A decadência do estilo como decadência da alma

Na filosofia estoica de Sêneca, o Jovem (4 a.C.-65 d.C.)

Ricardo da COSTA

 

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Resumo: Quais são os sintomas de decadência de uma Cultura? Quais são as razões para o declínio de uma Civilização? Nas Epistulae Morales ad Lucilium do filósofo Sêneca, o Jovem (4 a.C. - 65 d.C.), há uma carta em que o mestre estoico relaciona o declínio do estilo ao declínio da alma, tema principal deste artigo.

Abstract: What are the symptoms of a Culture's decline? What are the reasons for a Civilization's downfall? In the Epistulae Morales ad Lucilium of the philosopher Seneca the Younger (4 BC - 65 AD), there is a letter in which the Stoic master relates the decline of style to the decline of the soul, the main theme of this article.

Palavras-chave: Estoicismo – Sêneca, o JovemDecadênciaCulturaCivilização.

Keywords: Stoicism – Seneca the Younger – DecadenceCultureCivilization.

I. Cultura

Já fui acusado de ser um culturalista.1 Quando de minha formação (décadas de 80 e 90 do século XX), o estudo da História tinha como epicentro interpretativo a Economia e a Política (a segunda como consequência da primeira). Não me preocupei com essa crítica até ingressar na pós-graduação. Conheci então o que vou aqui definir como a hipercrítica materialista do conceito (e de seus derivados, como o de mentalidade).2 Interessei-me em saber qual era a definição de minha perspectiva teórica.

Qual é? A tradicional História da Cultura: o estudo das manifestações formais da Cultura de determinada sociedade (as Artes, a Literatura e a Filosofia). Trata-se do que o filósofo Krzysztof Pomian (1934-) chamou de perspectiva espiritualista (e psicologista), em oposição à perspectiva pragmática.3

Qual o método? Compreensivo, hermenêutica das Ciências do Espírito (Geisteswissenschaften).4

Qual a pretensão? Uma recriação mental, assimilação espiritual da humanidade de um indivíduo elevado à imortalidade graças ao seu pensamento registrado por escrito e revivivo, geração após geração, por diferentes intérpretes de distintas culturas pósteras à sua.5

É um complexo exercício intelectual, metódico, reflexivo, tenso porque sempre moral, como a repreensão de Marte a Cupido (matizada por Vênus) de Bartolomeo Manfredi (1582-1622) (imagem 1).

Imagem 1

Cupido repreendido (1613) de Bartolomeo Manfredi (1582-1622). Óleo sobre tela, 175,3 × 130,6 cm, Art Institut of Chicago (reference number 1947.58). “Marte, deus da guerra, chicoteia violentamente o jovem Cupido como punição por envolver o deus em um caso com a mãe do menino, Vênus, deusa do amor. Vênus tenta em vão interromper a surra. Cercadas pela escuridão, as três figuras são iluminadas de forma ousada pela esquerda, intensificando o dinamismo e o impacto da composição. A fisicalidade das figuras transmite a violenta discórdia da cena: Vênus agachada e de olhos arregalados, o furioso e musculoso Marte, e Cupido, cuja nudez e posição deitada o tornam particularmente vulnerável. Em um nível, uma história de conflito pessoal; em outro, o eterno conflito entre o amor e a guerra.”

E o que é Cultura? A totalidade das manifestações dos hábitos sociais de uma comunidade, além das reações individuais das pessoas afetadas por esses hábitos e os produtos das atividades deles oriundas.6

Em outras palavras, é o conjunto dos recursos materiais e imateriais herdados, empregados e retransmitidos, especialmente a Religião, a Filosofia, a Literatura e a Arte.7

No dramático momento histórico em que vivemos, perceptível ocaso da Cultura Ocidental (inclusive da própria Civilização Ocidental) é compreensível meu desejo de diagnosticar alguns dos sintomas de sua decadência (iniciada em 19188).

