Origem e façanhas dos Godos (c. 551)

 

 

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121. Depois de um breve período de tempo, como nos conta Orósio1, o povo dos hunos, o mais feroz e atroz de todos, se lançou com sanha contra os godos. Investigando os relatos antigos, descobrimos o seguinte sobre suas origens: Filimer, rei dos godos e filho de Gadarico, o Grande, que ocupou o trono dos getas em quinto lugar depois de sua saída da ilha da Escandia, quando entrou com seu povo no território da Escítia, como já dissemos acima, encontrou feiticeiras entre seu povo, a quem chamou, de acordo com a língua de seus pais, de haliarunas. Como elas não inspiravam confiança, mandou expulsá-las dos seus, e depois que o exército as fez fugir para bem distante, as obrigou a andar errantes por uma zona despovoada.

122. Quando os espíritos imundos que erravam pelo deserto as viram, se jogaram em seus braços e, após copular com elas, engendraram essa raça ferocíssima que no início viveu nos pântanos, minúscula, sombria e raquítica, uma raça que apenas se parecia à humana e que não conhecia outra linguagem além de uma que parecia remotamente à humana. Assim, essa era a estirpe que chegou às terras dos godos e da qual os hunos procederam.

123. Este povo cruel, como se refere o historiador Prisco2 se assentou sobre a ribeira mais distante da lagoa Meótida, sem se dedicar a outra atividade a não ser a caça, salvo quando, devido ao crescimento de sua população, perturbaram a tranqüilidade dos povos limítrofes com seus saques e rapinas.

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126. Pois assim como logo atravessaram aquela enorme lagoa, arrasaram como um furacão de povos os alpizuros, acilzuros, itimaros, tuncarsos e boiscos que estavam assentados no litoral da Escítia. Também submeteram os alanos que se igualavam a eles na luta, mas eram diferentes culturalmente, em seu modo de vida e características físicas, depois de esgotá-los com contínuos ataques.3

127. Pois aqueles que em muitos casos não conseguiam vencer pelas armas, os faziam fugir aterrorizando-os com seus espantosos semblantes, porque tinham um aspecto de uma negrura extremamente apavorante e seu rosto não era mais que uma massa disforme com dois buracos em lugar dos olhos. Essa aparência sinistra manifesta a crueldade do caráter desses homens, que cortam as bochechas de seus filhos varões com a espada no mesmo dia em que nascem, para que antes de receber o alimento do leite sejam obrigados a se acostumar a resistir às feridas.

128. Por esse motivo, chegam à velhice sem barbas, e são jovens sem beleza, porque seu rosto, marcado pelas cicatrizes das espadas, é privado de pêlo que cai tão bem a essa idade. São baixos de estatura, mas ágeis e desenvoltos em seus movimentos, além de muito aptos para a equitação; têm ombros largos e são hábeis no manejo do arco e das flechas, com o pescoço firme e sempre erguidos de orgulho. Mas, apesar dessa aparência humana, o certo é que vivem como bestas selvagens. [5]4

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134. Aconteceu com os visigodos o que costuma ocorrer a um povo que não está ainda totalmente assentado em um lugar: sofreram fome. Suas personalidades mais distintas e os chefes que ocupavam os postos de reis, a saber, Fritigern, Alateo e Safraco, começaram a se compadecer da situação de escassez que passava o exército e solicitaram aos generais romanos Lupicínio e Máximo5 o estabelecimento de relações comerciais. Mas a que excessos não leva o afã desordenado de ouro! Estes generais, empurrados pela cobiça, começaram a lhes vender não só carne de ovelha e de boi, mas também cadáveres de cachorro e outros animais imundos, e isso a tal preço que lhes exigia qualquer de suas propriedades por um só pão ou dez libras de carne.

135. Mas quando já não tinham nem propriedades, nem haveres, os avaros mercadores pedem àqueles a quem a penúria premiava de fome que lhes entreguem seus próprios filhos. Aos pais não havia outro remédio que concordar, para assegurar a salvação de sua prole, e não duvidaram em lhes fazer perder a liberdade que a vida, pois é mais compassivo vender um filho que se sabe que vão alimentar que conservá-lo para que morra de fome.

136. Assim, aconteceu naquele tempo de desgraça que o general romano Lupicínio convidou Fritigern, rei dos godos, para um banquete, com a intenção de fazer-lhe uma emboscada, como logo se descobriu. Fritigern, que desconhecia a trapaça, foi ao banquete com uma pequena comitiva e enquanto comia no interior do pretório escutou os gritos de uns desgraçados que parecia que estavam sendo executados; na verdade, se tratava de seus companheiros, que os soldados haviam fechado em outro lugar por ordem de seu general, que estavam sendo mortos. Os fortes gritos dos moribundos chegaram aos ouvidos de Fritigern, que já suspeitava de algo, e imediatamente descobriu a trapaça que lhe haviam feito. Desembainhou então sua espada, saiu rapidamente do banquete e com grande ousadia libertou seus companheiros da morte segura que se lança sobre eles e os incitou a aniquilar os romanos.

