Os Sonhos e a História

Lo Somni (1399) de Bernat Metge

Resumo: No final do século XIV, Bernat Metge, funcionário da Chancelaria do rei João I de Aragão, o Caçador (1350-1396), redigiu sua obra mestra, Lo somni (O sonho), texto que praticamente introduziu, de modo precoce, o Humanismo na Península Ibérica. A proposta dessa conferência, após a definição prévia do conceito de Humanismo, é apresentar a nossa tradução da obra, a primeira em língua portuguesa (e a partir do texto original, em catalão antigo), trabalho desenvolvido no âmbito do projeto IVITRA (Institut Virtual Internacional de Traducció – Universitat d’Alacant). A seguir, discorreremos sobre a estrutura e o conteúdo de Lo somni, seu universo literário-filosófico, para analisar, de modo mais incisivo, o último e instigante tema abordado na obra: a imagem literária da condição feminina no final da Idade Média.

Abstract: At the end of the fourteenth century, Bernat Metge, an official of the Chancellery of King John I of Aragon, called the Hunter (1350-1396), wrote his masterpiece, Lo somni (The dream), literary text who introduced so early the Humanism in the Iberian Peninsula. The purpose of this conference, after the previous definition of the Humanism concept, is to present our translation of the work, the first to Portuguese (and from the original text in ancient Catalan), work development under the IVITRA Project (Institut Virtual Internacional de Traducció – Universitat d’Alacant). Hereafter, we will discourse the structure and content by Lo somni, his literary and philosophical universe, to analyze, in an incisive way, the last and provocative issue discussed in the work: the literary image of female condition in the end of Middle Ages.

Palavras-chave: O Sonho – Bernat Metge – Literatura medieval – Humanismo –Tradução.

Keywords: The Dream – Bernat Metge – Medieval Literature – Humanism – Translation.

I. Sonhamos. Sempre

1899. Viena. A Interpretação dos Sonhos (Traumdeutung) veio à luz. Sigmund Freud (1856-1939) considerava essa obra a “chave” de acesso à sua Psicanálise. Para o médico austríaco, os sonhos, os pensamentos oníricos, eram como um mistério, uma charada, um enigma que só poderia ser desvendado caso se conseguisse substituir as imagens aparentemente absurdas por um texto, as figuras por sílabas ou palavras, para assim se ter acesso ao inconsciente. O historiador Peter Gay (1923- ) resumiu muito bem o axioma freudiano: “O sonho é uma realização dos desejos”.

 

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A visão do sonho (1525). Dürer (1471-1528). Em uma carta, Dürer criou essa imagem. No texto da missiva que acompanha o desenho, o artista alemão descreve um sonho apocalíptico que teve em junho daquele ano. Na cena, uma paisagem com árvores dispersas (à esquerda) presencia uma enorme coluna de água que jorra do céu. O sonho de Dürer aconteceu em um período de grandes incertezas religiosas, no tempo da Reforma (séc. XVI), quando muitas pessoas temiam o fim do mundo com um dilúvio.

Já há alguns anos, outro historiador, Peter Brown (1935- ) chamou a atenção para um dos perigos que corre o historiador: o esquecimento de que a Humanidade passou uma boa parte de suas vidas a dormir. De fato, as pessoas sonharam! Os sonhos foram (e ainda o são) “esquecidos” pela História, particularmente por outra persistente tradição gnóstica do século XX (palavras de Paul Johnson [1928- ]), o Marxismo, que transferiu o sonho para a esfera da Utopia, transformando-o em pensamento real, ação, combate.

No entanto, a “descoberta” de Freud é uma característica muito típica da Modernidade: estamos sempre a reinventar a roda, quando não a distorcemos, como é o caso de Freud. Sim, tanto Freud quanto Marx (1818-1883) foram, para o crítico literário George Steiner (1929- ), maravilhosos mitólogos, construtores de alegorias, belas, mas essencialmente mitológicas.

Ao contrário do que creram os marxistas, Marx não descobriu a fórmula da História; ao contrário do que pensam os psicanalistas, Freud não inventou a roda. Os sonhos sempre estiveram na pauta da Humanidade, seja como um fenômeno cultural que deveria ser interpretado, seja como motivo filosófico, político ou literário, como é o caso de Lo somni, de Bernat Metge (c. 1340-1413).

O século XV, tempo de Metge, concedeu aos sonhos um lugar proeminente na Literatura, na Arte, na via do Pensamento, como já bem destacou Jacques Le Goff (1924- ). Lo somni, portanto, nada mais é do que uma manifestação, notável, decerto, porém mais uma expressão literária de seu tempo. Um sonho medieval pré-humanista. Para interpretar algumas de suas belas alegorias, devo antes definir, mesmo que sumariamente, o que foi o Humanismo.

 

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Esta mulher deitada de barro foi encontrada em um dos poços do Hypogeum, em Hal Saflieni (Malta). Com a coloração ocre, foi provavelmente representação de uma “deusa mãe”, embora também possa significar uma representação da morte, ou mesmo do sono eterno. Datação: c. 4000-2500 a. C. Museu Nacional de Valetta, Malta.

II. Humanismo, um velho e recorrente tema

Em 1347, Petrarca (1304-1374) terminava a redação da obra De otio religioso, quando fez uma confissão:

Tarde, ou antes, já velho, começava, sem qualquer luz, a parar meu caminho ou mesmo, pouco a pouco, a retroceder, quando, pela vontade Daquele que se serve sempre de nossos males para a sua glória e, sobretudo, para nossa salvação, me vieram ao encontro as Confissões de Agostinho. Alcancei as minhas próprias incertezas e, se eu desejasse percorrê-las uma vez mais, deveria dar início também eu a um grosso livro de confissões.

