Entre a Natureza e a Graça
A corporeidade cristã no Livro da Contemplação em Deus (1271-1274) de Ramon Llull (1232-1315)
Ricardo da COSTA
Gabriel Tebaldi MEIRA
In: Mirabilia Journal 41 (2025/2).
Languages and Cultures in Tradicion. Art, Philosophy and Literature,
pp. 129-180
(ISSN 1676-5818).
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Resumen: Este artículo investiga la concepción de la corporeidad cristiana en El Libro de la Contemplación en Dios (1271-1274) de Ramon Llull (1232-1315), examinando cómo el autor integra la tradición filosófica clásica – especialmente Platón, Aristóteles y Plotino – con la teología cristiana y la escolástica medieval. Basándose en la doctrina de las facultades humanas y la estructura físico-espiritual del hombre, Llull presenta el cuerpo como reflejo del orden divino, instrumento del alma y medio de ascetismo moral. El estudio analiza la relación entre naturaleza y gracia en el pensamiento de Llull, demostrando que el cuerpo, lejos de ser un mero receptáculo del alma, constituye un espacio de revelación y comunión con Dios. A través de la armonización de los cuatro elementos, los cinco sentidos y las potencias vegetativa, sensitiva, imaginativa, racional y motora, Llull propone una visión integradora de la existencia humana, en la que la vida corporal y espiritual convergen hacia la contemplación y la alabanza del Creador.
Abstract: This article investigates the conception of Christian corporeality in Ramon Llull’s (1232-1315) The Book of Contemplation in God (1271-1274), examining how the author integrates the classical philosophical tradition – especially Plato, Aristotle and Plotinus – with Christian Theology and medieval Scholasticism. Drawing on the doctrine of human powers and the physical-spiritual structure of man, Llull presents the body as a reflection of the divine order, an instrument of the soul, and a means of moral asceticism. The study analyses the relationship between nature and grace in Llull’s thought, demonstrating that the body, far from being a mere receptacle of the soul, constitutes a space of revelation and communion with God. Through the harmonization of the four elements, the five senses, and the vegetative, sensitive, imaginative, rational and motor powers, Llull proposes an integrated vision of human existence, in which bodily and spiritual life converge toward the contemplation and praise of the Creator.
Palabras-clave: Ramon Llull – Corporalidad cristiana – Naturaleza – Gracia – Filosofía Medieval – El Libro de la Contemplación en Dios.
Keywords: Ramon Llull – Christian corporeality – Nature – Grace – Medieval Philosophy – The Book of Contemplation in God.
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Ricardo da COSTA
Gabriel Tebaldi MEIRA
In: Mirabilia Journal 41 (2025/2).
Languages and Cultures in Tradicion. Art, Philosophy and Literature,
pp. 129-180
(ISSN 1676-5818).
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Resumen: Este artículo investiga la concepción de la corporeidad cristiana en El Libro de la Contemplación en Dios (1271-1274) de Ramon Llull (1232-1315), examinando cómo el autor integra la tradición filosófica clásica – especialmente Platón, Aristóteles y Plotino – con la teología cristiana y la escolástica medieval. Basándose en la doctrina de las facultades humanas y la estructura físico-espiritual del hombre, Llull presenta el cuerpo como reflejo del orden divino, instrumento del alma y medio de ascetismo moral. El estudio analiza la relación entre naturaleza y gracia en el pensamiento de Llull, demostrando que el cuerpo, lejos de ser un mero receptáculo del alma, constituye un espacio de revelación y comunión con Dios. A través de la armonización de los cuatro elementos, los cinco sentidos y las potencias vegetativa, sensitiva, imaginativa, racional y motora, Llull propone una visión integradora de la existencia humana, en la que la vida corporal y espiritual convergen hacia la contemplación y la alabanza del Creador.
Abstract: This article investigates the conception of Christian corporeality in Ramon Llull’s (1232-1315) The Book of Contemplation in God (1271-1274), examining how the author integrates the classical philosophical tradition – especially Plato, Aristotle and Plotinus – with Christian Theology and medieval Scholasticism. Drawing on the doctrine of human powers and the physical-spiritual structure of man, Llull presents the body as a reflection of the divine order, an instrument of the soul, and a means of moral asceticism. The study analyses the relationship between nature and grace in Llull’s thought, demonstrating that the body, far from being a mere receptacle of the soul, constitutes a space of revelation and communion with God. Through the harmonization of the four elements, the five senses, and the vegetative, sensitive, imaginative, rational and motor powers, Llull proposes an integrated vision of human existence, in which bodily and spiritual life converge toward the contemplation and praise of the Creator.
Palabras-clave: Ramon Llull – Corporalidad cristiana – Naturaleza – Gracia – Filosofía Medieval – El Libro de la Contemplación en Dios.
Keywords: Ramon Llull – Christian corporeality – Nature – Grace – Medieval Philosophy – The Book of Contemplation in God.
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Introdução: o corpo na Bíblia
O tema da corporeidade atravessa toda a tradição cristã e se manifesta de modo constante nas Escrituras. Já no relato da criação, no Gênesis, percebe-se que corpo e espírito constituem uma única realidade substancial.1 A matéria, em vez de ser desprezada, é assumida por Deus como espaço privilegiado de sua revelação. Ao plasmar o corpo humano, o Criador o reveste de dignidade, fazendo dele templo e instrumento destinado ao cumprimento de sua vontade.
No Novo Testamento, essa valorização é ampliada pela encarnação do Verbo: em Cristo, não apenas a alma é redimida, mas também a dimensão corpórea do homem é incluída na obra da salvação. Nesse sentido, Paulo exorta, na Epístola aos Romanos, que a existência cristã requer consonância entre interior e exterior, de modo que a fé se traduza em ações concretas, palavras e comportamentos.2 O corpo, assim, não representa um entrave para a espiritualidade, mas o caminho concreto pelo qual ela se realiza.
Na Primeira Epístola aos Coríntios, Paulo vai além ao apresentar o corpo humano como morada do Espírito Santo.3 Para o apóstolo, o corpo não é posse do indivíduo, mas pertence a Deus, que nele depositou seu Espírito e, com ele, sua própria essência. Essa pertença, afirma Paulo, teve um preço elevado, pois o Espírito é riqueza inestimável. Sendo, portanto, templo divino, o corpo deve ser usado para glorificar a Deus e tornar-se instrumento de obras fecundas e justas.4
A valorização do corpo encontra sua expressão máxima na esperança cristã da ressurreição dos mortos, na qual ele não é suprimido, mas transfigurado. Tal promessa confere ao corpo uma vocação eterna e, consequentemente, um imperativo ético de preservá-lo com dignidade.5 À luz dessa expectativa escatológica, o fiel é convocado a uma vida de sobriedade, afastando-se dos excessos, vícios e desordens que obscurecem a imagem de Deus nele inscrita. Desse modo, o cuidado corporal assume também a forma de culto, constituindo-se em gesto concreto de submissão ao senhorio divino sobre toda a existência.
I. O corpo em Platão (c. 428-348 a. C.)
A concepção do corpo como morada, ou mesmo como instrumento, de um princípio espiritual (alma ou espírito) também encontra respaldo na filosofia grega clássica, ainda que sob diferentes matizes interpretativos. Platão, no Fédon, apresenta o célebre diálogo de Sócrates com Símias, no qual sustenta que o corpo funciona como um túmulo que encerra a alma, submetendo-a a múltiplas imperfeições: os amores e paixões, os temores e as fantasias, entre outras perturbações sensíveis.6
[...] porque enquanto tivermos corpo e nossa alma se encontrar atolada em sua corrupção, jamais poderemos alcançar o que almejamos. E o que queremos, declaremo-lo de uma vez por todas, é a verdade. Não têm conta os embaraços que o corpo nos apresta, pela necessidade de alimentar-se, sem falarmos nas doenças intercorrentes, que são outros empecilhos na caça da verdade. Com amores, receios, cupidez, imaginações de toda a espécie e um sem-número de banalidades, a tal ponto ele nos satura, que, de fato, como se diz, por sua causa jamais conseguiremos alcançar o conhecimento do que quer que seja.7
Sócrates declara que o corpo não contribui para o pensamento sensato “nem uma única vez”. A alma, cuja função própria é buscar a verdade, vê-se continuamente desviada de sua tarefa pelas incessantes demandas corporais. Criada no domínio inteligível – e, portanto, em meio à perfeição – ela sofre ao ser confinada em um cárcere composto de impulsos, desejos e satisfações efêmeras.