Especificamente um deles: o abandono (e posterior desprezo) da linguagem culta, esvaziamento cultural que ocorre de tempos em tempos nas culturas, um fenômeno histórico já percebido em Roma por Sêneca, o Jovem (4 a.C. - 65 d.C.) e registrado em sua correspondência com Lucílio (fl. séc. I).9

II. Decadência

Imagem 2

Os romanos da decadência (1847), de Thomas Couture (1815-1879). Óleo sobre tela, 472 x 772 cm, Musée d’Orsay. Ao centro, o grupo da devassidão, exausto, desiludido, bebendo e dançando. No primeiro plano, três homens que não participam do bacanal: à esquerda, um jovem melancólico está sentado em uma coluna; à direita, dois visitantes estrangeiros olham com reprovação. Acima, estátuas antigas também parecem condenar a orgia. Couture alude à sociedade francesa de sua época. Jacobino, republicano e anticlerical, ele criticava a decadência moral da França sob a Monarquia de Julho, cuja classe dominante havia sido desacreditada por uma série de escândalos. Essa pintura é, portanto, uma alegoria realista: os críticos de Arte de 1847 viam nesses romanos os franceses da decadência.

Não há como deixar de associar a apreciação do quadro do academicista Thomas Couture (imagem 2) com as cenas narradas no Satyricon (séc. I), sátira menipeia de Petrônio (c. 27-66).10 Já no século I, os escritores romanos percebiam a decadência de seus costumes, com a ascensão do hedonismo e a perda de suas virtudes cívicas.11

No Satyricon, há uma cena muito intensa, em que o protagonista ____ tem uma crise existencial no meio de um bacanal e expõe o drama da decadência de sua civilização:

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Fontes

LÚCIO ANEU SÉNECA. Cartas a Lucílio (trad., prefácio e notas de J. A. Segurado e Campos). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007.

Bibliografia citada

BOURDIEU, Pierre. O senso prático. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.

BURKE, Peter. O que é história cultural. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005.

CAPDEVIELLE, Julieta. “El concepto de habitus: ‘con Bourdieu y contra Bourdieu’”. In: Anduli. Revista Andaluza de Ciencias Sociales n. 10 (2011), pp. 31-45.

CARMIGNANI, Marcos. “El Satyricon como novela: la sátira menipea y los nuevos descubrimientos papiráceos”. In: Circe de clásicos y modernos vol. 13, n. 1 (2009), pp. 75-91.

COSTA, Ricardo da; GABY, André; Ernesto HARTMANN; Antonio Celso RIBEIRO; Matheus Corassa da SILVA. “Um tributo à arte de ouvir. O amor cortês nas cançons de Berenguer de Palou (c. 1160-1209)”. IneHumanista/IVITRA 15 (2019), pp. 399-455.

J. CONTRERAS, Francisco. “Las raíces del Verstehen en Vico y Herder”. In: Cuadernos sobre Vico 15-16 (2003), pp. 255-270.

KLUCKHOLN, Clyde. “Cultura (Culture)”. In: SILVA, Benedicto (coord.). Dicionário de Ciências Sociais. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getulio Vargas, 1987, pp. 290-292.

LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia Estrutural. Editora Tempo Brasileiro, 1973.

LÉVI-STRAUSS, Claude. O cru e o cozido. Rio de Janeiro: Cosac & Naif, 2004.

POMIAN, Krzysztof. “História cultural, História dos semióforos”. In: RIOUX, Jean-Pierre; SIRINELLI, Jean-François (dirs.). Para uma História Cultural. Lisboa: Editorial Estampa, 1998, pp. 71-95.

SETTON, Maria da Graça Jacintho. “A teoria do habitus em Pierre Bourdieu: uma leitura contemporânea”. In: Revista Brasileira de Educação 20, 2002, pp. 60-70.

VAINFAS, Ronaldo. “História das Mentalidades e História Cultural”. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (orgs.). Domínios da História. Ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997, pp. 127-162.

