milão, 1955), p. 181-186. Publicado em HILLGARTH, J. N. Cristianismo e Paganismo – 350-750. A Conversão da Europa Ocidental. São Paulo: Madras, 2004, p. 71-78.
  • 4. “Se os mitos elaborados do Olimpo estavam esquecidos, as antigas crenças celtas nos deuses da primavera e das florestas estavam bem vivas na Gália de Cesário e na Galícia de Martinho de Braga (...) Muitos rústicos não entendiam por que, nas palavras de Martinho, ‘não se podia adorar Deus e o Diabo ao mesmo tempo’. Eles não conseguiam entender por que seus deuses familiares, seus altares rurais eram tão desesperadamente malignos como a Igreja dizia que eram (...) Os sermões tanto de Cesário como de Martinho eram muito usados por padres posteriormente. As obras de Martinho foram usadas por um dos primeiros missionários na Alemanha, Pirmino (f. 753), e mais tarde por Aelfric (cerca de 1000) em suas homilias anglo-saxãs.” – HILLGARTH, J. N. Cristianismo e Paganismo – 350-750. A Conversão da Europa Ocidental. São Paulo: Madras, 2004, p.68-69.
  • 5. SAN ISIDORO DE SEVILLA. Etimologías. Madrid: BAC, 2000, vol. I, X, 239, p. 845.
  • 6. Maimbour – Termo que significa o poder do senhor de proteger o mais fraco que se coloca sob sua proteção.
  • 7. Formulae Turonenses. Publicado em Formulae Merovingici et Karolini Aevi, ed. K. Zeumer (MM. GG., in-4), p. 158. Citado em GANSHOF, F. L. Que é o Feudalismo? Lisboa: Publicações Europa-América, s/d, p. 19.
  • 8. Preocupado com a administração de suas propriedades, Carlos Magno (c. 747-814) ordenou que fosse feito um inventário de seus rendimentos.
  • 9. “A capitular determina a esses administradores ou intendentes, chamados judices em latim, que mantenham uma contabilidade regular e depois façam um balanço equilibrado das receitas, das despesas e da produção.” – FAVIER, Jean. Carlos Magno. São Paulo: Estação Liberdade, 2004, p. 323.
  • 10. Manso – O manso era a segunda parte do domínio, propriedade agrícola (a primeira era a terra indominicata, ou mansus indominicatus, reserva senhorial explorada diretamente pelo senhor e espaço onde se encontravam os celeiros, sua casa, os estábulos, os moinhos, pastos, bosques e terra cultivável). Por sua vez, o manso era a designação dada à pequena exploração camponesa, menor unidade produtiva e fiscal do domínio. Era dele que a família camponesa tirava seu sustento. Havia mansos servis (de escravos) e mansos ingênuos (possuídos por camponeses livres). Ver FRANCO JÚNIOR, Hilário. A Idade Média – Nascimento do Ocidente. São Paulo: Editora Brasiliense, 2001, p. 32-33.
  • 11. Composição – Aqui a palavra tem o sentido de “acordo entre partes litigantes”.
  • 12. Centena – Unidade administrativa nos domínios do fisco.
  • 13. Milhete – Milho com grão muito miúdo; painço – planta gramínea; grão dessa planta também chamado milho-miúdo.
  • 14. Cânhamo – Planta têxtil cujos filamentos servem para fabrico de tecidos, cordas, etc.
  • 15. Carlos Magno, De Villis, em Monumenta Germaniae HistoricaCapitularia Regum Francorum, ed. A. Boretius, tomo I, Hanover, 1883, p. 85-89. Citado em SPINOSA, Fernanda, Antologia de textos históricos medievais, Lisboa, Sá da Costa Editora, 1981, p. 161.
  • 16. Na seção dedicada ao povo de Moringhen, a alguns quilômetros ao oeste de Saint-Omer. Citado em CONTAMINE, Philippe, BOMPAIRE, Marc, LEBECQ, Stéphane, SARRAZIN, Jean-Luc. La economía medieval.  Madrid, Akal, 2000, p. 51-52.
  • 17. Bunuaria – O bunuarium era uma medida de superfície correspondente a aproximadamente um quarto de acre (um acre = 40, 47 ares – um are = 100m2). No caso, quando o texto diz “tem oito e cultiva quatro”, o “cultiva quatro” significa que ele cultiva quatro bunnuaria para a abadia (e quatro para ele e sua família).
  • 18. “O que significa isso? Simplesmente que toda uma aldeia ou ao menos uma parte importante de uma aldeia, nominalmente designada e, portanto, bem circunscrita no espaço, acabava de entrar na dependência do mosteiro, seguramente já um grande senhorio nesse momento, em meados do século IX. Havia pequenas explorações (a de Guntberto, a de Gerbalo, a de Stracferto), mas também medianas (a de Thegen, a de Berharius). A primeira dessas duas últimas estava sendo dirigida pelo chefe da comunidade e a segunda por um cavaleiro, isto é, alguém suficientemente rico para custear o equipamento necessário para o serviço militar. Em outras palavras: antes que o povo de Moringhen caísse na dependência do mosteiro de Saint-Bertin, se configurava como uma espécie de quebra-cabeças de explorações de todos os tamanhos, algumas minúsculas, como a de Gerbaldo, e outras, como a de Berharius, tinham um caráter quase senhorial, já que não só utilizavam escravos, mas também integravam em seu próprio domínio alguns mansos camponeses.” – CONTAMINE, Philippe, BOMPAIRE, Marc, LEBECQ, Stéphane, SARRAZIN, Jean-Luc. La economía medieval.  Madrid, Akal, 2000, p. 52.