A essa condição somam-se, ainda, as enfermidades físicas, que não raramente dificultam, ou mesmo impedem, a investigação da verdade. Para Sócrates, essa verdade só pode ser encontrada nos seres em si, jamais em suas manifestações corpóreas. Impõe-se, portanto, uma separação entre o ser e o corpo, para que os entes sejam contemplados em sua essência mediante a atividade própria da alma.8
O afastamento do corpo como condição para o acesso à verdade leva Sócrates a concluir que a morte constitui, em última instância, uma libertação da alma e um caminho para a plena sabedoria, pois o desaparecimento do corpo implica igualmente o término de sua corrupção e a consequente purificação do espírito. Para o filósofo ateniense, a tarefa própria do filósofo é “precisamente libertar a alma e afastá-la do corpo”.9
Por isso, seria um absurdo revoltar-se contra a morte quando ela se aproxima, já que nela se cumpre aquilo que se buscou durante toda a vida. O pregador encontra-se, por fim, com a própria pregação.10 A indignação diante do falecimento do corpo revela, para Sócrates, a persistência do apego humano aos desejos sensíveis e o escasso amor à filosofia e à verdade reservada à alma em outra esfera de existência.11
Embora severa, a crítica socrática ao corpo não deve ser entendida como uma rejeição da vida sensível, mas como uma advertência quanto à justa hierarquia dos bens. O corpo, com suas exigências incessantes, não constitui um mal em si; torna-se nocivo apenas quando assume o governo sobre a alma, desviando-a de seu movimento natural em direção à verdade. Nesse horizonte, a filosofia – concebida como exercício de morte – procura libertar a alma das ilusões sensíveis para que ela se reconheça em sua autêntica natureza.
Tal distanciamento não implica necessariamente uma negação do corpo, mas, antes, sua submissão à razão. A busca do bem e da verdade exige, pois, uma forma de vida em que os desejos corporais sejam ordenados como servos do espírito. A morte surge, então, como passagem: o instante em que o filósofo se despe da prisão corpórea e contempla plenamente aquilo que, durante a existência terrena, apenas pôde entrever.
II. O corpo, machado e olho da alma, segundo Aristóteles (384-322 a. C.)
A concepção instrumental do corpo recebe um tratamento ainda mais elaborado na filosofia de Aristóteles. Em De Anima12, o estagirita sustenta que o corpo existe em função da alma, constituindo-se como seu instrumento próprio13, assim como o machado é o instrumento do corte e o olho, o instrumento da visão14:
Assim como a ação de cortar e a ação de ver, também a vigília é atualidade. A alma, por sua vez, é como a potência do instrumento e como a visão; e o corpo é o ser em potência. Mas, assim como a pupila e a visão constituem o olho, também neste caso, o corpo e a alma constituem o animal.15
Aristóteles define a alma como potência do instrumento. Potência é o princípio de um movimento ou mudança de algo16, bem como o princípio pelo qual algo é movido ou transformado. Assim, ao conceber a alma como potência, o filósofo infere que é por meio do instrumento – o corpo – que ela realiza seus atos e finalidades.17 Corpo e alma, portanto, constituem conjuntamente o ser vivo e são inseparáveis da existência: não há realidade física ou essencial de um ser animado sem essa união substancial, do mesmo modo que não há visão sem olho.
A alma não é algo estranho que habita o corpo, como sugeria Platão, mas forma que proporciona consistência, finalidade e identidade. Enquanto a matéria é potencialidade, é a alma que a atualiza, ordena suas funções e permite que o corpo realize suas atividades vitais. Sem ela, o corpo permanece matéria inerte, privada de finalidade ou direção – assim como um olho sem visão ou uma lâmina sem corte. A vida, portanto, não emerge do corpo isoladamente, mas da interação inseparável entre matéria e forma.18
Essa compreensão implica uma superação do dualismo platônico: a verdade e a virtude não exigem o afastamento do corpo, mas sua integração com a alma. A ética aristotélica parte da ação humana concreta, corporal e racional, reconhecendo que os atos virtuosos se manifestam no mundo por meio do corpo, que é instrumento e veículo da razão. O corpo, longe de ser obstáculo, é condição necessária para que a alma exerça plenamente sua finalidade no mundo sensível.
III. O corpo, instrumento necessário para a alma, em Plotino (205-270)
A ideia de instrumentalidade do corpo também aparece na filosofia neoplatônica.19 Plotino, em suas Enéadas, considera o corpo como um meio pelo qual a alma obtém experiências sensíveis, ferramenta que permite à mente perseguir desejos e sensações, sem que sua essência espiritual se confunda com a materialidade:
Mas deve-se pôr alma em corpo, sendo ela tanto antes dele, quanto nele; a partir dele e dela, o todo é denominado vivente. Então ela, servindo-se de um corpo tal como de um instrumento, não tem necessidade de receber as impressões através do corpo, assim como os artesãos não têm necessidade de receber as impressões dos instrumentos; mas talvez a alma tenha necessidade forçosamente de sensação, se é preciso servir-se de um instrumento para que ela reconheça as impressões externas a partir de sensação, uma vez que servir-se de olhos é olhar.20
A relação entre corpo e alma é de mútua interdependência: a alma só alcança seus fins ao se unir ao corpo, enquanto este, por si só, é incapaz de realizar vida plena. Nessa união, o corpo, embora inferior à alma, é elevado, pois recebe a vitalidade que lhe é própria apenas por intermédio da alma. Por outro lado, a alma sofre limitação ao se associar ao corpo: vê-se marcada pela fragilidade, pela mortalidade e pela irracionalidade que caracterizam a matéria.21 O ser vivente é, portanto, o produto dessa fusão, o todo que resulta da conjugação entre corpo e alma. Embora a alma exista previamente, no mundo inteligível, sua condição de ser capaz de sentir e experimentar só se concretiza quando incorporada a um corpo.
Corpo e alma se relacionam de modo complexo: combinam dependência prática e superioridade ontológica. Ao contrário de Platão, para quem o corpo é uma prisão que impede a alma de alcançar a verdade, Plotino reconhece que a alma se beneficia do corpo enquanto instrumento, embora este permaneça limitado. Diferentemente de Aristóteles, que vê corpo e alma como um composto inseparável, a instrumentalidade do corpo em Plotino é contingente: a alma não necessita ontologicamente do corpo para existir, mas sua atuação no mundo sensível depende dele, de modo análogo a um artesão que só pode produzir com suas ferramentas. Assim, a encarnação impõe uma necessidade funcional, e não ontológica, ao espírito: sem o corpo, a alma não poderia interagir com a realidade perceptível. Essa mediação, no entanto, é marcada por imperfeições.
O corpo, por sua condição material, oferece apenas impressões fragmentadas, incapazes de refletir a essência das coisas. Enquanto a alma existe no mundo inteligível e tem vocação para a contemplação do Bem22, no corpo ela experimenta apenas imagens distorcidas e parciais da realidade. Nesse sentido, a sensação torna-se um meio limitado, útil apenas para a experiência prática e provisória, mas incapaz de gerar conhecimento pleno. A verdadeira sabedoria, portanto, exige transcender o uso dos sentidos, reconhecendo sua função instrumental: o corpo serve à alma, mas nunca a substitui, nem lhe confere autonomia epistemológica.23
Plotino, assim, propõe um ponto intermediário entre Platão e Aristóteles: o corpo não é prisão absoluta nem constitutivo da vida em si, mas instrumento necessário para que a alma atue no mundo sensível, ainda que sua perfeição permaneça sempre no domínio inteligível. Essa concepção permite compreender a vida sensível como um estágio subordinado da existência, onde a experiência corporal auxilia, mas não determina, o desenvolvimento espiritual.24
IV. Limites práticos e éticos do corpo em Santo Agostinho (354-430)
Na Patrística, Agostinho de Hipona apresenta uma visão do corpo marcada pela limitação e pela corrupção moral. Em O Livre-Arbítrio, afirma que o corpo “oprime” a alma em decorrência do pecado, restringindo a sua plenitude e desviando-a de seus fins divinos.25 Diferentemente do pensamento aristotélico, que integra corpo e alma como um composto inseparável, Agostinho concebe uma separação substancial: corpo e alma possuem essências distintas, e a alma deve governar o corpo, moldando-o segundo a vontade de Deus. Esse domínio se exerce por meio das virtudes, que permitem submeter o corpo a uma servidão legítima e conveniente, preparando-o para a morada eterna da vida após a morte.