Por que eu não deveria dizer dele o mesmo que ele diz de Cícero? Foi ele que me alçou, pela primeira vez, ao amor pela verdade; foi ele que me ensinou, pela primeira vez, a suspirar pela minha saúde, eu que por tempos havia suspirado primeiramente pela minha ruína. Repouse em eterna felicidade aquele de cujas mãos se me ofereceu, pela primeira vez, aquele livro que pôs um freio à minha alma inquieta! Agradou-me o engenho vigoroso e excelso de seu autor, o estilo não muito elaborado, mas sóbrio e grave, a doutrina rica, fecunda e vária. Comecei por segui-lo com certa timidez, como quem se envergonha de mudar seus propósitos, típica atitude de um espírito soberbo.

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O sonho de Carlos Magno (c. 1220). Pintor gótico anônimo. Chartres, França. O sonho é uma presença real em todos os âmbitos da vida medieval – no caso, especialmente os sonhos régios e de religiosos.

Nesse tratado que exalta a vida monástica e o ócio como o melhor modo de vida possível, Petrarca, de modo soberbo, revela que o tempo é um eterno continuum. Ao contrário do que pensam muitos historiadores, mais preocupados em fixar limites, precisar etapas, determinar épocas, a História se move como um incessante ato teatral: somos espectadores do infindável descortino do gênero humano. Por isso, em certo sentido, é inútil enquadrar as épocas e as pessoas, pois elas vivem o seu tempo, que é sempre a convivência existencial de múltiplos tempos e de diferentes ritmos, como já ensinou Fernand Braudel (1902-1985).

De qualquer modo, é necessário precisar conceitos e determinar, com o máximo rigor possível, o universo semântico que o estudioso do passado utiliza para ressuscitar aquele mesmo passado, morto, enterrado, mas sempre raiz de nosso presente. Por isso, devo discorrer, mesmo que brevemente, sobre as palavras de que me valho nessa reconstituição literária compreensiva. A primeira é o termo Humanismo.

Petrarca tinha apenas dezessete anos quando Dante (1265-1321) morreu. No entanto, novas formas de sentir e pensar o mundo estavam brotando, a partir de antigas concepções filosóficas, teológicas e literárias, ou seja, da tradição clássico-medieval. O próprio Dante, com suas ideias a respeito da separação entre as ordens espiritual e material (Da Monarquia), expressava uma cisão com o mundo que lhe antecedia, mundo de um Inocêncio III (c. 1161-1216), de um Bernardo de Claraval (1090-1153). Todos os tempos têm permanências e rupturas.

 

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Vênus adormecida (c. 1510), de Giorgione (1477-1510). Óleo sobre tela, 108,5 × 175 cm. Gemäldegalerie, Dresde, Alemanha. O artista explorou ao máximo as possibilidades eróticas do tema: a suave inclinação do corpo em relação à paisagem; a axila direita exposta (símbolo da sexualidade); os lábios vermelhos da deusa e o rubro veludo; o sonho como uma transferência poética para um mundo idílico (a paisagem ao fundo, também levemente inclinada); a mão esquerda suavemente posta sobre o sexo. Os devaneios oníricos do século XV abrangiam uma alta dose de sexualidade pagã – ainda não em Petrarca, naturalmente.

De fato, caso queiramos efetivamente adentrar no tempo histórico, no passado, devemos polir nossa linguagem para nos aproximarmos dos mortos. Limpar o caminho regressivo. Por exemplo, sequer o conceito Humanismo existia então. Trata-se, como, aliás, o próprio conceito de Idade Média, de uma definição muito posterior. Os próprios medievais se intitulavam modernos, já afirmara Bernardo de Chartres (†c. 1124)!

Com esse cuidado hermenêutico em vista, defino o Humanismo como uma ideia de duas vertentes, a primeira geral e a segunda específica: 1) a crença na dignidade do homem e nos valores seculares, e 2) um nome atribuído aos estudiosos dos studia humanitatis do século XV (Gramática, Retórica, Ética, Poesia e História).

 

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O sonho de Joaquim (1304-1306), de Giotto (1266-1337). Afresco, 200 x 185 cm, Cappella degli Scrovegni, Vêneto, Itália. Pai de Maria, Joaquim se retirou para o deserto, a fim de meditar e orar. Ele fora censurado por um sacerdote por não ter filhos (sua esposa Ana, era idosa e estéril). Um anjo do senhor lhe apareceu para dizer que Deus ouvira as suas preces. Ao retornar para casa, Ana estava grávida. Giotto representa a anunciação do anjo a Joaquim por meio de um sonho. O afresco de Giotto é um exemplo perfeito do sonho permitido, pois sagrado.

Petrarca foi o primeiro personagem histórico no qual se pôde detectar uma nova postura intelectual diante da tradição clássica/medieval, qual seja, a recuperação do latim clássico, o interesse histórico com bases filológicas, o progressivo abandono da Dialética pela Literatura.

III. O Humanismo em terras ibéricas

Os estudos dos clássicos nunca foram interrompidos na Idade Média. Talvez seja melhor especificar que o Humanismo aprofundou, intensificou, estimou as obras dos antigos mais que os medievais. Nessa perspectiva, o fio condutor da civilização, a Cultura – as Artes a Literatura, a Poesia, a Música, a Filosofia – nascida na Grécia, acolhida e desenvolvida por Roma, foi prolongada pela Europa medieval e revigorada pelos “modernos”, o que explica a conjugação que Petrarca faz entre as “novas” ideias e a tradição cristã.