  • 19. Eginhard (c. 770-840) havia construído uma basílica ao lado da casa em uma floresta em Odenwald (entre os rios Neckar e Main). Para ali foram trasladadas em 827 as relíquias de São Pedro e São Marcelino, sob cuja invocação a basílica foi consagrada. Em algumas cartas, Eginhard pede o perdão a alguns servos, e esses textos esclarecem um pouco as obrigações que pesavam sobre o campesinato, além da boa ação da Igreja a favor dos camponeses, tentando assim atenuar os conflitos entre as ordens.
  • 20. Este delito estava previsto na primeira capitular de 802.
  • 21. O vicedominus (ou vidame) era um magistrado que administrava as propriedades eclesiásticas dotadas de imunidade.
  • 22. A Lei Sálica responsabilizava toda a família pelo crime cometido por um de seus membros, obrigando-a ao pagamento da composição. No século IX, este princípio já tinha desaparecido das leis, mas continuava a ser posto em prática.
  • 23. O servo deveria não só ter pedido o consentimento de seu senhor, mas também pago um imposto especial para se casar, chamado maritagium.
  • 24. Cartas de Eginhard, publicado em A. Teulet, Oeuvres Complètes d’Eginhard, Societé de l’Histoire de France, Paris, 1843, tomo II, p. 13, 27 e 29. Citado em SPINOSA, Fernanda, Antologia de textos históricos medievais, Lisboa, Sá da Costa Editora, 1981, p. 183-185.
  • 25. Denário – Antiga moeda romana que valia dez asses (moeda romana de cobre).
  • 26. Módio – Antiga medida de capacidade entre os romanos que equivalia aproximadamente ao alqueire (entre 18 e 26 litros).
  • 27. Vara – Medida variável de comprimento (equivalente a 1,10 metros ou cerca de 1,60 ares).
  • 28. Políptico de Irmignon, B. Guénard, Polyptyque de l’abbé Irminon, vol. II, 1844, p. 6. Citado em SPINOSA, Fernanda, Antologia de textos históricos medievais, Lisboa, Sá da Costa Editora, 1981, p. 185.
  • 29. Recueil des chartes de l’abbaye de Cluny, Bernard A., Bruel, A. (ed.), Paris, 1876, tomo I, p. 887. Citado em PEDRERO-SÁNCHEZ, Maria Guadalupe. História da Idade Média. Textos e testemunhas. São Paulo: Editora Unesp, 2000, p. 105.
  • 30. Jarrete – Parte posterior do joelho.
  • 31. Roman de Rou. Citado em LE GOFF, Jacques. A civilização do ocidente medieval II. Lisboa: Editorial Estampa, 1984, p. 60-61.
  • 32. Cartulário da Igreja de Notre-Dame, tomo III, Paris, ed. B. Guérard, 1850, p. 354-355. Publicado em DUBY, Georges, A Europa na Idade Média, São Paulo: Martins Fontes, 1988, p. 13-14.
  • 33. Os Estudantes e o Camponês é uma pequena peça de autor anônimo do século XI (traduzimos, livremente, a partir da versão de GUGLIELMI, Nilda  El teatro medieval, Edit. Universitaria de Buenos Aires, 1980, pp. 51 e ss.). É por vezes atribuída a um desconhecido Ugo Racellario ou a Geoffroy de Vinsauf (séc. XII), autor de Poetria Nova. O enredo gira em torno de uma peregrinação bufa de estudantes à qual se junta um camponês. O tema do camponês “simplório”, que acaba enganando os “espertalhões estudados” é – com variações de detalhes – muito freqüente na literatura medieval e ainda hoje é tema de anedotas populares. Apresentamos, a seguir, uma versão literária - que mostra a origem árabe da anedota - de Petrus Alphonsus (nascido em 1062): é o exemplum XIX de sua Disciplina Clericalis, “Exemplum de Duobus Burgensibus et Rustico”, “Os dois homens da cidade e o camponês” (Apresentado por Angel González Palencia, Madrid-Granada, CSIC, 1948) – LAUAND, Jean. Teatro Medieval: 4 Sketches (textos para sala de aula. Tradução, adaptação e notas introdutórias: Jean Lauand), Internet, VIDETUR 22, http://www.hottopos.com/videtur22/jean_teatro_mediev.htm
  • 34. Alforje – Saco duplo saco, fechado em ambas as extremidades e aberto no meio (por onde se dobra), formando duas bolsas iguais (usado ao ombro, para distribuir o peso dos dois lados).