Além disso, Agostinho articula essa relação com sua reflexão sobre temporalidade e eternidade. O corpo, pela sua natureza corruptível, ancora o ser humano no tempo e nas contingências, e manifesta limitações e sofrimentos próprios à existência terrena pós-queda. A alma, por sua participação na eternidade de Deus, possui vocação para transcender essas condições temporais. Assim, a prática moral agostiniana busca libertar a alma do apego desordenado aos prazeres e necessidades corporais, direcionando-a à contemplação do Bem supremo. O corpo, embora dotado de substância própria, funciona sobretudo como instrumento subordinado à alma, cuja excelência e destino se realizam para além das contingências terrenas.26
Agostinho também introduz um elemento crucial ao considerar o corpo como parte essencial do destino humano. Sua defesa da ressurreição da carne confere ao corpo uma dignidade que a filosofia grega, em geral, não atribuía. Embora, durante a vida terrena, o corpo permaneça como instrumento imperfeito, marcado pelo pecado, ele será transformado e glorificado segundo a vontade divina ao final dos tempos. Nesse horizonte, a esperança cristã não se fundamenta na separação definitiva da alma em relação ao corpo, mas na sua reunificação plena em um estado de beatitude, livre de corrupção e limitação, em que ambos alcançam sua perfeição.27
De forma semelhante à Teoria da Reminiscência de Platão, Agostinho concebia que, ao encarnar, a alma submetia-se ao esquecimento das ideias que possuía anteriormente, assumindo os trabalhos e desafios da vida terrena.28 Nesse contexto, as almas permanecem responsáveis pelo governo do corpo e pelas escolhas que realizam, respondendo por acertos e erros. No entanto, Agostinho não atribui pecado à alma em si; pelo contrário, é dela que emanam a capacidade de agir corretamente, de enfrentar obrigações penosas, de trilhar o caminho da fé em meio à ignorância e de exercer o juízo reto que aproxima o homem de Deus.29
Quando, porém, a alma se desvia da salvação e se entrega aos desejos que agradam o corpo, incorre nas consequências de seu mau uso da liberdade.30 Assim, percebe-se que, ao contrário do ideal de instrumentalização absoluta do corpo pela alma presente em Platão, a concepção agostiniana reconhece limites práticos e éticos: o corpo não é meramente subjugado, mas seu uso depende do discernimento moral da alma, que deve orientar-se segundo a vontade divina. O corpo é, portanto, instrumento, mas nunca de forma totalmente independente de responsabilidade; a ação virtuosa continua a exigir o equilíbrio entre a liberdade da alma e a materialidade do corpo.31
V. Santo Tomás de Aquino (1225-1274) e o corpo subordinado à razão
Apesar de a instrumentalização do corpo ter se desenvolvido na filosofia antiga, ela ganhou centralidade na filosofia medieval, quando alcançou a Escolástica de São Tomás de Aquino, contexto também relevante para Ramon Llull.32 Na Suma Teológica, Santo Tomás sustenta que o corpo humano tem como finalidade servir à alma racional e às suas operações. Funciona assim como instrumento subordinado à razão.33 A alma racional, seguindo a tradição platônica de A República, localiza-se na cabeça e tem como virtude cardeal a Sabedoria.34
Dotado dessa capacidade, o ser humano possui uma inclinação natural tanto para as virtudes intelectuais quanto para as morais, o que gera um “apetite natural ao Bem”. Ele discerne entre o que é bem e o mal e direciona suas escolhas para aquilo que a razão reconhece como superior. A racionalidade confere à alma uma aptidão natural para a ciência e para as virtudes cardeais e estabelece um vínculo intrínseco entre o juízo racional e a ordenação moral da vida.35
Entretanto, a inclinação natural da alma para o bem, para as virtudes e para a ciência não assegura, por si só, a realização de atos bons, virtuosos ou científicos.36 A concretização prática de um comportamento depende também de fatores externos ao indivíduo, incluindo as circunstâncias específicas de cada situação, que podem exigir decisões distintas. Nessa perspectiva, a aptidão da alma ao bem funciona como uma potência: ela contém a capacidade de se tornar algo, mas não garante, desde o início, que essa capacidade se concretize plenamente.
Aquino enfatiza que o exercício efetivo da virtude demanda a cooperação do corpo e das condições externas, o que evidencia a interdependência entre razão e sensibilidade corporal na vida moral. Longe de ser um obstáculo, o corpo fornece à razão os meios para perceber o mundo e avaliar as condições concretas da ação virtuosa. Em outras palavras, o corpo oferece a matéria sobre a qual a alma exerce seu discernimento racional. Essa concepção supera dicotomias extremadas entre espírito e matéria, ao reconhecer que a formação do caráter e a realização do bem dependem da integração harmoniosa entre faculdades racionais e sensibilidades corporais.
O Aquinate também reconhece que o percurso da virtude não é automático nem garantido pela simples aptidão natural da alma. O homem está sujeito a paixões e inclinações desordenadas que podem comprometer tanto a liberdade quanto o discernimento moral. A vontade, incumbida de governar a alma e o corpo, enfrenta a resistência da fragilidade humana e dos impulsos sensíveis, que exigem educação, disciplina e a ação da graça divina para serem adequadamente direcionados.37
Assim, embora o corpo seja instrumento da alma, ele não se submete espontaneamente à razão e à vontade; sua cooperação depende de um processo contínuo de formação moral, por meio do qual a inclinação natural ao bem é transformada em ações efetivas e verdadeiramente virtuosas.38
VI. Ramon Llull (1232-1316)
De modo convergente, Ramon Llull também aborda a relação entre corpo e alma. Na XI Distinção do Livro da Contemplação em Deus, ao tratar do Ordenamento Divino, o autor dedica o capítulo 39 à explicação de como Deus estruturou o corpo humano.39 Logo no início, estabelece um paralelo com as ciências naturais, agradecendo ao Criador por haver formado o homem a partir dos quatro elementos – fogo, ar, água e terra – que constituem a base de toda a natureza40:
Tabela 1
O Livro da Contemplação em Deus Ramon Llull (1232-1316) | ||
Capítol XXXIX. Com Déus ha ordonat lo cors de l’home | 39. Cómo ha ordenado Dios el cuerpo del hombre
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Catalão Antigo | Espanhol | Português |
1. Oh Deus loat, gloriós! Amat, honrat, obeït, beneit siats vós, Sènyer, qui havets compost lo cors humà dels quatre elements, e havets volgut que aquell cors sia ordonadament creat. |
1. ¡Oh Dios, alabado, glorioso! Amado, honrado, obedecido, bendecido seas Tú, Señor, que has compuesto el cuerpo humano con los cuatro elementos, y has querido que el cuerpo fuera ordenadamente creado. |
1. Oh, Deus louvado, glorioso! Amado, honrado, obedecido, bendito sejais Vós, que haveis composto o corpo humano com os quatro elementos, e haveis querido que aquele corpo fosse ordenadamente criado.
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2. Car vós, Sènyer, havets creades en cors humà quatre humors: còlera, e malenconia, e fleuma e sang; e aquestes quatre humors havets volgudes posar en home, per tal que l’home haja volentat de menjar e de boure e aja natura com pusca viure segons l’atemprament de les humors.41 |
2. Porque Tú, Señor, has creado en el cuerpo humano cuatro humores: cólera, melancolía, flema y sangre; y los has querido poner en el hombre para que él tenga necesidad de comer y beber, y tenga la tendencia natural de vivir según la índole de los cuatro humores.42 |
2. Porque Vós, Senhor, haveis criado no corpo humano quatro humores: cólera, melancolia, fleuma e sangue, e estes quatro humores haveis desejado colocar no homem para que o homem tenha vontade de comer e de beber, e tenha a natureza para poder viver de acordo com o temperamento dos quatro humores.43
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No entanto, ao ocorrer a combinação entre eles, dá-se a composição, entendida como a união de diferentes naturezas em uma só substância.45 Essa composição manifesta-se de duas maneiras: na interação entre pares de elementos – “o fogo é seco pela terra, o ar é aquecido pelo fogo, a água é umedecida pelo ar e a terra é resfriada pela água”46 – e na integração completa dos quatro elementos em um mesmo ser, o que se realiza plenamente no homem. Quando os elementos se associam de modo harmônico, a combinação resultante se torna princípio de vida, uma vez que cada elemento aperfeiçoa e modera as propriedades do outro.
Em contrapartida, caso essa união ocorra de maneira desordenada ou contrária, produz-se a corrupção, que conduz à deterioração do ser. Tendo em vista que o corpo humano contém em si os quatro elementos, Llull identifica nele a origem das chamadas compleições – cólera, melancolia, fleuma e sangue. Com isso, o autor demonstra que o corpo não é uma substância passiva ou indiferente diante da alma, mas um sistema dinâmico em que as forças naturais exercem influência direta sobre as disposições humanas.
A presença dos elementos e a formação dos humores evidenciam que o corpo também atua como princípio ativo, pois participa da constituição moral e afetiva do homem. Assim, a relação entre corpo e alma, em Llull, ultrapassa a simples instrumentalidade: ela envolve uma dimensão qualitativa, na qual o equilíbrio ou o desequilíbrio físico repercute sobre a vida racional e ética do sujeito. Além disso, a explicação que Llull oferece acerca da composição e da dissolução dos elementos ultrapassa o domínio puramente físico, já que alcança um sentido moral e espiritual.