Notas

  • 1. Isto é, de supervalorizar a Cultura como principal vetor de organização social. Provavelmente estavam a me associar – corretamente – à perspectiva analítica antropológica (universalizante) de Claude Lévi-Strauss (1908-2009) e seu método dedutivo. Para o tema, ver, por exemplo, LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia Estrutural. Editora Tempo Brasileiro, 1973, e LÉVI-STRAUSS, Claude. O cru e o cozido. Rio de Janeiro: Cosac & Naif, 2004.
  • 2. VAINFAS, Ronaldo. “História das Mentalidades e História Cultural”. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (orgs.). Domínios da História. Ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997, pp. 127-162.
  • 3.  
  • 4. J. CONTRERAS, Francisco. “Las raíces del Verstehen en Vico y Herder”. In: Cuadernos sobre Vico 15-16 (2003), pp. 255-270.
  • 5. POMIAN, Krzysztof. “História cultural, História dos semióforos”. In: RIOUX, Jean-Pierre; SIRINELLI, Jean-François (dirs.). Para uma História Cultural. Lisboa: Editorial Estampa, 1998, pp. 71-95.
  • 6. O conceito de hábito foi “popularizado” por Pierre Bourdieu (1930-2002): BOURDIEU, Pierre. O senso prático. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009. Ver também SETTON, Maria da Graça Jacintho. “A teoria do habitus em Pierre Bourdieu: uma leitura contemporânea”. In: Revista Brasileira de Educação 20, 2002, pp. 60-70, e CAPDEVIELLE, Julieta. “El concepto de habitus: ‘con Bourdieu y contra Bourdieu’”. In: Anduli. Revista Andaluza de Ciencias Sociales n. 10 (2011), pp. 31-45. Por sua vez, para a história do conceito de hábito, ver BURKE, Peter. O que é história cultural. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005, pp. 73, 77, 97, 122.
  • 7. KLUCKHOLN, Clyde. “Cultura (Culture)”. In: SILVA, Benedicto (coord.). Dicionário de Ciências Sociais. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getulio Vargas, 1987, pp. 290-292.
  • 8. “Com o Historicismo (de Ranke [1795-1886] e Croce [1866-1952]) e o sucesso de obras como A Decadência do Ocidente (1918), de Oswald Spengler (1880-1936), O mal-estar da civilização (1929) de Freud (1856-1939) e Um Estudo da História (1934-1961) de Arnold Toynbee (1889-1975) – com sua teoria cíclica desafio/resposta do desenvolvimento das civilizações – os alicerces do conceito de civilização começaram a ser abalados. O horror das duas guerras mundiais (1914-1918 e 1939-1945), com os massacres da guerra de trincheira, o Holocausto e seus campos de concentração, sepultaram a elevada ideia de civilização ocidental do horizonte do pensamento contemporâneo. A islamização da Europa a partir da segunda metade do séc. XX é, desse ponto de vista, uma das últimas etapas da decadência da civilização ocidental, hoje muito mais voltada para o entretenimento, a diversão, o espetáculo (ou alienação).” – COSTA, Ricardo da; GABY, André; Ernesto HARTMANN; Antonio Celso RIBEIRO; Matheus Corassa da SILVA.“Um tributo à arte de ouvir. O amor cortês nas cançons de Berenguer de Palou (c. 1160-1209)”. IneHumanista/IVITRA 15 (2019), p. 399 (nota 7).
  • 9. Utilizarei a seguinte edição portuguesa: LÚCIO ANEU SÉNECA. Cartas a Lucílio (trad., prefácio e notas de J. A. Segurado e Campos). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007.
  • 10. A sátira menipeia era um tipo de texto em prosa, similar a uma novela, mas com uma narrativa fragmentada, e que fazia crítica de costumes. Para o tema, ver CARMIGNANI, Marcos. “El Satyricon como novela: la sátira menipea y los nuevos descubrimientos papiráceos”. In: Circe de clásicos y modernos vol. 13, n. 1 (2009), pp. 75-91.
  • 11. O hedonismo grego, com Aristipo de Cirene (435-356 a.C.) preconizava o prazer pessoal como o bem supremo; já Epicuro (341-271 a. C.). defendia um hedonismo mais suave, como antítese para evitar a dor e alcançar a felicidade. Ver Cartas de Epicuro. Sobre a Felicidade. Sobre os fenômenos celestes. Sobre a Filosofia da Natureza (trad.: Edson Bini). São Paulo: Edipro, 2021.