  • 35. Não fica claro no texto a quem pertence a torta. Porém, numa peregrinação, é usual que – independente de quem trouxe o quê – os mantimentos sejam fraternalmente tomados em comum pelos romeiros. Evidentemente, o efeito teatral se intensifica se a torta tiver sido trazida pelos estudantes (Jean Lauand).
  • 36. “Feci individuum quod fuit ante genus”, ironiza as abstratas discussões acadêmicas sobre a “questão dos universais” (Jean Lauand).
  • 37. De vita sua, cap. XVII – O julgamento e a punição de alguns heréticos em Soissons. Publicado em ARCHAMBAULT, Paul J. A monk´s confession: the memoirs of Guibert of Nogent. Pennsylvania State University Press, 1996, p. 195-198. Trad. e notas: Prof. Carlile Lanzieri Júnior.
  • 38. Guiberto se refere ao conde Jean de Soissons, filho de Guillaume Busac e Alais, filha do conde Renaud de Soissons. Jean morreu no final de setembro de 1115. (N. T.)
  • 39. Veja Agostinho (354-430), em seu Liber de haeresibus ad Quodvultdeum (PL 42.34-38). Muitas das descrições das heresias na França dos séculos XI e XII se referem a variações do maniqueísmo, tais como aquelas listadas por Agostinho.
  • 40. João 13.17: “Se compreendes isso, abençoado sejas tu se as pratica”.
  • 41. Guiberto está citando Marcos (16. 16): “Aquele que crer e for batizado será salvo; o que não crer será condenado”.
  • 42. Essa é uma citação direta do Liber de haeresibus de Santo Agostinho (PL 42.44). Ao tratar da tendência priscilianista de tolerar em segredo, mesmo a preço de perjúrio, Agostinho fala dessa “perversa” seita.
  • 43. Uma vila no Marne pertencente ao conde de Champagne.
  • 44. Guiberto aprova o fanatismo da turba em relação aos heréticos, e a compara à operação cirúrgica preventiva em um câncer. Como no caso da distribuição simoníaca de prebendas (1.7), o populus se antecipou e se excedeu ao clero em zelo e violência.
  • 45. “Os concelhos medievais portugueses eram circunscrições administrativas organizadas pelas populações rurais, principalmente as que se encontravam sob governo muçulmano, que reconheciam o caráter representativo das comunidades cristãs e judias. Cada concelho possuía sua própria assembléia de notáveis bons-homens, pequenos proprietários locais, ou ricos mercadores. Elegiam diversos magistrados, com funções administrativas e militares. As comunidades concelhias possuíam privilégios e imunidades em relação ao restante do sistema governamental, o que tornava a sociedade cristã ibérica bastante distinta, do ponto de vista jurídico, do restante da sociedade feudal européia.” – COSTA, Ricardo da. A guerra na Idade Média – Um estudo da mentalidade de cruzada na Península Ibérica. Rio de Janeiro: Edições Paratodos, 1998, p. 80.
  • 46. Cavaleiro-vilão – “Fruto direto da intensificação das guerras nas regiões fronteiriças, o cavaleiro-vilão era o homem livre, não-nobre, proprietário de grandes domínios que não tinham sido delegados por parte do rei, que ‘consagraram-se às armas’ e constituía o grupo local dominante. O elevado custo do equipamento militar (incluindo o cavalo) indica o alto nível econômico dos cavaleiros-vilãos, em relação aos peões” – COSTA, Ricardo da. A guerra na Idade Média – Um estudo da mentalidade de cruzada na Península Ibérica, op. cit., p. 109.
  • 47. Moio – O mesmo que módio
  • 48. Quarteiro (ou quarta) – A quarta parte do moio.
  • 49. Cavão – Cavador, pessoa que cava; teiga – Medida que correspondia aproximadamente a 2 alqueires.
  • 50. “...as operações militares eram designadas pelos termos ‘hoste’, ‘fossado’ e ‘apelido’, sendo ‘fossado’ o termo mais corrente (o fossado tomou este nome do acampamento protegido por fosso escavado artificialmente).” – COSTA, Ricardo da. A guerra na Idade Média – Um estudo da mentalidade de cruzada na Península Ibérica, op. cit., p. 82.
  • 51. Relego – Direito que o rei (ou qualquer senhor) possuía de vender com exclusividade seu vinho durante os três primeiros meses do ano.
  • 52. Foral de Penacova, publicado em Portugalia Monumenta Histórica – Leges et Consuetudines, vol. I, Kraus Reprint, Liechtenstein, 1967, p. 483-485. Citado em SPINOSA, Fernanda, Antologia de textos históricos medievais, Lisboa, Sá da Costa Editora, 1981, p. 183-185.
  • 53. Citado em ANDRÉ CAPELÃO, Tratado do Amor Cortês. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 207, n. 130.
  • 54. “Não sejas como o cavalo ou o jumento, que não compreende nem rédea, nem freio: deve-se avançar para domá-lo, sem que ele se aproxime de ti”, Sl 32, 9.
  • 55. ANDRÉ CAPELÃO, Tratado do Amor Cortês. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 206-208.