O equilíbrio entre os humores, condição essencial da vida e da saúde, reflete a exigência de moderação e de domínio do corpo, aspectos que acompanham a alma em sua busca pela ordem e pela virtude. Dessa forma, a corporeidade, marcada por sua instabilidade e vulnerabilidade, converte-se em espaço de aperfeiçoamento e de prova, no qual o ser humano é chamado a manter a harmonia interior segundo a razão e a vontade de Deus. Não menos relevante é observar que, ao mencionar as quatro compleições, Llull faz referência ao conceito de khymós (humor), proveniente da tradição hipocrática.47 Sob essa ótica, a saúde do corpo humano depende da harmonia entre os quatro humores, que devem manter-se em proporções, qualidades e quantidades equilibradas48; o desequilíbrio, por falta ou excesso de algum deles, conduz à enfermidade. De acordo com essa doutrina, o sangue – armazenado no fígado e aquecido ao chegar ao coração – é considerado quente e úmido, resultante da combinação entre fogo e ar.
A fleuma, que inclui todas as secreções mucosas do organismo, origina-se no cérebro e é fria e úmida, sendo formada pela junção de água e ar. A cólera, ou bile amarela, é produzida no fígado e possui natureza quente e seca, fruto da mescla entre fogo e terra. Por fim, a melancolia, ou bile negra, provém do baço e do estômago: apresenta um caráter frio e seco, devido à união entre terra e água.49
No pensamento hipocrático retomado por Llull, os quatro humores estavam vinculados aos quatro elementos da natureza, às quatro qualidades fundamentais – frio, quente, seco e úmido – e às quatro estações do ano: o inverno, frio e úmido; a primavera, quente e úmida; o verão, quente e seco; e o outono, frio e seco.50 Essa estrutura simbólica ajustava-se à visão de um cosmos ordenado e coerente em todas as suas partes. A correspondência entre os humores e os ritmos naturais evidenciava que a saúde e o equilíbrio do ser humano dependem não apenas da harmonia interior, mas também da consonância com as forças que regem o universo. Assim, o corpo não se apresenta como uma entidade isolada, mas como o ponto de encontro entre o divino, o natural e o humano, sujeito a ciclos e ordens que refletem a própria organização da criação.
Nessa perspectiva, o corpo humano encontra-se em constante processo de mudança, inevitavelmente sujeito a transformações. Tal condição exige do homem atenção e adaptação permanentes, já que o desajuste dos humores afeta tanto a alma quanto a prática das virtudes. A ordem cósmica que Llull exalta pressupõe, portanto, uma responsabilidade ética e espiritual: viver em conformidade com as leis naturais e divinas significa manter a harmonia integral que sustenta a vida.
A seguir, Llull exalta Deus pelos cinco sentidos – visão, audição, paladar, olfato e tato – bem como pelas partes do corpo que os possibilitam. O primeiro sentido destacado é a visão, produzida pelos olhos, que permite ao homem perceber o mundo, compreender a realidade ao seu redor e orientar suas ações. Através da visão, o ser humano adquire conhecimento sobre animais e plantas, distinguindo aquilo que é benéfico daquilo que é nocivo.51 É por meio desse sentido que o homem contempla as obras da criação divina, sendo chamado a louvar, glorificar e bendizer a Deus, dirigindo seu olhar aos céus em vez de fixá-lo nas coisas terrenas.
Tabela 2
O Livro da Contemplação em Deus Ramon Llull (1232-1316) | ||
Capítol XXXIX. Com Déus ha ordonat lo cors de l’home | 39. Cómo ha ordenado Dios el cuerpo del hombre
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Catalão Antigo | Espanhol | Português |
5. Per ço com hom veu, ha coneixença, Sènyer, dels animals e dels vegetables, e per la vista que l’home ha d’ells, acosta a si mateix los vegetables e·ls animals que ha mester, e per la vista se lunya hom aquelles coses qui són noables. |
5. Señor, el hombre tiene conocimiento de los animales y de los vegetales, y por la visión que el hombre tiene de ellos se acerca a los vegetales y animales que necesita, y también por la visión se aleja de las cosas que le son nocivas. |
5. Mas quando o homem vê tem conhecimento, Senhor, dos animais e dos vegetais, e graças à visão que o homem tem deles, se aproxima dos vegetais e dos animais que necessita, e graças à visão se distancia das coisas que lhe são nocivas. |
6. Amorós Senyor, ple de mercè, vòs donàs a mi ulls per veer les creatures, per tal que jo us loàs e us beneits en elles, e jo, Sènyer, per ço com he aorbada la mia ànima de veritat, he aorbats los meus ulls corporals e he’ls gitats d’aquella ordonació en què vós los posàs en mi, car vós m’havets donats ulls per guardar envés lo cel, donant glòria e laor de vós; e jo, Sènyer, he enclinats mos ulls envés la terra, oblidant la glòria e l’honor de mon Creador e de mon Déu.52 |
6. Amoroso Señor, lleno de merced, Tú me diste ojos para ver las criaturas, a fin de que yo te alabara y bendijera en ellas, pero como he privado a mi alma de visión, he privado también mis ojos corporales y los he expulsado de aquella disposición en que Tú los pusiste en mí; porque Tú me has dado ojos para mirar al cielo, dando gloria y alabanza, y yo Señor, he inclinado mis ojos a la tierra, olvidando la gloria y el honor de mi Creador y mi Dios.53
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6. Amoroso Senhor, pleno de mercê! Vós destes para mim os meus olhos para ver as criaturas de tal modo que eu Vos louvasse e Vos bendissesse neles; e eu, Senhor, como privei minha alma da verdade, também privei meus olhos corporais e os expulsei daquela ordenação na qual Vós pusestes em mim, pois ao invés disso Vós me haveis dado olhos para contemplar o céu, dando glória e louvor de Vós, e ao invés disso, eu, Senhor, inclinei meus olhos para a terra, esquecendo a glória e a honra de meu criador e meu Deus.54 |
O olhar funciona como uma ponte entre o mundo visível e o Criador invisível, permitindo ao homem perceber a ordem divina presente nas criaturas e motivando-o a louvar a Deus. Nessa valorização do sentido o corpo é um instrumento de experiência capaz de conduzir à contemplação e à devoção espiritual. Entretanto, seu uso exige atenção, pois, ao fixar-se nas coisas terrenas, o homem corre o risco de perder de vista a glória divina, o que revela a constante tensão entre o físico e o espiritual. Assim, cabe ao ser humano exercer seus sentidos com prudência, orientando-os para o bem supremo e para o reconhecimento da ordem que governa a criação. Só assim pode evitar a cegueira espiritual advinda do apego ao transitório e ao corruptível.
Os ouvidos, por sua vez, possibilitam a audição, permitem ao homem perceber diferentes vozes e línguas e reconhecer suas distinções. Graças a essa capacidade, é capaz de negociar, comunicar, advertir e denunciar. Através da audição, também se tem acesso ao poder de Deus, à sua sabedoria, justiça, nobreza, misericórdia e demais perfeições divinas. Dessa forma, o homem compreende que Deus é a bondade suprema e a perfeição soberana, devendo, por isso, manter os ouvidos afastados das vaidades mundanas e dos caminhos do pecado.
A boca confere o paladar e permite perceber os sabores e distinguir o doce do amargo nos alimentos. É instrumento para falar, louvar e honrar o Criador, pois expressa os sentimentos e a vontade do coração. Sempre que a boca é usada de maneira contrária a essa finalidade, desvia-se de seu propósito divinamente destinado.