Para dar apenas um exemplo do apreço dos medievais pela tradição clássica, na Península Ibérica, desde a Espanha visigoda (sécs. V-VIII), os três centros irradiadores da cultura greco-romana (Toledo, Sevilha e Zaragoza) mantiveram viva a chama da Antiguidade. Suas escolas trabalhavam com os seguintes autores antigos na formação dos noviços: para a Poesia (muito estimada na Idade Média), Lucrécio (99-55 a. C.), Virgílio (70-19 a. C.), Marcial (40-104) e Claudiano (c. 370-405 a. C.); na História, extratos de Plínio, o Velho (23-79) e Salústio (86-34 a. C.), e na Filosofia, Sêneca (4 a. C. - 65 d. C.). Além disso, esses noviços e seus mestres conheciam resumos de Marciano Capela (séc. V) e Fulgêncio, o Mitógrafo (séc. V).

Tudo isso sem contar a produção de um Isidoro de Sevilha (c. 560-636), verdadeiro transmissor da cultura antiga aos contemporâneos. Foi essa tradição cultural clássica peninsular que permitiu o Renascimento carolíngio dois séculos depois. Assim, de renascimento em renascimento, a Idade Média manteve a cultura clássica, sempre com o mundo antigo como referência vital para a vida do espírito.

Mas não é meu objetivo contar a história da permanência da tradição clássica na Idade Média. Isso fugiria do escopo do tema. Para ele, basta dizer que, no século XIV, havia um razoável círculo social de pessoas na Europa que não pertenciam a qualquer ordem religiosa ou à Igreja, e que tinham uma formação acadêmica (via de regra, burocratas dos emergentes estados nacionais, ou ainda, formandos das quase cinquenta universidades que pululavam na Europa de então – desde Bolonha até Oxford, passando por Pádua, Montpelier, Toulouse, Paris, Heidelberg etc.).

A Península Ibérica tinha as universidades de Palência, Salamanca, Sevilha, Valladolid, Lérida e Huesca – a de Barcelona só seria fundada em 1450. No caso de Portugal, em 1290 foi instituída em Lisboa, pelo rei D. Dinis, com autorização papal, a primeira universidade portuguesa. Ela foi transferida para Coimbra em 1308, depois retornou a Lisboa, oscilando durante dois séculos entre as duas cidades, até fixar-se, no século XVI, definitivamente em Coimbra. No caso de Aragão, pessoas ligadas à Chancelaria régia tinham acesso a um universo bibliotecário inusitado. Com uma biblioteca em casa, alguns eram bibliófilos, como o notário e escrivão do Conselho da Cidade de Barcelona Bernat d’Esplugues (†1433).

Trata-se, como se pode perceber, da aceleração da vida cultural, esse misterioso mecanismo oculto de Cronos: os germens desse desenvolvimento cultural/educacional já existiam na Alta Idade Média, época de semeadura, mas, agora, era tempo da colheita farta. Foi nesse ambiente social que viveu Bernat Metge (c. 1340-1413), que, à semelhança de Petrarca, uniu o “novo” com o “velho”, como bem afirmou a filóloga Julia Butiñá, ao resumir o conteúdo dos quatro livros de Lo somni: o primeiro, com o pensamento livre de quaisquer prevenções e condicionamentos; o segundo, com a religião, firmemente assentada; o terceiro e o quarto, com a ética como ponto final do humano, e uma doutrina moral renovada e aprofundada. Metge praticamente “inaugurou” o Humanismo em terras ibéricas, como veremos a seguir.

 

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O sonho de São Martinho (1312-1317), de Simone Martini (1284-1344). Afresco, 200 x 265 cm, Cappella di San Martino, São Francesco, Assis. Após entregar seu manto ao mendigo, Martinho sonha. No devaneio onírico, Cristo revela sua identidade, enquanto o exército angélico O acompanha, em estado de prostração.

IV. O homem

Bernat Metge era filho de Agnes e Guillem Metge, especieiro vinculado à casa real. Guillem morreu em 1359, mas deixou marca profunda em Bernat, pois este, em seus escritos, demonstra ter conhecimentos não só de Medicina, mas também do que então era chamado de Filosofia natural.

Viúva, Agnes se casou novamente com Ferrer Saiol, membro da Chancelaria Real – órgão administrativo da coroa de Aragão. Saiol chegou a ser protonotário da rainha Eleanor da Sicília (1325-1375), terceira esposa do rei Pedro III, o Cerimonioso (1319-1387). Graças ao incentivo do padrasto, Bernat pôde desenvolver seus dotes literários pari passu com a carreira de notário real. Isso porque a Chancelaria tornou-se um órgão de produção de documentos, e seu funcionamento dependia de técnicos especialistas em redação (os textos de Metge revelam um domínio da sintaxe que tinha como base o modelo do latim clássico – por exemplo, o recurso a várias orações subordinadas).

A evolução profissional de Metge foi rápida: em 1375, ele já havia entrado para o serviço do rei João I, o Caçador (1350-1396), na qualidade de escrivão e também secretário. A partir de então, Metge envolveu-se diretamente na política de seu tempo, já que João I entregou-lhe tarefas importantes, como, por exemplo, uma embaixada à corte papal em Avignon (em 1395), onde provavelmente Metge tomou contato com textos de Petrarca.