  • 56. Dialogus miraculorum, de Cesário de Heisterbach, ed. Strange, Colônia, 1851 (XII/48, XII/56, XI/18, XII/47). Publicado em DUBY, Georges, A Europa na Idade Média, São Paulo: Martins Fontes, 1988, p. 35-37.
  • 57. Gavela – Feixe de espigas.
  • 58. Medida colmada – medida cheia.
  • 59. Charte de l’abbaye de Beaulieu en Limousin, ed. M. Deloche, Paris, 1859. Citado em PEDRERO-SÁNCHEZ, Maria Guadalupe. História da Idade Média. Textos e testemunhas. São Paulo: Editora Unesp, 2000, p. 106-107.
  • 60. Ayuntamiento – Corporação composta de um alcalde (prefeito) e vários conselheiros para a administração dos interesses de um município hispânico.
  • 61. Crónica anónima de Sahagún primera, cap. 19. Edición: Julio PUYOL Y ALONSO. “Crónicas anónimas de Sahagún” en Boletín de la Real Academia de la Historia LXXVI (1920), 7-25. 111-123, 242-256, 339-356, 395-410, 512-519, y LXXVII (1920), 51-59; concretamente, pág. 245. Publicado por J. A. GARCÍA DE CORTÁZAR, Nueva Historia de España en sus Textos. Edad Media, Pico Sacro, Santiago de Compostela, 1975, pp. 560-461.
  • 62. “De todas las artes mecánicas, el arte de la agricultura es el más estimado por Ramón Llull, pues es para él el más próximo a la imagen divina. Esto lo hace uno de los filósofos más innovadores de entre todos los medievales que clasificaron las artes mecánicas y liberales. Los labradores labran la tierra y la maduran para que ella dé frutos. Por ello, son grandes filósofos, es decir, necesitan tener (y por supuesto tienen) la sabiduría de casi todas las artes liberales. Por ejemplo, deben pensar en la astrología – para saber el tiempo más conveniente para sembrar y cosechar – y deben saber también un poco de geometría y aritmética – para medir el campo y dividirlo, y así con las demás artes. Además de esto, con su trabajo los campesinos simbolizan el día de la muerte para todos los hombres, así como la condición falsa y engañosa de este mundo, pues ellos usan el estiércol, “que es cosa fea, sucia y hedienta”, y nos muestran como nuestras carnes crean gusanos. Aunque existan labradores envidiosos, codiciosos, impacientes y de mala voluntad – por causa de la gran pobreza en que viven y del gran menosprecio que reciben de las gentes – su arte es el más importante y necesario de todas. Y más: su arte, en este mundo, es el que mejor representa la gran justicia, la gran misericordia y el gran poder de Dios. Y por eso Ramón se pregunta: si todas las otras artes y oficios dependen de los labradores para existir, ¿por qué todos los demás hombres son contrarios a ellos y sus enemigos? ¿Y por qué los campesinos son tan menospreciados por todos? Este misterio se explica solamente por la semejanza del labrador con la Pasión de Jesucristo.” – COSTA, Ricardo da. Las Definiciones de las Siete Artes Liberales y Mecánicas en la Obra de Ramón Llull. São Paulo/Porto: CEMOrOc-USP IJI/Editora Mandruvá/Universidade do Porto (Faculdade de Direito – Instituto Jurídico Interdisciplinar). Série Especial de Livros da Revista Notandum, 2005, p. 26-27.
  • 63. Todo esse capítulo recorda passagens evangélicas. Aqui, por exemplo, Llull se refere explicitamente à parábola do semeador (Mt 13; Lc 8). O verso 10 recorda Jo 15, 1, e os 22 e 23 Mt 9, 38 e Lc 20, 2.
  • 64. “Las lágrimas tienen un profundo valor en la filosofía luliana. La Edad Media tuve una propensión a las lágrimas: la tradición monástica las consideraba un mérito, una recompensa, una sanción de la penitencia. Para los medievales, no había verdadera compunción sin lágrimas. La tradición monástica – que Llull sigue, a pesar de no tener sido monje – valoraba la compunción. En cuanto se mencionaba la “oración secreta”, pensaban en las lágrimas.” – COSTA, Ricardo da. Las Definiciones de las Siete Artes Liberales y Mecánicas en la Obra de Ramón Llull, op. cit., p. 16.
  • 65. RAMON LLULL, “Libre de contemplació”. InObres Essencials. Barcelona: Editorial Selecta, 1960, vol. II, p. 363-366 (tradução: Ricardo da Costa).
  • 66. “Fèlix o el Libre de Meravelles”, publicado em Obres Selectes de Ramon Llull (1232-1316) (ed. introd. i notes de Antoni Bonner), Mallorca, Editorial Moll, 1989, volume 2, p. 19-393 (tradução e notas de Ricardo da Costa e Grupo I de Pesquisas Medievais da Ufes [Bruno Oliveira – Eliane Ventorim – Priscilla Lauret]).