Tabela 3
O Livro da Contemplação em Deus Ramon Llull (1232-1316)
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Capítol XXXIX. Com Déus ha ordonat lo cors de l’home | 39. Cómo ha ordenado Dios el cuerpo del hombre Capítulo XXXIX. Como Deus ordenou o corpo do homem
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7. Ah Senyor misericordiós, on és tota veritat e tota misericòdia! Amat e servit siats vós, car vós havets dades orelles a l’home per tal que oia los lenguatges e per tal que oia vous e per tal que sàpia entendre e saber les diferències dels lenguatges e de les vous. On, beneit siats vós, Sènyer, car per tal com los hòmens han oïment, saben comprar e vendre, e saben donar, e demanar, e denunciar e amonestar. |
7. ¡Ah Señor misericordioso, donde está toda verdad y toda misericordia! Amado y servido seas Tú, porque Tú has dado oídos al hombre para que oiga las lenguas y para que oiga voces y para que sepa entender y conocer las diferencias de las lenguas y de las voces. Bendito seas Tú, Señor, porque como los hombres tienen capacidad de oír, saben comprar y vender, saben dar, pedir, denunciar y amonestar. |
7. Ah, Senhor misericordioso, onde se encontra toda a verdade e toda a misericórdia! Amado e servido sejais Vós, porque Vós haveis dado ouvidos ao homem para que ele escute as linguagens e para que para que ouça vozes e saiba entender e saber as diferenças das linguagens e das vozes. Assim, bendito sejais Vós, Senhor, porque assim como os homens têm a audição, sabem comprar e vender, e sabem dar e pedir, e denunciar e admoestar. |
8. Piadós Senyor, vós havets volgut que los hòmens hagen orelles ab què oien, per tal que pusquen oir lo vostre gran poder, e lo vostre saber, e la vostra justícia, e la vostra gran misericòrdia e totes les altres vertuts qui són en vós; car per aquest oïment que ells han de les vostres vertuts, aperceben los hòmens vós ésser sobirana bonea e sobirana perfecció.55 |
8. Piadoso Señor, Tú has querido que los hombres tengan oídos con los que oír, para que puedan oír tu gran poder, tu saber, tu justicia, tu gran misericordia y todas las otras virtudes que hay en Ti; porque, por lo que oyen de tus virtudes perciben, perciben los hombres que Tú eres bondad suprema y soberana perfección.56
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8. Piedoso Senhor! Vós haveis desejado que os homens tenham ouvidos para que escutem, para que possam ouvir o Vosso grande poder, o Vosso saber, a Vossa justiça, a Vossa grande misericórdia e todas as demais virtudes que estão em Vós, pois por esta audição que eles têm de vossas virtudes, percebem os homens que Vós sois a soberana bondade e soberana perfeição.57
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O paladar, associado à boca, constitui um canal privilegiado para expressar a interioridade humana, devido à estreita relação entre sentir e falar. A boca transforma-se em instrumento de comunicação e em meio pelo qual se manifesta a ligação do homem com Deus. Esse duplo movimento – perceber sabores e expressar a palavra – evidencia a interação entre corpo e alma, ultrapassa a mera instrumentalidade corporal e ressalta o papel ativo do homem na realização do propósito divino por meio da ação e da fala moral.
O olfato permite ao homem perceber aromas agradáveis de flores e frutos, que renovam o corpo e proporcionam alegria, especialmente na primavera, quando a natureza produz folhas, flores, frutos e perfumes. Llull ilustra a perda desse discernimento olfativo como uma analogia ao pecado: o homem acostumado ao mal torna-se insensível às coisas boas, tal como o porco que ignora o esterco ao qual se habituou. Quanto ao tato, exercido principalmente pelas mãos, serve para realizar as ações essenciais à sobrevivência, ao mesmo tempo em que permite ao homem elevar a Deus suas preces e agradecimentos e buscar o perdão, os dons e a misericórdia. Através das mãos, ainda, é possível arar, cavar, construir, alimentar-se, vestir-se, despir-se, pedir auxílio e executar todas as necessidades práticas da vida.58
Após relacionar os membros do corpo aos cinco sentidos, Llull dirige a atenção a outras partes com funções específicas. Principia com o coração. Contudo, ele não o apresenta sob uma perspectiva biológica, mas simbólica.59 Para Llull, o coração é o centro da meditação e do amor divino, destinado a acolher e refletir a presença de Deus.60 Nessa concepção, o autor retoma tradições cristãs que interpretam o coração como o lugar de maior proximidade entre o homem e seu Criador. No Sermão das Bem-Aventuranças, Cristo afirma que aqueles de coração puro serão capazes de contemplar Deus na vida eterna.61 De forma análoga, o Livro de Provérbios indica: “Assim como a água reflete o rosto, o coração reflete quem somos nós”.62 Passagens similares, tanto do Antigo quanto do Novo Testamento63, reforçam esse simbolismo, estabelecendo o coração como núcleo espiritual do ser humano.
Por fim, Llull menciona os pés.64 Em sua filosofia, eles foram concebidos para percorrer os caminhos da verdade, deslocar-se à igreja, trabalhar na lavoura, ir aos mercados e atender aos pobres que pedem por amor.65 De forma mais sucinta, ele também faz referência a outras partes do corpo:
Tabela 4
O Livro da Contemplação em Deus Ramon Llull (1232-1316)
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Capítol XXXIX. Com Déus ha ordonat lo cors de l’home | 39. Cómo ha ordenado Dios el cuerpo del hombre Capítulo XXXIX. Como Deus ordenou o corpo do homem
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28. Ah Senyor Déus gloriós, excellent sobre totes altees! Beneit siats vós, qui tant bé havets ordonat lo cors de l’home, car vós l’havets ornat e ordonat de cabells e celles, e ordonat de dents, e ungles, e d’ossamenta, e de venes e de nervis, e de cervell, e de fetge, e de leu, e de melsa e de totes altres coses qui són en lo cors de l’home necessàries. |
28. ¡Ah Señor Dios glorioso, excelente sobre todas las altezas! Bendito seas Tú, que has ordenado el cuerpo del hombre, porque lo has adornado y ordenado con cabellos, cejas, dientes, uñas, huesos, venas, nervios, cerebro, hígado, pulmones, bazo y todas las otras cosas que le son necesarias para su cuerpo.
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28. Ah, Senhor Deus glorioso, excelente acima de todas as altezas! Bendito sejais Vós, que tanto bem haveis ordenado no corpo do homem, pois Vós o haveis ornado e ordenado de cabelos e sobrancelhas, e ordenado de dentes e unhas, e de ossos, veias, nervos, cérebro, fígado, pulmões, baço e todas as outras coisas que são necessárias no corpo do homem.
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29. Totes aquestes coses, Sènyer, eren necessàries a cors humà, e sens neguna d’aquestes no fóra ordonat. On, lo vostre serf vos loa e us beneeix, denant la presència del vostre gloriós altar, e confessa que en totes les coses per què lo cors humà es ordonadement creat, que en totes és lo cors d’ell estat desordonat, per ço car ab totes ha peccat.66
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29. Todas estas cosas, Señor, eran necesarias al cuerpo humano y, si faltara alguna, no estaría ordenado. Por ello tu siervo te alaba y bendice, delante de la presencia de tu glorioso altar y confiesa que en todas las cosas por las que el cuerpo ha sido ordenadamente creado, en todas, su cuerpo ha sido desordenado, puesto que con todas ha pecado.67 |
29. Todas estas coisas, Senhor, eram necessárias ao corpo humano, e se alguma faltasse ele não estaria ordenado. Assim, o Vosso servo vos louva e vos bendiz diante da presença de Vosso glorioso altar, e confessa que em todas as coisas pelas quais o corpo humano foi ordenadamente criado, em todas é o corpo dele desordenado, pois com todas tem pecado.68
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A máxima expressão de um corpo plenamente ordenado encontra-se em Jesus Cristo que, na união de Sua divindade com Sua humanidade, ofereceu o modelo exemplar a ser seguido pelos cristãos.69 Além de sua composição elementar, Llull atribui ao corpo humano cinco potências: vegetativa, sensitiva, imaginativa, racional e motriz.70 A potência vegetativa, por sua vez, é subdividida em quatro funções que regulam os processos de alimentação, digestão e excreção no organismo:
Tabela 5
O Livro da Contemplação em Deus Ramon Llull (1232-1316)
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Capítol XXXIX. Com Déus ha ordonat lo cors de l’home | 39. Cómo ha ordenado Dios el cuerpo del hombre Capítulo XXXIX. Como Deus ordenou o corpo do homem
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3. Vertuós Senyor, ple de mercè, vós havets ordonat lo cors humà ab quatre potències, les quals són apetitiva, e retentiva, e digestiva e espulsiva: e per aquestes quatre potències viu l’home, car si no era l’apetitiva, no volria hom menjar, e si no era la retentiva, no tendria la vianda tro fos digesta, e si no era digestiva, no estendria la vianda per lo cors, e si no era l’expulsiva, no eixiria de l’home la grossa matèria, la qual no és bona a donar vida a l’home. |
3. Virtuoso Señor, lleno de merced, Tú has ordenado el cuerpo humano con cuatro potencias, que son apetitiva, retentiva, digestiva y expulsiva; por estas cuatro potencias vive el hombre, porque si no existiera la apetitiva el hombre no querría comer; si no fuera la retentiva, no retendría el alimento hasta que fuera digerido; si no existiera la digestiva no se extendería la comida por el cuerpo; y si no existiera la expulsiva no saldría del hombre la materia gruesa, que no es buena para dar vida al hombre. |
3. Virtuoso Senhor, pleno de mercê! Vós haveis ordenado o corpo humano com quatro potências, as quais são a apetitiva, a retentiva, a digestiva e a expulsiva. Através destas quatro potências vive o homem, pois se não existisse a apetitiva, o homem não desejaria comer, e se não fosse pela retentiva, não reteria a comida até ser digerida; se não fosse a digestiva, não estenderia a comida pelo corpo, e se não fosse a expulsiva, não sairia a espessa matéria do homem, a qual não é boa para dar vida ao homem.