137. Estes homens valentes encontraram então a oportunidade que tanto buscavam e, preferindo morrer na guerra a de fome, tomaram as armas para acabar com os generais Lupicínio e Máximo. Foi aquele dia que verdadeiramente pôs fim à fome dos godos e a tranqüilidade dos romanos, e os godos começaram a dar ordens a seus amos não como fugitivos e estrangeiros, mas como cidadãos e senhores, submetendo ao seu domínio os territórios setentrionais até o Danúbio.

138. O imperador Valente se inteirou do ocorrido em Antioquia e imediatamente se dirigiu aos territórios da Trácia à frente de seu exército. Ali manteve uma lamentável guerra na qual venceram os godos, e ele teve que se refugiar ferido em uma fazenda próxima a Adrianópolis. Os godos, ignorando que o imperador se refugiava em uma casucha miserável, tocaram fogo, como costuma acontecer quando o inimigo está enfurecido, e o imperador pereceu queimado junto com seu séquito real.6 Isso não foi senão o mesmíssimo juízo de Deus, para que morresse queimado pelos mesmos que, desejando a verdadeira fé, haviam sido conduzidos por ele para a heresia, transformando assim o fogo da caridade em fogo do inferno. Nesse tempo, depois de alcançar a glória de tamanha vitória, os godos começaram a habitar o solo da Trácia e a Dácia Ripuária, como se se apropriassem da terra que os viu nascer.

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152. Quando o exército dos visigodos se posicionou nas imediações da cidade de Roma, enviou uma delegação ao imperador Honório, que se encontrava no interior, dizendo-lhe que se permitisse que eles assentassem pacificamente na Itália, viveriam com os romanos como se tratasse de um só povo, mas que se não estivesse de acordo, lutariam, e aquele que fosse mais forte expulsaria o outro e poderia viver tranqüilo governando como vencedor. No entanto, o imperador Honório, temendo ambas as propostas, depois de aceitar a opinião do Senado, estudava um plano para expulsar os godos da Itália.

153. Finalmente, ele tomou a decisão de que Alarico e seu povo, se eram capazes, deveriam reclamar como sua própria terra as Gálias e as Espanhas, províncias distantes e que estavam já quase perdidas e devastadas pela invasão do rei vândalo Genserico.7 Os godos aceitaram este acordo, e depois de confirmarem esta doação por um oráculo sagrado, se puseram a caminho até a pátria que lhes havia sido entregue.

154. Depois de se retirarem da Itália sem terem cometido nenhuma má ação, o patrício Estilicão, sogro do imperador Honório (pois o imperador se casou sucessivamente com suas duas filhas, Maria e Termancia, e ambas foram chamadas por Deus deste mundo quando ainda eram virgens e intactas)8, este Estilicão se aproximou furtivamente da cidade de Polentia, situada nos Alpes Cotios9, e sem os godos suspeitarem de nada, se lançou a uma guerra que produziria a destruição de toda a Itália e sua própria vergonha.10

155. Ao vê-lo se apresentar tão de repente, os godos ficaram aterrorizados em um primeiro momento, mas logo recobraram os ânimos incitando-se uns aos outros à luta, como freqüentemente faziam nesses casos, e conseguiram aniquilar quase todo o exército de Estilicão, que teve que fugir. Cheios de raiva, abandonaram a viagem que haviam empreendido e voltaram novamente à Ligúria, por onde já haviam passado, e depois de saqueá-la e espoliá-la, arrasaram Emília da mesma maneira. Seguindo a rota da calçada Flamínia em direção a Roma, entre o Piceno e a Toscana, devastaram e saquearam tudo o que encontraram em seu caminho por ambos os lados.11

156. Finalmente entraram em Roma, e Alarico deu ordem que somente a saqueassem, não permitindo que a incendiassem, como costumam fazer estes povos, nem que se cometesse nenhuma afronta contra qualquer coisa que se encontrasse nos lugares sagrados.12 Dali se dirigiram à Campânia e à Lucânia, de onde seguiram ocasionando os mesmos estragos, até chegarem ao território dos brícios.13 Ficaram ali uma temporada, e logo decidiram passar à Sicília, e dali aos territórios africanos. A região dos brícios se encontra nos confins meridionais da Itália. Forma um ângulo no começo dos montes Apeninos e que se prolonga como se fosse uma língua, separando o mar Tirreno do Adriático.14 Há muito seu nome foi tirado da rainha Brícia.