  • 67. Este exemplum contado pelo Boi à Na Renart (Dona Raposa) mostra bem o caráter estamental da sociedade medieval, isto é, a condição social do indivíduo era determinada por seu nascimento e sua função, não por sua riqueza material. Daí a possibilidade da existência de um camponês rico e um nobre pobre (“A maioria dos cavaleiros leva, numa casa rural, uma existência semicamponesa e dirige sozinho o cultivo de suas pequenas propriedades quando não precisa atender às funções bélicas; e não faltam fidalgotes famélicos [...] que mal conseguem custear suas armas e que são obrigados, para não descer ao nível dos camponeses, a lançar-se à aventura” (os grifos são nossos), CROUZET, Maurice [dir.]. História Geral das Civilizações. A Idade Média. O período da Europa feudal, do Islã turco e da Ásia mongólica [séculos XI-XIII]. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1994, vol. VII, p. 22).
  • 68. Passagem típica da mentalidade medieval de uma sociedade de ordens, onde tudo está encaixado, todos estão em seus devidos lugares e devem permanecer assim, pois a sociedade é um reflexo – apesar de imperfeito – do outro mundo, o mundo após a morte, da vida eterna. “A sociedade de ordens baseava-se num princípio de desigualdade, próprio da estrutura do cosmo. Implicava uma hierarquia, que, por sua vez, estruturava-se conforme a doutrina do corpo místico, adaptado à realeza (o rei, a cabeça, e as ordens, os membros)” – COSTA, Ricardo da. “Revoltas camponesas na Idade Média. 1358: a violência da Jacquerie na visão de Jean Froissart”. In: CHEVITARESE, André (org.). O campesinato na História. Rio de Janeiro: Relume Dumará / FAPERJ, 2002, p. 97.
  • 69. Na verdade, esta interessantíssima passagem mostra o conflito entre o “velho” (a mentalidade dos séculos XII-XIII) – o bispo que é humilde e aceita sua “condição vil” – e o “novo” (a mentalidade do século XIV, do fim da Idade Média) – o arcebispo que se vale de sua condição social para enriquecer seus parentes. Llull critica esses novos-ricos, sua opulência e sua falta de ética na busca desenfreada pelo enriquecimento pessoal. Mostra assim com bastante ênfase a crise de consciência do século XIII, o século do enriquecimento e das oportunidades nos grandes centros urbanos, centros de pecado para os moralistas como Llull.
  • 70. Árvore Questional”, publicado em RAMON LLULL, Obres de Ramon Llull (ed. Salvador Galmés), Palma de Mallorca, 1917, vol. XI, Tom III, p. 247-259, e RAMON LLULL. Obres Essencials (OE). Barcelona: Editorial Selecta, 1957, vol. I, p. 933-938.
  • 71. Nessas duas questões percebe-se o afeto que Llull tem pelos camponeses: “A arte da agricultura é a mais valorizada por Llull, porque, dentre outras coisas, compreende conhecimentos instrumentais com as outras artes e conhecimentos das lavouras e dos tempos de plantar e de colher.” – VILLALBA I VARNEDA, Pere. “L’Home com a Artista en l’Arbor Scientiae”, J. CORCÓ, A. FIDORA, J. OLIVES PUIG, J. PARDO PASTOR (coord.), Què és l’Home? Reflexions antropològiques a la Corona d’Aragó durant l’ Edat Mitjana, Barcelona, Prohom Edicions, 2004, p. 147-148.
  • 72. “A Idade Média era uma época cheia de contradições, em que as manifestações públicas de piedade e rigidez se faziam acompanhar de generosas concessões ao pecado, conforme se vê em grande parte da novelística da época, e existiam locais onde a prostituição era tolerada (e até aldeias-gineceus, freqüentadas por feudatários e chamadas de columbaria) (...). Além disso, o senso do pudor era certamente bem diferente daquele moderno, sobretudo entre os pobres, onde as famílias viviam promiscuamente, dormindo todos no mesmo aposento ou até no mesmo leito, e as necessidades corporais eram satisfeitas nos campos, sem grandes preocupações de privacidade (...) Existem textos, dos fabliaux franceses à novelística italiana e aos Contos de Canterbury de Chaucer, nos quais o aldeão é apresentado como um tolo, sempre pronto a ludibriar seu senhor, sujo, fedorento (em um conto, um pastor de asnos passa na frente da loja de um perfumista e fica tão tonto com aqueles aromas que desmaia e só volta a si quando o fazem cheirar imundícies) e, às vezes, como um Príapo, desfigurado por repulsivos atributos genitais. Isso não era, contudo, um exemplo da comicidade popular; era antes a expressão do desprezo e da desconfiança do mundo feudal e do mundo eclesiástico em relação aos camponeses. As deformidades do aldeão eram apreciadas com sadismo e ria-se deles e não com eles.” – ECO, Umberto (org.). História da feiúra. Rio de Janeiro: Editora Record, 2007, p. 137.
  • 73. Hirsuto (do lat. hirsutu) – guarnecido de pêlos compridos e bastos; eriçado, cerdoso; intratável, ríspido.
  • 74. “Um marido embaraçante – o escroto negro (séc. XII-XIV)”, publicado em ECO, Umberto (org.). História da feiúra. Rio de Janeiro: Editora Record, 2007, p. 136.