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4. ¡Oh Senyor dels senyors e Pare dels pares e Sant dels sants! Vertut e glòria sia a vós, qui havets posat en cors humà ulls per veer les coses elementades, car ab los ulls veu hom les formes e les diversitats, e ab los ulls és hom certificat per los locs e per les carreres per les quals ha hom volentat d’anar.71 |
4. ¡Oh Señor de los señores, Padre de los padres y Santo de los santos! Sean dadas a Ti virtud y gloria, pues has puesto en el cuerpo humano ojos para ver las cosas elementales, porque con los ojos el hombre ve las formas y las diversidades, y con los ojos el hombre se asegura por los lugares y por los caminos por los que quiere ir.72
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4. Oh, Senhor dos senhores, Pai dos pais e Santo dos santos! Virtude e glória sejam dadas a Vós, que haveis colocado no corpo humano olhos para ver as coisas elementais, pois com os olhos o homem vê as formas e as diversidades, e com os olhos se certifica pelos lugares e pelos caminhos pelos quais tem vontade de ir.73
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Essa segmentação funcional reflete o conhecimento natural da época, que combinava observação empírica com a reflexão filosófica, o que permitia com que Llull articulasse a harmonia entre corpo e alma como expressão da ordem divina. Assim, como o dinamismo divino, o corpo humano era pelo filósofo considerado um sistema dinâmico, em constante transformação, cuja vida dependia da ação coordenada dessas potências.75 De certo modo, Llull confere à potência vegetativa uma dimensão quase moral, considerando-a agentes de preservação e purificação do corpo. Dessa maneira, a fisiologia corporal era para o autor um aperfeiçoamento moral e espiritual, o que reforçava a relevância do corpo na vida ética e religiosa.
De forma análoga ao que Aristóteles propõe em relação à alma vegetativa76, Llull entende que a potência vegetativa é essencial para a sobrevivência de plantas e animais, pois possibilita a fruição do alimento entre os seres vivos.77 O funcionamento harmonioso das quatro potências inferiores – apetitiva, retentiva, digestiva e expulsiva – assegura que o corpo se mantenha ordenado e saudável. Quando o organismo precisa crescer, retém mais alimento do que elimina; quando precisa diminuir ou aproximar-se da morte, retira mais do que conserva. Llull compara o ordenamento do corpo humano ao trabalho de um marinheiro que dirige seu navio com precisão e coloca o que é necessário em cada lugar: cordas aqui, cola ali, trabalho manual acolá.78 De modo semelhante, a potência vegetativa distribui calor, frio e umidade ao longo do corpo, segundo a necessidade de cada região.79 Por fim, quando o corpo entra em desordem, tal desequilíbrio não decorre da natureza, mas da ação inadequada do homem e de seus pecados.80
A fim de relacionar a potência vegetativa com os propósitos divinos, Llull recorda um fato instigante: os alimentos precisam ser sacrificados para dar vida a quem os consome. Da mesma forma, o homem deve mortificar a si mesmo e seus desejos para que possa amar a Deus acima de todas as coisas e o seu próximo como a ti mesmo.81 Aquele que não mortifica a si, não consegue entregar-se plenamente aos desígnios de Deus, nem se doa por completo ao irmão que necessita, pois seus interesses pessoais acabam se sobrepondo aos planos divinos.82 Assim como o alimento é fundamental para a vida humana neste mundo, a fé é o alimento indispensável para a vida eterna e a única força capaz de fazer com que o homem ultrapasse seus limites temporais e ordene sua vida de modo virtuoso.83
Já a segunda potência, a sensitiva, é a responsável pelos cinco sentidos analisados. Em paralelo com o conceito aristotélico de “alma sensitiva”84, Llull considera que, por meio de tal potência, o homem capta o mundo à sua volta e consegue conhecê-lo, senti-lo e analisá-lo.85 A potência sensitiva deve levar o homem ao conhecimento das coisas e ao intelecto racional. Essa capacidade, para Llull, distingue o ser humano dos demais animais, pois o homem usa a potência sensitiva para explorar o mundo e pensar sobre ele, o que lhe confere mais alegria e satisfação, enquanto os animais apenas agem por mero instinto.
Ao conferir à potência sensitiva o papel de perceber o mundo e encaminhar tais percepções à razão, Llull reforça a ideia de que o corpo não se limita a ser mero instrumento, mas constitui um meio eficaz de aproximação à verdade. A sensibilidade corporal funciona como o primeiro degrau de uma “escada” que conduz à razão. O corpo deixa de exercer apenas funções animais para desempenhar um papel cognitivo, sintonizado com o objetivo superior da alma: conhecer, amar e louvar a Deus.
A distinção entre o uso sensitivo do homem e os instintos animais evidencia a hierarquia da criação, típica da cosmologia medieval. O ser humano, capaz de refletir sobre suas percepções, situa-se entre os seres puramente espirituais e aqueles estritamente materiais. Para Llull, os sentidos não existem para a busca desenfreada do prazer, mas para auxiliar a alma em sua ascese; o prazer sensorial, quando regulado pela razão, torna-se um recurso que contribui para o louvor ao Criador.
A potência sensitiva ainda confere ao homem uma forma de amor próprio mais intensa do que a que dirige a outros seres, já que tudo o que toca sua própria existência provoca-lhe maior impacto e sensação do que aquilo que afeta os demais.86 Esse amor maior por si carrega, para Llull, uma consequência perigosa:
Tabela 6
O Livro da Contemplação em Deus Ramon Llull (1232-1316)
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Capítol XLI. Com Déus ha ordonada en home la potència sensitiva | 41. Cómo ha ordenado Dios en el hombre la potencia sensitiva Capítulo XLI. Como Deus ordenou no homem a potência sensitiva
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14. En ço, Sènyer, que cascun hom ama naturalment si mateix més que no fa altre, per raó de la potència sensitiva que li dóna major sensibilitat en amar si mateix que en amar altre, per açò s’esdevé que los hòmens se percacen en est món, com hic pusquen viure ni com lur pusquen haver riquees ab què s’aviden; e per aquesta ordonació aital, cascun home pren de les riquees mundanes a sos ops com més pot.87
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14. Esto, Señor, que cada uno se ame naturalmente a sí mismo más que a otro por razón de la potencia sensitiva le da mayor sensibilidad para amarse a sí mismo que para amar a otro, y por eso ocurre que los hombres procuran en este mundo cómo poder sobrevivir y cómo poder tener riquezas con las que mantenerse; y por tal ordenación cada hombre toma de las riquezas mundanas cuanto más le conviene a sus necesidades.88
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14. Isso, Senhor, que cada homem ame naturalmente a si mesmo mais do que a outro por razão da potência sensitiva que lhe proporciona maior sensibilidade para amar a si mesmo do que amar outro, por isso acontece que os homens procuram neste mundo um modo de viver e como podem ter riquezas com as quais se mantêm, e por esta tal ordenação cada homem toma das riquezas mundanas o que mais pode para as suas necessidades.89 |
Voltado primeiramente para si mesmo, o homem busca riquezas e bens materiais com o objetivo de satisfazer suas necessidades e evitar dores. No entanto, tal inclinação frequentemente resulta em apego excessivo aos objetos que agradam ao corpo, comportamento que Llull critica em várias passagens. Essa autovalorização estende-se também às relações com pais, filhos e amigos próximos, já que essas pessoas integram o círculo íntimo e influenciam diretamente a vida afetiva e pessoal do indivíduo.90
Esse apego, portanto, não nasce de altruísmo ou cuidado pelo outro, mas decorre da potência sensitiva, que faz o homem centrar-se em si mesmo e nas coisas que o impactam diretamente.91 À primeira vista, essa inclinação egoísta do homem para si mesmo poderia parecer inadequada, já que o ideal cristão valoriza a doação e o amor ao próximo como a si próprio. No entanto, Llull agradece a Deus pelo fato de a potência sensitiva levar o homem a amar mais a si e aos seus. Sem isso, ele não estaria devidamente ordenado para alcançar a glória eterna.92
Esse aparente paradoxo se esclarece quando Llull explica que, para amar a Deus e submeter-se à sua vontade, o homem precisa mortificar-se e renunciar aos afetos gerados pela potência sensitiva. Assim, se não tivesse apego a si mesmo, não teria o que oferecer nem do que abrir mão; consequentemente, sua conversão e entrega a Deus seriam impossíveis.93 Como a conversão implica um combate contra o próprio corpo e suas inclinações naturais, Llull entende que a potência sensitiva constitui precisamente a força que o cristão deve vencer para trilhar o caminho da virtude.