Essa intensa atividade política, como se vê, não o impediu de prosseguir os estudos clássico-literários. No entanto, seu envolvimento com o poder causou-lhe sérios contratempos: mais de uma vez ele foi acusado (judicialmente) de corrupção – provavelmente sem fundamento, pois foi absolvido. Com a morte súbita de João I (em 19 de maio de 1396) – durante uma caçada em um bosque – Metge foi novamente processado, juntamente com trinta e oito conselheiros e oficiais do rei, por um conselho de regência formado por conselheiros municipais. Detalhe: formavam parte desse conselho justamente as pessoas que estavam sendo investigadas pelo rei (com Metge à frente da investigação)! Assim, o ambiente social e político estava fervilhando: além da peste que grassava na Catalunha, havia o rumor de que tropas francesas iriam uma vez mais invadir o reino (entre 1360 e 1396 foram onze tentativas)!

Era esse o turbulento contexto histórico da redação de Lo somni. Os acusados só foram definitivamente inocentados – todos – em dezembro de 1397, quando os principais conselheiros e curiais de João I reassumiram seus cargos na corte de Martim I, o Humano (1356-1410), irmão de João I (que morrera sem filhos), inclusive Bernat Metge. Por isso, antes de tudo, Lo somni é um diálogo-justificativa, uma retratação, um (notável) recurso à Literatura para angariar a simpatia do público letrado.

Afinal, além das acusações – mesmo que infundadas, elas sempre repercutiram junto ao povo – Metge era conhecido por suas posições existenciais de cunho epicúreo, inclusive algumas opiniões pouco cristãs... Portanto, fazia-se necessário um mea culpa, uma retratação pública. Mas como? Por meio da Literatura. Haveria instrumento mais digno e mais honrado do que esse?

V. A obra

Primeiro, o cenário: a prisão. Encarcerado, Metge – seu alter ego – está desconsolado. Seus inimigos, “perseguidores e invejosos”, venceram. Seu consolo era o estudo, mesmo na solidão do cárcere, à espera da condenação. Uma noite, ele adormeceu, mas de um modo estranho: como os “doentes e os famintos” costumam dormir. Então, surge-lhe o rei João I, recentemente falecido, acompanhado por Orfeu e Tirésias, além de aves e cães.

Bernat inicia um longo diálogo com o rei. Esse é o cenário no qual se desenrola a conversa: a cela de uma prisão, em um sonho, com um morto e dois personagens da mitologia grega! Portanto, além de uma justificativa literária ao público culto, Metge também cria um texto consolatório, no melhor estilo de Boécio (c. 480-525) e sua Consolação da Filosofia (524).

 

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Boécio, A Consolação da Filosofia, manuscrito italiano (1385), MS Hunter 374 (V.1.11), folio 4r (detalhe).

O mesmo cenário, o mesmo motivo, a mesma desgraça. No texto de Boécio, quem lhe surge, belíssima, é a própria Filosofia, enquanto que na obra de Metge a aparição é a de seu senhor, o rei. Nesse aspecto, Lo somni se assemelha ao Sonho de Cipião (54 a. C.), de Cícero (106-43 a. C.). Nele, quem surge a Cipião Africano (185-129 a. C.) que dorme um sono “mais pesado que o de costume” é seu avô Cipião Africano, o Velho (236-183 a. C.).

Lamento, sonho, consolo. Trilogia clássica na história da Filosofia, da Literatura. Construído o cenário, nosso autor desenvolve os diálogos em quatro livros, com os seguintes temas:

Livro I –    Diálogo entre Metge e o rei João I a respeito da imortalidade (ou não) da alma, e seu destino após a morte do corpo. João tenta mostrar a Metge que a alma é imortal, enquanto nosso autor se recusa a aceitar isso. A argumentação de ambos baseia-se fundamentalmente na razão;

Livro II –   A conversa entre os dois nesse capítulo gira em torno dos fatos ocorridos em 1396 e o Grande Cisma da Igreja (1378-1417). O rei João explica o sentido de sua morte e os acontecimentos subsequentes;

Livro III –  Orfeu explica sua vida, seu amor por Eurídice, quando é recriminado por Tirésias, e descreve o Inferno. Tirésias também conta a sua vida e faz uma grande diatribe contra as mulheres;

Livro IV – Metge faz uma contundente defesa das mulheres e do amor.

A perda da liberdade sempre foi um forte motivo literário. Recorrente. Como o tema do Inferno. Mas apesar de elegante, o texto de Lo somni tem uma divisão interna à primeira vista paradoxal, pois se tem a impressão de que os temas dos capítulos são desconexos. Qual a relação entre a imortalidade da alma e a crítica (virulenta) às mulheres? E o amor com o Cisma da Igreja? Aparentemente, a obra é composta por partes isoladas, ligadas somente pelo fio tênue do diálogo entre os personagens.

A resposta, clara para os medievais, é de difícil compreensão hoje por um simples motivo: perdemos a transcendência, a conexão deste mundo – “século”, para eles – com o outro mundo, o Além.

As pessoas entendiam a realidade como uma perpétua e necessária conexão de mundos. Os literatos, os filósofos inclusive. A função da verdadeira Literatura, da Filosofia, de fato, era preparar o sábio para a morte, tema repetidas vezes reiterado desde A República e o Fédon, de Platão (c. 427-327 a. C.). Portanto, preservar a alma, cuidar dela nesta vida para que seu trespasse fosse tranquilo e direcionado ao descanso eterno, era a finalidade moral de todo escrito que se prezasse.