  • 75. Vila francesa em Flandres.
  • 76. Pequeno barril, barrilote.
  • 77. Irmão, irmã (frère, soeur): na época, tratamento carinhoso entre os esposos ou amantes.
  • 78. “Do vilão de Bailleul, de Jean de Boves”. InPequenas fábulas medievais: fabliaux dos séculos XIII e XIV. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 1-3.
  • 79. Cona (chulo) – vulva, cono.
  • 80. São Martinho de Tours (316-397) era um dos santos mais populares na Idade Média. Ver JACOPO DE VARAZZE. Legenda Áurea. Vidas de Santos. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 928-940.
  • 81. Na Idade Média, o símio representava os vícios do condenado, a caricatura do homem. Nos séculos XII e XIII era freqüente o emprego metafórico da palavra simia. Ernest Curtius oferece vários exemplos do emprego da metáfora do macaco pelos medievos. Por exemplo, no século XII, Alain de Lille (Sententiae [PL, 210, 249D]): “quid mundanae potestates, nisi potestatum histriones? Quid saeculares dignitates, nisi dignitatum larvae et simiae? (Que são os poderosos mundanos senão histriões do poder? Os dignitários seculares, senão máscaras e macacos das dignidades?) Ver CURTIUS, Ernest Robert. Literatura Européia e Idade Média Latina, São Paulo, HUCITEC, 1996, p. 655.
  • 82. Santo Etampes certamente é um santo regional, pois Étampes (Departamento de Essonne) era uma importante vila medieval já no tempo do rei Roberto II, o Piedoso (996-1031).
  • 83. “II. O vilão e o camundongo”. InPequenas fábulas medievais: fabliaux dos séculos XIII e XIV. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 4-8.
  • 84. “IX. Do vilão que conquistou o Paraíso defendendo sua causa”. InPequenas fábulas medievais: fabliaux dos séculos XIII e XIV. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 44-47.
  • 85. Também se acreditava que no momento da morte a alma saía pela boca. Ver COSTA, Ricardo da. “A meditatio mortis no Livro do Homem (1300) de Ramon Llull”, Conferência proferida no Gabinete de Filosofia Medieval da Faculdade de Letras da Universidade do Porto (Portugal) no dia 20 de maio de 2005, Internet, http://www.ricardocosta.com/pub/meditatio.htm
  • 86. O conto de Audigier (Méon IV, 217-233), paródia das canções de gesta, era célebre na Idade Média.
  • 87. Cocusse apresenta grande semelhança fonética com cocu: chifrudo.
  • 88. “XXXVII. O peido do vilão, por Rutebeuf”. InPequenas fábulas medievais: fabliaux dos séculos XIII e XIV. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 204-205.
  • 89. “O vilão do asno”. In: Fabliaux. Erótica Medieval Francesa. Poesia erótica e satírica francesa – séculos XIII-XIV. Lisboa: Editorial Teorema, 1997, p.13-15.
  • 90. “A situação feminina era ainda pior nas camadas sociais inferiores (burgueses e camponeses). Naturalmente, a descoberta da cortesia nas classes altas do século XII não se difundiu rapidamente por todo o corpo social. No século XIV um texto do direito de Aardenburgo (cidade flamenga que seguia o costume de Bruges) é muito chocante no que diz respeito à condição das mulheres burguesas: “Um homem pode bater na sua mulher, cortá-la, rachá-la de alto a baixo e aquecer os pés no seu sangue; desde que, voltando a cosê-la, ela sobreviva; ele não comete nenhum malefício contra o senhor”. Portanto, um homem não cometia nenhuma infração jurídica se batesse em sua mulher, desde que não a matasse (Costume de Namur de 1558, art. 18). Ainda no século XIV, os camponeses de Montaillou surravam suas mulheres regularmente. Surras conjugais.” – COSTA, Ricardo da e COUTINHO, Priscilla Lauret. “Entre a Pintura e a Poesia: o nascimento do Amor e a elevação da Condição Feminina na Idade Média”. In: GUGLIELMI, Nilda (dir.). Apuntes sobre familia, matrimonio y sexualidad en la Edad Media. Colección Fuentes y Estudios Medievales 12. Mar del Plata: GIEM (Grupo de Investigaciones y Estudios Medievales), Universidad Nacional de Mar del Plata (UNMdP), diciembre de 2003, p. 10.
  • 91. Os médicos eram conhecidos como físicos. “Os medievais davam uma importância tão grande ao exame da urina para o diagnóstico das doenças que um dos maiores médicos do século XIV, Arnau de Vilanova, escreveu um Tractatus de urina (que se conservam manuscritos em Paris e Munique). O exame de urina tornou-se tão popular que muitos lugares adotaram o urinol como emblema do médico.” – SOUSA, Jorge Prata de, e COSTA, Ricardo da. “Corpo & alma, vida & morte na medicina ibérica medieval: o Regimento proveitoso contra a pestilência (c. 1496)”. In: História, Ciência, Saúde – Manguinhos. Rio de Janeiro: Casa de Oswaldo Cruz/Fundação Oswaldo Cruz, volume XII, número 3, 2005.