A interpretação da potência sensitiva como um obstáculo necessário ao processo de conversão revela a forma como Llull compreende a relação entre natureza e graça. O corpo, com suas tendências e afetos, não é visto como algo mau em si mesmo, mas como o espaço onde a alma manifesta sua fidelidade a Deus. A potência sensitiva, ao mover o homem ao amor-próprio e ao apego aos prazeres e bens do mundo, torna-se o ponto inicial da ascese cristã. Sem ela, não existiriam a tentação, o exercício da renúncia nem a possibilidade do mérito espiritual.
Llull, portanto, não condena o corpo nem os sentidos, mas os insere em uma dinâmica espiritual que exige do indivíduo o esforço consciente de ordenar o amor sensível – originalmente voltado ao próprio eu – para Deus. Assim, o mérito cristão não prescinde da sensibilidade, mas se realiza através dela, pois ao enfrentar e transformar o que lhe é mais íntimo o homem é capaz de amar o Criador com liberdade e virtude.
Em razão da potência sensitiva, portanto, o homem está predisposto a fazer o bem ou o mal, fato coerente com a liberdade que lhe é inata. Ao mesmo tempo, tal potência é raiz de onde deriva o pecado no corpo na medida em que o homem opta por si mesmo, e não por Deus.94 Porém, como seu corpo é ordenado e equilibrado, tal potência não lhe excede o necessário a ponto de retirar do homem sua capacidade de escolha.95 A vida de Jesus é, para Llull, demonstração máxima de como o homem deve se afastar do pecado e mortificar a si mesmo. Ao fazer-se homem no ventre de Maria, Cristo sofreu as tentações da natureza humana, mas amou mais ao Pai que a si.
É possível ao homem, pois, vencer as inclinações naturais de seu corpo ao recordar a paixão de Jesus, sua vitória sobre a morte e seu amor ao próximo, que fora maior que o apreço que poderia ter por si mesmo.96
A terceira potência do corpo, para Llull, é a imaginativa, responsável por fazer o homem imaginar as coisas que a potência sensitiva capta e processa. Assim, por meio da imaginação o homem tem ideia das formas, das cores, das quantidades, bem como das qualidades daquilo que o circunda, e, por meio da razão, ordena e distingue todas as representações.97 Dessa forma, por meio da imaginação que o homem tem sobre as criaturas, a razão entende e compreende a verdade existente e discerne quais são as coisas que existem e quais não existem. Isso proporciona ao homem a capacidade de analisar, entender e se portar no mundo.98
A potência imaginativa, nesse sentido, ocupa posição central no processo cognitivo descrito por Llull, ao estabelecer uma ponte entre a experiência sensível e o entendimento racional. Llull compreende que essa potência possui função estruturante que organiza as imagens sensoriais e, ao fazê-lo, fornece à razão o material necessário para sua operação. Tal função é indispensável para que o homem avance do conhecimento empírico ao conhecimento racional; da mera percepção ao juízo analítico, movimento que evidencia a articulação hierárquica das potências humanas, conforme o ordenamento querido por Deus. Além disso, Llull parece valorizar a potência imaginativa como um espaço de liberdade interior, na medida em que ela permite ao homem transcender o presente imediato, projetando-se a partir das imagens sensoriais em possibilidades futuras, memórias passadas ou até em especulações sobre realidades não experimentadas diretamente.99
Mais uma vez o filósofo maiorquino reverbera o pensamento aristotélico contido em De Anima: para o estagirita, a imaginação é o movimento que ocorre pela percepção sensível100, ou seja, a construção das primeiras impressões advindas dos sentidos. Aristóteles sustenta a importância dos sentidos – sobretudo a visão – para que haja imaginação, pois, sem eles, não há o que processar na mente. Para Llull, a potência imaginativa é graça de Deus pois, sem ela, o homem ficaria limitado a pensar somente no mundo que está ao seu alcance e nas coisas que consegue obter:
Tabela 7
O Livro da Contemplação em Deus Ramon Llull (1232-1316)
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Capítol XLII. Com Déus ha ordonada en home la potència sensitiva | 41. Cómo ha ordenado Dios en el hombre la potencia sensitiva Capítulo XLII. Como Deus ordenou no homem a potência sensitiva
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6. On, beneit e loat siats vós, sènyer Déus, qui havets ordonat que en home sia la potència imaginativa, car per ço com home viu poc de temps, per açò fo necessària cosa que la potència imaginativa fos en home; car si no fos en home, aitantost com l’home fóra mort o li foren les coses en absència, aitantost foren les coses absents menys conegudes e oblidades.101 |
6. Por lo que, bendito seas Tú, Señor Dios, que has ordenado que en el hombre haya potencia imaginativa, porque, como el hombre vive poco tiempo, fue necesario que en él hubiera potencia imaginativa; puesto que, si no la tuviera, en cuanto el hombre muriera o le faltaran las cosas, seguidamente las cosas ausentes le serían menos conocidas y olvidadas.102 |
6. Assim, bendito e louvado sejais Vós, Senhor Deus, que haveis ordenado que no homem exista a potência imaginativa, pois como o homem vive pouco tempo, foi necessária coisa que a potência imaginativa existisse no homem, pois se no homem não existisse, assim que o homem morresse ou lhe estivessem as coisas ausentes, imediatamente seriam as coisas ausentes menos conhecidas e esquecidas.103
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Por isso, adverte ele a necessidade de discipliná-la, mantendo-a sob o critério da razão e o governo da vontade orientada pelo bem. A imaginação deve, assim, servir a propósitos que elevem o espírito – à contemplação das obras de Deus e à meditação sobre a salvação. Só assim pode evitar devaneios fúteis ou desordenados.
Uma faculdade que poderia dispersar o homem transforma-se, guiada pela razão iluminada pela fé, em instrumento eficaz para o progresso espiritual. Llull formula uma verdadeira pedagogia da imaginação, em que o exercício imaginativo encontra sua nobreza na busca da verdade, na prática da virtude e na preparação para a união com o Criador. Contudo, como a potência imaginativa só constrói imagens a partir dos cinco sentidos, limita-se ao curso da natureza, ou seja, a alcançar somente as coisas presentes no mundo físico. Aquilo que é metafísico, portanto, ou atua contra o curso da natureza, não é tangível à imaginação, à exemplo da hóstia consagrada, da bondade divina e de suas virtudes.107 Para alcançar, pois, a compreensão de tais realidades, Llull destaca a necessidade de uma quarta potência: a racional.
A potência racional, para Llull, é superior a todas as outras potências108 e dotada de cinco sentidos espirituais: reflexão, compreensão, consciência, sutileza e coragem.109 Dessa forma, ela é responsável pela força motriz, ou seja, o movimento que o homem realiza com seu corpo, de modo que a decisão de realizar ou não algum ato está à cargo da escolha racional.110 Mais uma vez Llull reforça o pensamento aristotélico, que considerava a existência de uma “alma intelectiva” superior às demais e responsável pelo movimento, pela sensibilidade e pela inteligência111, e, tal como o estagirita, apresenta o processo de deliberação realizado pelo homem:
Tabela 8
O Livro da Contemplação em Deus Ramon Llull (1232-1316)
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Capítol XLIII. Com Déus ha ordonada en home la potència racional | 43. Cómo ha ordenado Dios en el hombre la potencia racional Capítulo XLIII. Como Deus ordenou no homem a potência racional
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8. On, beneyt siats vos, Sènyer Deus, qui avets ordonat que la potencia racional afigur e encerc la cosa si es en esser o no es; e si atroba que la cosa sia en esser, encerca la occasio per que es; e si atroba que la cosa no es en esser, encerca la occasio per que no es en esser; e si atroba que la cosa sia en esser, encerca que es ni quina es: e puxes, con la potencia racional ha determenades totes aquestes .iij. coses, e ella adúu en accio aquelles coses qui eren tan solament en potencia.112
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8. Oh, bendito seas Tú, Señor Dios, que has ordenado que la potencia racional tenga imaginación y busque si una cosa existe o no existe. Y si encuentra que la cosa existe, indaga la ocasión por la cual existe; y si encuentra que la cosa no existe, indaga la ocasión por la que no existe; y si encuentra que la cosa existe, indaga qué és y cómo es. Después, cuando la potencia racional ha determinado estas tres cosas, ella lleva a la acción las cosas que estaban tan sólo em potencia.113
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8. Assim, bendito sejais Vós, Senhor Deus, que haveis ordenado que a potência racional figure e investigue se uma coisa exista no ser ou não, e se encontra que a coisa existe no ser, procura a ocasião pela qual ela existe, e se descobre que a coisa não existe no ser, investiga a ocasião pela qual ela não existe, e se encontra a existência da coisa no ser, investiga o que é e como é. A seguir, quando a potência racional tem determinadas todas estas três coisas, ela leva à ação aquelas coisas que estavam apenas em potência.114
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A potência racional permite ao homem discernir o “ser” do “não-ser”, identificar as causas dos entes e, sobretudo, reconhecer a presença e a ação de Deus no mundo criado, articulando, assim, o conhecimento natural com a ascensão à verdade revelada.115
Esse movimento racional culmina, para Llull, na atualização do ato – isto é, na passagem da potência à ação – conforme o homem, guiado pela razão, decide realizar aquilo que antes era apenas possibilidade. A racionalidade humana, entendida como dom divino, não apenas distingue o homem dos demais seres criados, mas também o impele à responsabilidade moral, pois o torna senhor de suas escolhas e atos, convocando-o a ordenar sua vida segundo a justiça, a verdade e a vontade de Deus.
