Sexta questão [165]

 

Guilherme de Ockham (c. 1288-1348) 
Trad.: José Antônio de C. R. de Souza


Capítulo 1

        Em sexto, indaga-se se um rei ao suceder hereditariamente está subordinado nalguma coisa àquele que o coroa.

        Sobre essa questão podem haver opiniões contrárias.

        A primeira delas propõe que um rei ao suceder hereditariamente está de certo modo subordinado àquele que o coroa. Em favor desta opinião pode ser alegado que um rei ao suceder hereditariamente está de certo modo subordinado àquele a quem cabe o exame da pessoa do próprio rei, porque o exame de alguma pessoa não cabe ao inferior, nem ao igual, mas ao superior.

        Ora, o exame do rei que sucede hereditariamente cabe àquele que o coroa, como se lê no Livro Extra das Decretais, título sobre a eleição, capítulo Venerável,  de acordo com o que atesta Inocêncio III, ao dizer: Pois é normal e regularmente observado que o exame da pessoa compete àquele que lhe vai impor as mãos.

        Logo, como a imposição das mãos compete àquele que coroa um rei que sucede hereditariamente, segue, pois, que o exame da pessoa  também lhe compete, e por conseguinte, um rei de certo modo está subordinado àquele que o coroa.

Capítulo 2 [166]

        A outra opinião sustenta que um rei ao suceder hereditariamente não está em nada  subordinado àquele que o coroa. Em seu favor pode ser alegado o seguinte argumento: um rei ao suceder hereditariamente não está subordinado em nada àquele que não lhe confere nenhum direito ou poder. Logo, etc.

        Item, um rei ao suceder hereditariamente não obtém o reino daquele que o coroa, porque não é seu vassalo, dado que não lhe presta  juramento de homenagem; porque os predecessores do rei que sucede hereditariamente, os quais em muitos reinos não eram cristãos, como evidentemente aconteceu nos reinos dos Francos e dos Anglos e em muitos outros, não obtiveram seus reinos de alguém que os coroou, por conseguinte nem os reis ao suceder hereditariamente obtêm seus respectivos reinos daqueles que os coroam.

        De fato, se assim não fosse eles não seriam sucessores verdadeiros dos primeiros reis, bem como os reis cristãos estariam em condição pior do que estiveram os infiéis. Logo, os reis ao suceder hereditariamente não estão subordinados em nada àqueles que os coroam.

        Item, ninguém está subordinado àquele de quem recebe um juramento de fidelidade e de sujeição. Ora, aquele que coroa um rei que sucede hereditariamente, como é o caso de determinado bispo do mesmo reino, presta ao próprio rei, de quem recebe bens temporais, um juramento de fidelidade e sujeição. Logo, um rei não está em nada  subordinado àquele que o coroa.

        Item, ser coroado não é uma prova de sujeição maior do que ser ungido, consagrado e ordenado. Ora, ser ungido, consagrado e ordenado não são provas de sujeição. De fato, o papa ao ser eleito, se não for sacerdote ou bispo, depois é ungido, consagrado e ordenado [bispo]. Entretanto, ele não está subordinado em nada àquele que o ordena e o consagra.  Igualmente também o Metropolitano é consagrado por seus sufragâneos, a quem não está subordinado. O bispo outrossim é consagrado por outros bispos a quem não está subordinado. Muitos clérigos, ainda, são ordenados por um prelado que não é o seu diocesano, a quem não estão subordinados, desde que possuam licença de seu bispo.

        Igualmente, ainda, os filhos dos reis e de outrem, nobres ou não, são ungidos e batizados pelos presbíteros, aos quais não estão subordinados. Logo, com muito mais razão, ser coroado não é uma prova de sujeição.

        Item, muitos imperadores foram coroados por seus inferiores, aos quais não estavam subordinados. Logo, não se pode comprovar por isto que um rei ao suceder hereditariamente, sendo coroado por alguém, esteja-lhe subordinando.

        Item, quem coroa confere menos direito e poder de governar ao rei coroado do que os eleitores ao eleito e aqueles que escolhem o imperador e o rei ao primeiro e a este último. Entretanto, embora o eleito não possua o direito senão por intermédio dos eleitores, contudo, não lhes está subordinado. De fato, o papa não possui nenhum direito, a não ser que tenha sido canonicamente eleito, todavia, ele não está subordinando aos seus eleitores.

[167] Tampouco um bispo ou um outro prelado ou um potentado secular muitas vezes possui algum direito, a não ser porque foi escolhido de acordo com as normas em vigor, todavia, eles absolutamente não estão subordinados aos seus eleitores.

        Também o imperador, a quem o povo transferiu o seu poder, não possui o direito imperial, a não ser porque o recebeu do povo, todavia, não estava subordinado ao povo. Semelhantemente, os primeiros reis dos vários reinos, que foram livremente escolhidos reis pelo povo, não obtiveram o direito real, senão do povo, contudo, mais tarde, não estiveram  subordinados aos seus povos. Logo, não há razão que justifique que um rei ao suceder hereditariamente esteja subordinado àquele que o coroa.