  • 92. Saumur – Importante vila medieval localizada entre Angers e Tours, a sudoeste de Paris. Saumur se desenvolveu a partir do século XII ao redor de um importante castelo.
  • 93. Hidrópico – Quem sofre de hidropisia (acumulação anormal de fluido nas cavidades naturais do corpo ou no tecido celular).
  • 94. Zedoária (do árabe zidwar) – Assim como o gengibre, a zedoária pertence à família das zingiberáceas (plantas monocotiledôneas), cuja raiz tem propriedades medicinais.
  • 95. “O camponês médico”. In: Fabliaux. Erótica Medieval Francesa. Poesia erótica e satírica francesa – séculos XIII-XIV. Lisboa: Editorial Teorema, 1997, p.71-86.
  • 96. Prelatura – Cargo de prelado (título honorífico de dignitário eclesiástico).
  • 97. A disputa entre Pedro, o clérigo, e Ramon, o fantástico, publicado em BADIA, Lola. “Versió catalana de la Disputa del clergue Pere i de Ramon, el Fantàstic”. InTeoria i pràtica de la literatura en Ramon Llull. Barcelona, Edicions dels Quaderns Crema, 1991, p. 211-229 (trad.: Ricardo da Costa).
  • 98. Para uma análise da Jacquerie, veja COSTA, Ricardo da. “Revoltas camponesas na Idade Média. 1358: a violência da Jacquerie na visão de Jean Froissart”. In: CHEVITARESE, André (org.). O campesinato na História. Rio de Janeiro: Relume Dumará / FAPERJ, 2002 (disponível na Internet, http://www.ricardocosta.com/univ/jacquerie.htm).
  • 99. O rei de Navarra era Carlos II, o Mau (1349-1387).
  • 100. Hospital – Na Idade Média, um hospital era uma espécie de hospedaria dedicada a receber pobres, doentes e, sobretudo, peregrinos e viajantes – especialmente os que iam para a Terra Santa. Por exemplo, a Ordem do Hospital de São João de Jerusalém, criada em 1048 e transformada em uma ordem monástico-militar em 1120, tinha exatamente essa atividade: o obsequium pauperum, o serviço dos pobres e a atividade hospitalar (além da tuitio fidei, a proteção da fé ou dos fiéis e de seus territórios). COSTA, Ricardo da. A Guerra na Idade Média. Um estudo da mentalidade de cruzada na Península Ibérica. Rio de Janeiro: Edições Paratodos, 1998, p. 123 e SAUNIER, Annie. “A vida quotidiana nos hospitais da Idade Média”. In: LE GOFF, Jacques (apres.). As doenças têm história. Lisboa: Terramar, 1985, p. 205-220. No entanto, a palavra hospital também designava simplesmente a residência de alguém.
  • 101. O conde de Foix era Gastão III Phoebus (ou Febus, 1331-1391), autor de duas importantes obras literárias, “El libro de la caza” e “El libro de las oraciones”. O condado de Foix compreendia o território da vila de igual nome (surgida no séc. IX). Anteriormente (durante o período romano), formou parte da Civitas Conseranorum (que, mais tarde, de nome ao condado de Conserans). Pertenceu inicialmente ao ducado da Aquitânia (e depois ao condado de Tolosa, que, por sua vez, passou ao de Conserans em 983). Bernardo I (conde de Conserans e senhor de Foix, 1012-1035/38) erigiu o senhorio em 1012 para seu filho Bernardo Roger I (1035/38-1064) e este, na condição de senhor feudal, o legou a seu filho Roger I.
  • 102. O nome do captal de Buch (Senhor de Buch, uma vila) era Jean III de Grailly, um modelo de cavaleiro em sua época, confidente do príncipe negro, Eduardo, príncipe de Gales (1330-1376, filho mais velho e herdeiro do rei Eduardo III da Inglaterra). Captal era um título feudal da Gasconha. A designação captal (capital, captau, ou capitau) foi aplicada aos nobres mais ilustres da Aquitânia (condes, viscondes, etc.) provavelmente como senhores capitais, senhores principais. Como título real, a palavra foi usada somente pelos senhores de Trene, de Puychagut, de Epernon e de Buch.
  • 103. Quarenta lanças – Cerca de 120 homens (ou seja, uma lança correspondia a três homens).
  • 104. Publicado em JEAN FROISSART, Crónicas, ed a cargo de Victoria Cirlot y J. E. Ruiz Domenec, Madrid, Ediciones Siruela, 1988, p. 177-184.
  • 105. Mitene – Luva de senhora que cobria o metacarpo e deixava descobertos os dedos, exceto, às vezes, o polegar; punhete.
  • 106. “Vacas hécticas” – Vacas extremamente fracas., tão magras que se podia contar-lhes as costelas.
  • 107. Pierce the Ploughmans Crede, ed. W. W. Skeate, Londres, 1867, p. 16-17, v. 429-442 (Early English Text Society, Original Series, 30). Publicado em DUBY, Georges, A Europa na Idade Média, São Paulo: Martins Fontes, 1988, p. 160-161.