157. Foi assim que ali chegou o rei visigodo Alarico com as riquezas de toda Itália que havia tomado como botim de guerra, e logo se dispôs a passar para a tranqüila terra africana através da Sicília, como dissemos. Mas em seu pavoroso estreito (quão pouco livre é o homem para fazer algo sem a aprovação de Deus!) afundaram uns quantos barcos e a maioria sofreu graves danos.15 Dissuadido por esse contratempo, enquanto estava decidindo o que fazer, Alarico deixou os assuntos desse mundo como conseqüência de uma morte prematura e repentina.16

158. Ele é muito chorado pelos seus, que lhe tributavam um grande afeto. Desviaram o curso do rio Buzento, junto à cidade de Cosenza (pois com suas saudáveis águas este rio corre do pé do monte até a cidade) e reuniram um grupo de prisioneiros para que cavassem uma tumba no meio da corrente do rio. No interior desse buraco enterraram Alarico com muitas riquezas, voltando a conduzir de novo as águas a seu leito e matando todos os enterradores, para que ninguém nunca pudesse encontrar o lugar. Logo entregaram o reino visigodo a Ataulfo, parente de Alarico e famoso por sua inteligência e beleza, pois embora não tivesse grande estatura, se distinguia pela beleza de seu corpo e de seu rosto.17

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180. Este Átila teve como pai a Mundiuco, cujos irmãos foram Otar e Ruas, que dizem que foram reis dos hunos antes de Átila, embora não tenham reinado sobre todos como ele. Depois da morte deles, lhes sucedeu no trono dos hunos com seu irmão Bleda, e para poder livremente levar a cabo os projetos que preparava, tratou de aumentar suas forças com o fratricídio, começando a destruição universal com o assassinato de sua própria família.

181. Mas a justiça atuou sobre ele, que não duvidava de empregar os meios mais detestáveis para aumentar seu poder, e sua crueldade encontrou um fim vergonhoso. Assim, após assassinar traiçoeiramente seu irmão Bleda18, que reinava sobre boa parte dos hunos, reuniu em torno de si a todo seu povo e outro numeroso grupo de nações que estavam então submetidas a sua obediência, com o desejo de subjugar os povos mais numerosos do mundo, os romanos e os visigodos.

182. Estimava-se que o número de efetivos de seu exército era cerca de quinhentos mil, e que ele era um homem nascido para perturbar os povos e infundir pavor a todo o universo, pois só com sua tremenda reputação conseguia aterrorizar a todos. Era arrogante no porte e virava os olhos de um lado para o outro para que o poder de seu espírito orgulhoso se manifestasse em cada movimento de seu corpo. Embora fosse amante da guerra, sabia manter o controle de seus atos. Era sumamente judicioso, clemente com os que suplicavam perdão e generoso com os que se aliavam a ele. Era baixo de estatura, de peito largo, cabeça grande e olhos pequenos; tinha a barba rala, os cabelos ralos, o nariz achatado e a pele escura, características que denotavam sua raça.

183. Embora por sua natureza sempre tenha tido grandes esperanças de êxito, sua ambição cresceu ao encontrar a espada de Marte, que sempre havia sido considerada sagrada pelos reis da Escítia. O historiador Prisco19 se refere assim à descoberta: “Um pastor observou que uma das novilhas de seu rebanho coxeava, e como não encontrava o que podia ter-lhe causado uma ferida tão grande, seguiu com preocupação os rastros de sangue, até que finalmente chegou à espada que a incauta novilha havia pisado enquanto pastava. Ele a desenterrou e a levou imediatamente a Átila. Este agradeceu o presente, e com a presunção que o caracterizava, pensou que havia sido designado senhor de todo o universo, e que por meio dessa espada lhe havia sido concedido o poder de decidir o resultado das guerras.”

 

Notas

  • 1. Orósio, Hist., 7, 33, 10.
  • 2. Prisco de Pânio acompanhou o general Maximino em uma embaixada de Teodósio II a Átila, em 448 d. C. É autor de uma História Bizantina e Sobre Átila (oito livros, só conservados fragmentos), e serviu como fonte para Jordanes.
  • 3. Alanos = povo de origem sármata que a partir do século I d. C. emigrou do norte do mar Cáspio para as regiões orientais do Império Romano.
  • 4. Descrição muito semelhante à de Amiano Marcelino (Hist., 31, 2, 21), autor do século IV d. C.
  • 5. Chefes romanos da Trácia e da Escítia Menor, respectivamente.
  • 6. Batalha de Adrianópolis (9 de agosto de 378 d. C.) – atual Edime, ao noroeste da Turquia (cidade fundada por Adriano em 132 d. C.) – na qual morreram dois terços do efetivo romano.
  • 7. Rei vândalo que viveu de 400 a 477 d. C. Os vândalos entraram nas Gálias com os suevos e alanos no ano 406 e se dirigiram para a Hispânia em 409.
  • 8. Tudo indica que Honório sofria de impotência sexual.
  • 9. Atual Pollenza, cidade próxima de Turim.
  • 10. Apesar do que diz Jordanes, Estilicão venceu os visigodos próximo dessa cidade, em 06 de abril de 402.
  • 11. Fatos ocorridos no ano 408.
  • 12. A queda de Roma aconteceu no dia 24 de agosto de 410. Os godos a saquearam durante três dias. Jordanes destaca aqui a clemência de Alarico.
  • 13. Na atual Calábria.
  • 14. Na verdade, se trata do Mar Jônico.
  • 15. Trata-se do Estreito de Messina.
  • 16. Alarico morreu no ano 411 d. C.
  • 17. Ataulfo era cunhado de Alarico, e reinou de 411 a 415 d. C.
  • 18. No ano 445 d. C.
  • 19. Prisco, Frag., 8.