Por exemplo, em Lo somni, João I tenta, de todos os modos possíveis, inclusive elencando uma penca de filósofos e poetas, provar ao cético Bernat – que só crê no que vê – que sua alma existe e deve procurar a virtude: amar o Bem, não os prazeres carnais (as mulheres), e escolher a verdadeira religião (sobre o problema do Cisma da Igreja). Todos os temas de obra são ligados por esse fio condutor: a preocupação com o Além. Caso retiremos esse pano de fundo, a compreensão dos textos medievais – e antigos, naturalmente – ficará obnubilada.

Por sua vez, explicar a escolha dos personagens é mais fácil: Metge escolheu Orfeu e Tirésias para acompanhar João I pelos temas expostos: por Orfeu tratar do amor, e por Tirésias repetir a misoginia literária clássica pelo fato de ter sido mulher. Trataremos do papel de Tirésias no discurso contra as mulheres a seguir.

VI. As mulheres, por Tirésias

 

Lo somni (Llibre III, viii, 32).

Ffembra és animal inperfet, de passions diverses, desplasents e abhominables, passionat, no amant altra cosa sinó son propri cors e delits. E si·ls hòmens la miraven axí com deurien, pus haguessen fet ço que a generació humana pertany, axí li fugirien com a la mort.

 

A mulher é um animal imperfeito, de diversas, desagradáveis e abomináveis paixões; atormentada, não ama outra coisa a não ser o próprio corpo e seus deleites. Se os homens as olhassem do modo devido, após fazerem o necessário para a geração humana, fugiriam delas como da morte.1

Tirésias era filho de Everes e da ninfa Cáriclo. Certa vez, passeando por uma montanha, quando jovem, viu duas serpentes prontas para se unirem. Matou-as e imediatamente transformou-se em mulher. Após sete anos, encontrou novamente as serpentes entrelaçadas, e novamente as matou. Voltou a ser homem. Por esse motivo, Júpiter e Juno o chamaram para ser árbitro de um debate sobre o amor (carnal): quem sentia mais prazer, o homem ou a mulher?

Em Lo somni, Tirésias é apresentado como um “filósofo muito famoso”, além de devidamente instruído na Matemática, um notável acréscimo ao mito grego (provavelmente oriundo da Tebaida do poeta Estácio [c. 45-95] ou da tragédia Édipo, de Sêneca [4 a. C. – 65 d. C.]). Após ouvir os argumentos de Júpiter e de Juno, o “filósofo” respondeu:

 

Llibre III, viii, 30.

Oÿdes les rahons de cascuna part, diguí que la luxúria de la fembra sobrepuge tres vegades aquella de l’hom. Tantost Juno, molt irada d’açò, usant de la sua acostumada iniquitat, tolgué’m no solament la vista, mas los ulls.

Ouvidas as razões de cada parte, eu disse que a luxúria da mulher ultrapassa três vezes a do homem. Imediatamente, Juno, muito irada com isso, recorreu à sua costumeira iniquidade e me tirou não só a visão, mas também os olhos.

Irada, Juno o cegou, tirando seus olhos. Compadecido por isso, Júpiter deu-lhe o dom da adivinhação.

Tirésias pragueja contra as mulheres – e começa com Juno, como vimos na passagem acima (a deusa é perversa!). Mas antes de prosseguir, uma pergunta: por que Juno fica irada com o julgamento de Tirésias, de que a mulher sente três vezes mais prazer sexual que os homens?

Uma vez mais, as (in)compreensões históricas, os possíveis anacronismos. Para a mente moderna, hipersexuada, isso seria um grande elogio de Tirésias às mulheres. De fato, Juno deveria se sentir envaidecida: tinha um prazer triplo, comparada ao seu marido. Ocorre que sentir prazer sexual, ou melhor, demonstrar que gostava de sentir prazer sexual, era considerado uma fraqueza naquelas sociedades gregas antigas. Pelo menos oficialmente... Pelo menos para os filósofos. Ademais, na passagem, há uma clara crítica à falta de autodomínio feminino: por ser imperfeita, a mulher não tem a capacidade de dominar a si, de controlar suas paixões (impotentia sui).

Roma preservou essa noção da importância do autocontrole: o homem romano não poderia ser um fraco a ponto de amar sua esposa, isto é, de ser dominado por ela. Virtus. Sêneca desejava ao seu discípulo Lucílio “o domínio sobre si mesmo” (Carta 32, 5), pois, se a amizade era sempre proveitosa, o amor poderia, por vezes, ser nocivo (Carta 35, 1). Daí a fúria de Juno – sinal também de seu descontrole. Como Tirésias ousava dizer-lhe algo tão aviltante?

Os medievais herdaram a ideia da lascívia feminina dos antigos. Por exemplo, Isidoro de Sevilha assim definiu a mulher:

A mulher recebeu esse nome de mollities, isto é, doçura, como se disséssemos mollier; suprimindo ou alterando as letras fica o nome mulher. A diferença entre o homem e a mulher reside na força e na debilidade de seu corpo. A força é maior no varão e menor na mulher, para que ela tivesse paciência com ele e, além disso, para que o marido, ao ser rechaçado por sua mulher, não fosse atraído por sua concupiscência ao prazer homossexual (...)