  • 108. No final do século XIV e início do XV, os camponeses da Catalunha se revoltaram contra seus senhores. As piores sublevações foram nos anos 1413, 1448 e 1462, basicamente por três motivos: 1) peste, 2) baixa produtividade agrícola e 3) desordens climáticas e naturais (excesso de chuvas e pragas – de lagosta, por exemplo). BALCELLS, Albert (dir.). Història de Catalunya. Barcelona: L’esfera dels llibres, 2005, p. 298-299. As querelas só seriam dirimidas com a Sentença Arbitral de Guadalupe, em 1486, sob o reinado de Fernando II de Aragão, o Católico (1452-1516). A sentença real previa que os camponeses poderiam redimir os maus usos e outros direitos senhoriais (conhecidos como consuetuds iniqüesIus maletractandi, costumes iníquos). Foi confirmada a jurisdição senhorial (o direito de o senhor julgar seu vassalo e impor multas e sanções em tribunais civis). Fernando II absolveu alguns camponeses e castigou severamente outros.
  • 109. A reação dos senhores nesse assunto é de surpresa, como se não soubessem do fato. Na verdade, o tema é controverso: isso que ficou conhecido como Jus primae noctis ou droit du seigneur (na França) atualmente tem sido motivo de revisão historiográfica. Boa parte dos historiadores atualmente considera o tema uma lenda, ou mesmo uma invenção posterior (a prática foi descrita na literatura européia do século XVI). Por exemplo: “Embora o repertório se tenha decantado um pouco, nem por isso deixou de chegar até nós, como verdade atestada, o famoso ‘direito de primeira noite’, que permitia ao senhor ser o primeiro a possuir a esposa de cada um de seus vassalos (...) Nas últimas décadas efetuaram-se várias pesquisas rigorosas sobre este assunto, que levaram a conclusões muito diferentes e só retém o aspecto financeiro de uma taxa sobre o casamento dos servos; mas esses trabalhos mantiveram-se (e continuam a manter-se...) confidenciais, e nunca foram retomados pelos livros de grande difusão. Ninguém fez caso deles, e continuou-se, de maneira mais ou menos direta, a dar crédito a toda a espécie de lendas.” – HEERS, Jacques. A Idade Média, uma impostura. Porto: Edições Asa, 1994, p. 172-173. E também Adeline Rucquoi: “...empecemos con este famoso ‘ius primae noctis’ o ‘derecho de la primera noche’, vulgarmente llamado ‘derecho de pernada’. Este derecho existió efectivamente, escrito u oral, en el corpus jurídico medieval. En la práctica, no se atestigua más que en la época en que se ha convertido a menudo en el pago de una cierta cantidad monetaria al señor por el campesino que se casa; en los casos en que este derecho señorial no fue transformado en un censo más, la ‘ceremonia’ consistía en que el señor -literalmente- franqueaba de una zancada el cuerpo de la novia y recibía a cambio un par de gallinas o un bote de miel. Si examinamos además esta costumbre ‘bárbara’ y ‘arcaica’ a la luz de los estudios etnológicos actuales, nos damos cuenta de que, en muchas sociedades llamadas primitivas, existe una especie de ‘tabú’ de la sangre virginal en el momento de la desfloración; siendo ésta una operación que libera fuerzas malignas, al liberar sangre, se la confía a menudo a manos investidas de más poder -mágico, religioso u otro-, como las del padre o de la madre de la chica, del sacerdote-brujo, de un extranjero o del jefe de la tribu. Enfocado así, nuestro famoso ‘derecho de pernada’ no es más que la supervivencia, en una sociedad todavía no cristianizada en profundidad, de unos ritos ancestrales de tabú de la sangre virginal; y deja por lo tanto de ser una manifestación más de la opresión sádica y arbitraria que ejercería el señor sobre su inferior. No olvidemos, por otra parte, que el señor suele vivir dentro de un grupo que incluye su familia en el sentido amplio, sus criados de ambos sexos y tos niños nacidos en el castillo, legítimos o bastardos (como lo demuestran las últimas investigaciones del historiador francés Georges Duby), y que las novias de sus siervos o campesinos no deben aparecernos como siempre guapas y jóvenes; en una sociedad rural que padece hambre y epidemias, se las puede más fácilmente imaginar como prematuramente marcadas, sucias, cubiertas de piojos y pulgas y, por lo tanto, seguramente poco apetecibles. Al señor, en general, le debía ser mucho más provechoso convertir esa ‘obligación’ de su parte en una renta más, a pagar por el novio en el momento de la boda.”, RUCQUOI, Adeline. “La mujer medieval: fin de un mito”. In: Historia 16, 1978, Internet, http://www.vallenajerilla.com/berceo/florilegio/rucquoi/mujermedieval.htm
  • 110. Citado em PEDRERO-SÁNCHEZ, Maria Guadalupe. História da Idade Média. Textos e testemunhas. São Paulo: Editora Unesp, 2000, p. 108-109.