Femina tem esse nome das coxas, femur, em que seu sexo se distingue do varão. Outros acreditam que essa etimologia é grega, e que o nome femina deriva da força do fogo, porque sua concupiscência é muito apaixonada. Afirmam que a libidinosidade é maior nas mulheres que nos homens, tanto nas próprias mulheres quanto nos animais. Por isso, entre os antigos, um amor ardente se chamava amor feminino (Etimologias, XI, 2, 18 e 24) de seu corpo. A força é maior no varão e menor na mulher, para que ela tivesse paciência com ele e, além disso, para que o marido, ao ser rechaçado pela sua mulher, não fosse atraído por sua concupiscência ao prazer homossexual (...)

De qualquer modo, o discurso misógino de Tirésias em Lo somni está todo calcado de uma obra do humanista italiano Giovanni Boccaccio (1313-1375) chamada Corbaccio (Chicote contra as mulheres). Trata-se de uma verdadeira vingança do escritor que merece se contada rapidamente, pois explica muito sobre o conteúdo do texto em que Bernat Metge se baseia.

Já quarentão, Boccaccio se apaixonou por uma viúva. Escreveu-lhe cartas apaixonadas, todas chistosamente recusadas: aos seus próximos, a senhora ridicularizou as pretensões daquele plebeu. Para se vingar da afronta, Boccaccio redigiu Corbaccio, e estendeu cínica e vingativamente sua frustração a todas as mulheres.

A diatribe de Tirésias inicia com uma afirmação a Metge: nenhum homem que deposita seu amor em uma dama pode ser feliz. Nenhum! Isso porque Bernat revela que está apaixonado por uma mulher, não a sua, que até ama tanto quanto é possível um marido amar sua esposa. Por sua vez, a afirmação de Tirésias pertence à tradição filosófica grega: a real natureza da felicidade não reside em nada a não ser no conhecimento (Aristóteles).

Mas, a seguir, o adivinho inicia uma das mais ferinas acusações proferidas contra as mulheres, que faz parecer a última parte de O Tratado do amor cortês de André Capelão (séc. XII) um poema pueril. Senão vejamos.

As mulheres são sujas, falsas e fétidas; grosseiras com suas servas, elas são por natureza dissimuladas:

 

Llibre III, viii, 38.

Quant bé seran arreades e deboxades, si algú les mirave les mamelles (les quals elles desigen per tothom ésser mirades, car per axò les trahen defora), amaguen-les corrent, volents donar a entendre que no han plaer que hom les vege; e és tot lo contrari, car a penes les auran cubertes, les tornaran descobrir e mostrar com pus desonestament poran, per tal que hom les tenga per belles e·ls vage bestiejant detràs.

 

Puys, si algú les guardarà qui·s prenga a loar lur bellesa, seran tan alegres que tot quant los pories demanar te donarien tantost (si no·ls feÿa fretura) . E si alcú aurà dit lo contrari o, passant, no les haurà guardades (car de ésser ben mirades han gran desig), volrien-lo haver mort de lurs pròpries mans.

Tão logo elas estão arrumadas e pintadas, se alguém olha para seus mamilos – os quais desejam que sejam vistos por todos e por isso os deixam à mostra – elas rapidamente os escondem, insinuando que não gostam de que ninguém os olhe, mas a verdade é exatamente o contrário disso, pois tão logo os cobrem, voltam a descobri-los e mostrá-los ainda mais desonestamente, para que os homens os considerem belos e babem por eles.

 

Se, depois disso, alguém olhasse para elas e louvasse sua beleza, ficariam tão contentes que qualquer coisa que se lhes pedisse dariam imediatamente, se não lhes fizesse muita falta. E se alguém lhes dissesse o contrário ou, ao passar, não as olhasse – pois elas têm uma grande necessidade de serem muito bem olhadas – desejariam matá-lo com suas próprias mãos.

Tirésias passa um bom tempo a criticar o tempo que as mulheres perdem com seus penteados e cosméticos, além de denunciar os ardis que elas preparam para se encontrarem e esconderem seus amantes. Elas enganam, atormentam e roubam os homens, além de serem avaras. São instáveis e presunçosas, mas, o que talvez seja sua pior característica, são insuportavelmente tagarelas.

 

Llibre III, viii, 46.

De lur parlar e rallar, que és una cosa fort mal stand en fembra, qui te’n poria dir la centena part? Los maestres en theologia, los doctors en cascun dret, los mestres en medicina, los naturals e mathemàtichs e altres hòmens de sciència, soferen molta fam e set, fred e poch dormir; mals dies e pijors nits per aconseguir aquella; e aprés molts anys, troben haver après fort poch.

 

E aquestes, en un matí (que aytant com una missa baxa se diu stan solament en la sgleya), saben en qual manera l’Espirit Sant procehex del Pare e del Fill, e si Déus poria fer semblant de si mateix, e quals coses són necessàries a separació de matrimoni e com se poden anul·lar testaments. E si lo riubarbre és sech o humit, e quants materials entren en la triaga, e si lo çercle se pot quadrar, e qual fo millor poeta entre Virgili o Homero, quantes steles ha en lo çel, e com se engendre en l’àer lo tro e·l lamp, l’arch de sanct Martí, la pedra e altres coses; e si los elaments són simples o composts, e si·s pot convertir la un en l’altre, e què signifiquen les cometes.

 

E què·s fa en Ásia, Àfrica e Europa, e quantes gents d’armes ha l’Almorat. Qual és lo pus amorós de la vila e qual és stat enganat per aquella que ama, ab qui dorm sa vehina, de qui és prenys l’altra e en qual mes deu encaure, e quants amadors ha l’altra e qui li ha tramès l’anell e qui li ha dat lo collar de perles; e quants ous fa dins l’any la gallina de la sua vehina, e quantes fusades hixen de una liura de li. E finalment, ço que feren jamay los grechs e los troyans, los romans e los cartaginesos.

 

E axí, de tot plenerament informades, tornen-se’n a lurs cases e parlotegen-ne, sens lexar-se’n, ab les serventes e catives, del matí entrò al vespre (e encara de nits en durment). E si troben algú que no les vulle oyr o·ls contrast, enfellonexen-se fortment, e especialment si alguna cosa que dt hagen los serà reprovada.

De suas conversas e tagarelices, algo péssimo nas mulheres, quem te poderia contar a centésima parte? Os mestres em Teologia, os doutores de cada Direito, os mestres de Medicina, os naturalistas, matemáticos e demais homens de ciência sofrem muita fome e sede, frio e insônia, maus dias e piores noites para alcançar seus objetivos e, após muitos anos, consideram ter aprendido muito pouco.

 

Entrementes, elas, em uma manhã, já que estão somente por um momento na igreja durante a missa rezada, sabem como o Espírito Santo procede do Pai e do Filho, se Deus poderia criar outro Ser semelhante a Si mesmo, quais coisas são necessárias para a separação de um matrimônio e como os testamentos podem ser anulados; se o ruibarbo é seco ou úmido, quantos materiais entram na triaga, se o círculo pode ser quadrado, qual poeta foi melhor, Virgílio ou Homero, quantas estrelas há no céu, como se engendram no ar o trovão, o raio, o arco de São Martinho, o granizo e outras coisas, se os elementos são simples ou compostos e se podem ser convertidos um no outro, e o que significam os cometas.

 

Também sabem o que está acontecendo na Ásia, na África ou na Europa, e quantas gentes armadas tem Murad I; quem é o mais amoroso da vila e quem está sendo enganado por aquela que ama; com quem dorme sua vizinha, quem a outra engravidou e quem ainda vai engravidar; quantos amantes têm a outra e quem lhe enviou o anel e lhe deu o colar de pérolas; quantos ovos por ano põe a galinha da vizinha e quantos novelos saem de uma libra de linho. Finalmente, elas sabem tudo o que fizeram gregos, troianos, romanos e cartagineses.

Assim, completamente informadas de tudo, retornam às suas casas e tagarelam sem parar com criadas e escravas, desde a manhã até o entardecer, inclusive à noite, dormindo, e, se encontram alguém que não queira ouvi-las ou que as contradiga, ficam muito aborrecidas, especialmente se algo que lhes dizem é reprovado.

Se ultrapassarmos a primeira sensação da leitura, mais superficial, e adentrarmos de fato nas ideias descritas nas quatro passagens que selecionei de Lo somni, no que costumo designar como a compreensão mais profunda das palavras escritas, perceberemos que se trata de uma construção literária que amplifica e distorce a vida real das mulheres, seu mundo próprio, sua forma de se expressar no mundo, que é, que sempre foi, diferente da dos homens.

Essa estranheza, ao meu parecer, é uma das causas da tradição de textos misóginos clássicos que a Idade Média abraçou, mas atenuou graças ao Cristianismo. Ao afirmar que as mulheres são linguarudas, Metge, bem-humorado, desejava que seu leitor sorrisse. Sim, pois a Idade Média sorria, ironizava, zombeteava. Aliás, a tagarelice é uma queixa recorrente que os homens fizeram às mulheres ao longo da História. André Capelão diz o mesmo no século XII. Pois elas sentiam e diziam (ou sentem e dizem) com uma velocidade de ação muito maior do que aquela que a tradição sempre atribuiu aos homens.

O modo como elas os seduzem também sempre foi motivo de queixa deles – especialmente sempre que eram rechaçados, como foi o caso de Boccaccio. O eterno jogo da sedução entre os sexos foi motivo de estranhezas, mas que dois detalhes essenciais não sejam obscurecidos pela inicial sensação de repulsa que sentimos ao ler aquelas passagens de Lo somni: 1) a misoginia de Boccaccio (base do texto catalão) nasce por ter ouvido um “não” de uma mulher, e 2) quem pronuncia o discurso misógino em Lo somni é um personagem do mundo grego! E saibam: após isso, Metge, o medieval, defende as mulheres com vigor!

Conclusão

Em sua obra O Livro da Cidade das Damas (1405), a poetisa Cristina de Pisan (1364-1430) se perguntou quais eram as razões para tantos homens, clérigos e leigos, vituperarem contra as mulheres em seus escritos. A poetisa francesa não podia admitir que o juízo dos homens sobre a natureza e conduta das mulheres estivesse bem fundamentado. Entrementes, ela tergiversava. Como tantos homens preclaros, doutos, poderiam estar enganados? Poderia aquilo ser verdade? Cristina chegou a desprezar a si mesma e a todo o sexo feminino (Livro I, 1).

 

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O gineceu da Alta Idade Média se transformou no Scriptorium: Cristina de Pisan no espaço vital da escritura. Le Livre de la Cité des Dames, manuscrito Harley 4431, folio 4 (detalhe), British Library, Londres.

De fato, durante toda a Idade Média nós encontramos textos misóginos – recordo agora de outro, As artimanhas das mulheres, de Abd al-Rahim al-Hawrani (séc. XIV). No entanto, o ressurgimento do direito romano em seu entardecer (séc. XIII), somado ao fascínio acrítico dos humanistas pelos textos clássicos e o declínio do refinado ideal de amor cortês em favor da rudeza dos fabliaux reforçaram – e com vigor – a sujeição da mulher, admitida no mundo antigo como perfeitamente natural.

Bernat Metge constrói o discurso misógino de Tirésias com base no poeta romano Juvenal (60-128), mas principalmente em Boccaccio que, por sua vez, escreveu seu texto, como vimos, após ter sido dispensado solenemente por uma mulher nobre, após ter ouvido um “não”. Ou seja, Metge se baseia em um antigo e em um humanista frustrado!

Poder dizer “não”. O Cristianismo medieval ascendeu consideravelmente a condição feminina. Não fiquem surpresos. O próprio Jacques Le Goff, sempre tão reservado em reconhecer os avanços sociais promovidos pelo Cristianismo, pela Igreja Católica, recentemente reconheceu: na concepção cristã, a mulher é igual ao homem! Juridicamente. Segundo o medievalista, o IV Concílio de Latrão (1215), ao fazer do casamento uma cerimônia pública, além de constranger publicamente os homens à aceitação da igualdade entre os sexos perante o clérigo, apenas reconheceu juridicamente um fato: aquele ato só poderia acontecer (isto é, ser reconhecido pela Igreja) com o acordo pleno e total dos dois adultos envolvidos.

Ou seja, a mulher não poderia ser casada contra a sua vontade. Livre-arbítrio, claro. E Le Goff conclui: houve, no período medieval (cristão, não muçulmano!), uma verdadeira promoção da mulher! Eu endosso. Que o digam Perpétua, Felicidade e Cecília (séc. III), Úrsula (séc. V), Clotilde (c. 474-545), Begga (615-693), Gertrudes de Nivelle (626-659), Dhuoda (séc. IX), Rosvita de Gandersheim (c. 935-1002), Hildegarda de Bingen (1098-1179), Ana Comnena (1083-1153), Maria de França (séc. XII), todas as Sanchas, todas as Urracas, Heloísa (c. 1101-1164), Leonor da Aquitânia (1122-1204), Berenguela de Castela (1180-1246), Berenguela de Barcelona (1116-1149), Branca de Castela (1188-1252), Isabel de Portugal (1271-1336) – aliás, todas as rainhas medievais… –, Hadewijch de Antuérpia (c. 1190-1244), Margarida de Cortona (1247-1297), Brígida da Suécia (1303-1373), Catarina de Siena (c. 1347-1380) e por aí vai...

Cito em minha conclusão o renomado medievalista francês, fato inusual em minha forma de reconstruir o passado, para reforçar a impressão que sempre tive a respeito do tema: a História do Gênero hoje se transformou em um verdadeiro palanque de propaganda política, de ação afirmativa, e a História, os mortos, não têm nada a ver com isso. O passado aconteceu, não pode ser alterado.

Para piorar a situação, qualquer um que afirmar o contrário do (fácil) discurso de vitimização feminina promovido por apressados historiadores, mais interessados em promoção efêmera do que na paciente análise dos textos antigos, estará condenado ao opróbrio, ao banimento social. Esses colegas, creio, induzem os futuros historiadores a uma leitura demasiado apressada dos documentos. À fraqueza interpretativa. Jacques Le Goff, Régine Pernoud (1909-1998) e Barbara Tuchman (1912-1989) estavam certos: em comparação com o mundo antigo, houve uma notável promoção da condição feminina na Idade Média (e um retrocesso no período moderno), e a “tirania” dos homens medievais não era tão absoluta quanto as feministas querem nos fazer crer, como mostra o fiel amor de Ana de Lorena (†c. 1163) por seu marido (imagem 8).

 

Imagem 8

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O cavaleiro e conde Hugo I de Vaudemonte († 1155) ficou 16 anos preso na Terra Santa após a Segunda Cruzada, quando acompanhou o rei Luís VII (1120-1180). Sua esposa Ana de Lorena recusou se casar de novo e esperou seu retorno. A cena da escultura tumular (no priorado de Belval, hoje na igreja dos franciscanos, em Nancy) mostra o emocionante reencontro dos dois. Foi esculpida por ordem de seu filho Geraldo II († 1188). Trata-se verdadeiramente da personificação medieval do mito da Odisseia de Ulisses e Penélope! Repare nas vestes rotas e no aspecto sofrido do cruzado que à casa retorna, seu cajado de peregrino, a barba, e o carinhoso abraço da esposa saudosa.

Acrescento outro historiador: José Enrique Ruiz-Domènec (1948- ). Ele também está certo, inteiramente: devemos insistir na descontinuidade do processo histórico. No caso, a Idade Média produziu um despertar das mulheres e da consciência feminina que logo se perdeu com o advento da Modernidade.

Os autores desses textos literário-misóginos no limiar da Idade Média eram, em muitos casos, homens frustrados, ou, como diria Freud e sua “nova” terminologia, homens que sublimaram seus desejos baldados na escrita. Eles não sabiam – não sabem – ouvir um “não”. Pior que uma mulher rejeitada só um escritor repelido. Por sua vez, em Lo somni, Metge foi um dos primeiros homens a corajosamente sair em defesa pública das mulheres – após a diatribe de Tirésias. Mas isso é tema para outra palestra.

 

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Fontes

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Notas

  • 1. Todas as traduções de Lo somni são nossas, feitas a partir da edição BERNAT METGE. Lo somni / El sueño (edición, traducción, introducción y notas de Julia Butiñá). Madrid: Centro de Lingüística Aplicada Atenea, 2007,

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