O pensamento racional, portanto, inicia-se na imaginação – que, por sua vez, deriva da potência sensitiva – e desenvolve-se a partir da reflexão sobre a existência ou não daquilo que se imagina. Em caso afirmativo, a razão interroga-se sobre a causa e a essência daquilo que é. O pensamento conclui-se, então, com a resposta a três questões fundamentais: se algo existe, por que existe e o que é. As coisas estão, num primeiro momento, no entendimento apenas em potência, como possibilidade de ser, e é pela razão que passam ao ato. Por essa faculdade deliberativa e intelectual, o homem se eleva acima dos demais animais e alcança as realidades espirituais e intelectuais apenas perceptíveis aos sentidos da alma.116
Llull afirma que o cristão, para viver de modo ordenado, deve fazer uso da potência racional acima de todas as outras, pois somente ela é capaz de algum entendimento sobre a divindade e os propósitos da vida eterna – ainda que de modo limitado.117
Quando se restringe a imaginar àquilo que a potência sensitiva apreendeu, sem discernir pela razão, o homem incorre em pecado, pois apega-se ao mundo natural e aos instintos que lhes são inatos.118 Somente a potência racional, portanto, pode levar à verdadeira felicidade, uma vez que apenas ela é capaz de explorar a reflexão, deliberar por boas escolhas e orientar o homem no caminho para a salvação de sua alma.119
Por fim, o filósofo catalão ressalta que o homem possui, ainda, uma quinta potência, a motriz, que é responsável pela execução dos atos ordenados pela potência racional.120 Esta, portanto, também é superior à potência motriz, uma vez que processa e delibera como o corpo deverá agir. Assim, a capacidade motriz não consegue converter em ato aquilo que ainda está em potência, pois limita-se apenas a concretizar aquilo que a razão discerniu e mandou acontecer.121 O cristão, portanto, para ser justo e viver de modo ordenado, deve realizar atos que provenham das mais virtuosas reflexões racionais, tais como amar, adorar e devotar-se a Deus em todas as coisas.122
Em contrapartida, o homem pecador é aquele que submete sua potência motriz aos impulsos da potência sensitiva, afastando-se da capacidade deliberativa da razão, dom concedido por Deus. O pecado, assim, se realiza quando a sensibilidade domina a racionalidade e conduz o agir humano.
Llull, contudo, introduz nessa estrutura uma dimensão propriamente cristã: a potência motriz não constitui apenas o meio da ação, mas representa também a exteriorização da conversão interior do fiel. O comportamento virtuoso traduz, no âmbito físico e histórico, a harmonia da alma com a vontade divina. Desse modo, não basta ao homem discernir racionalmente o bem; é preciso que sua ação o torne visível por meio de gestos concretos de amor, culto e serviço.
Conclusão
Em síntese, Ramon Llull apresenta o corpo humano como templo da alma, ordenado por Deus e dotado de funções específicas que revelam a interdependência entre o físico e o espiritual. O cristão deve compreender o corpo como instrumento da alma, orientando-o para a prática do bem, sua inclinação natural, e procurar o equilíbrio entre os quatro elementos que o compõem, bem como a proporção, a propriedade e a quantidade dos humores. Os sentidos – visão, audição, paladar, olfato e tato – têm papéis decisivos na aproximação da verdade: os olhos devem mirar os Céus, os ouvidos ouvir a grandeza e virtudes divinas, a boca servir para louvor e comunicação, o nariz para perceber os odores das criações de Deus, e as mãos para ações úteis e devotas.
O coração é a sede do amor e da meditação; os pés conduzem às vias da verdade. As potências vegetativa, sensitiva, imaginativa, racional e motriz estruturam a vida corporal e moral: a vegetativa sustenta as funções naturais; a sensitiva conduz a autoconsciência e exige renúncia aos afetos desordenados; a imaginativa permite recordar e projetar experiências, com disciplina; a racional supera as demais, promove o discernimento e ordena as ações; por fim, a motriz concretiza, no mundo físico, as plenas decisões da razão.
Assim, o corpo humano não é mero receptáculo da alma, mas caminho de ascese e exercício moral. Ordenado, reflete a harmonia divina; entregue ao pecado, manifesta desordem e sofrimento. Entre a natureza e a graça, o cristão é chamado por Ramon Llull a usar seu corpo com plena responsabilidade, adequadamente disciplinar suas potências, sentidos e afetos, para que sua vida, tanto corporal quanto espiritual, se una na contemplação, na virtude e no louvor a Deus, o que torna sua existência uma concreta e factível expressão da ordem e da glória de seu Criador.
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Fontes
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Notas
- 1. Gn 2, 7: “Então o Senhor Deus formou o homem do pó da terra e soprou em suas narinas o fôlego da vida”.
- 2. Rm 12, 1: “Oferecei os vossos corpos como sacrifício vivo, santo e agradável a Deus”.
- 3. 1Cor 6, 19-20: “Acaso não sabem que o corpo de vocês é santuário do Espírito Santo que habita em vocês, que lhes foi dado por Deus, e que vocês não são de vocês mesmos? Vocês foram comprados por alto preço. Portanto, glorifiquem a Deus com o seu próprio corpo”.
- 4. Para o tema do corpo, ver COSTA, Ricardo da. “A Estética do Corpo na Filosofia e na Arte da Idade Média. Texto e imagem”. In: Trans/form/ação, Marília, v. 35 (2012), pp. 161-178, Edição Especial.
- 5. 1Cor 15, 44: “Semeia-se corpo natural, ressuscita corpo espiritual”.
- 6. CANTING PLATA, Luis Owen. “El cuerpo según la filosofía de Platón”. In: Revista Diálogos. Revista del Departamento de Filosofía de la Universidad de Puerto Rico, vol. 53, fasc. 110, 2022, pp. 33-52.
- 7. PLATÃO. Diálogos. Protágoras – Górgias – Fedão (trad. de Carlos Alberto Nunes). Belém: EDUFPA, 2002, p. 73 (66b-c).
- 8. Dado que o corpo corrompe a busca pela verdade, Platão chega à conclusão de que a morte representa, para o filósofo, um acesso privilegiado à sabedoria, pois nela a alma é finalmente libertada de seu cárcere terreno: “[...] pois só então a alma se recolherá em si mesma, separada do corpo, nunca antes disso”. Ver PLATÃO. Fédon, op. cit., p. 75 (67a).
- 9. “E essa separação, como dissemos, os que mais se esforçam por alcançá-la e os únicos a consegui-la não são os que se dedicam verdadeiramente à Filosofia, e não consiste toda a atividade dos filósofos na libertação da alma e na sua separação do corpo?”. Ver PLATÃO. Fédon, op. cit., p. 77 (67d).
- 10. CASADESÚS BORDOY, Francesc. “Liberar el alma del cuerpo--prisión: la función de la verdadera filosofía”. In: Revista Archai n. 17 (maio 2016), pp. 173-197.
- 11. “Por consequência, continuou, ao vires um homem revoltar-se no instante de morrer, não será isso prova suficiente de que não se trata de um amante da sabedoria, porém amante do corpo? Um indivíduo nessas condições também será, possivelmente, amante do dinheiro ou da fama, se não o for de ambos ao mesmo tempo”. PLATÃO. Fédon, op. cit., p. 79 (68b).
- 12. ARISTÓTELES. De anima (apres., trad. e notas de Maria Cecília Gomes dos Reis). São Paulo: Editora 34, 2006.
- 13. “Está, então, enunciado em geral o que é a alma. Pois ela é a substância segundo a determinação, ou seja, o que é, para um corpo de tal tipo, ser o que é. Se um instrumento fosse um corpo natural – por exemplo, o machado –, a sua substância seria o que é ser para o machado, e isto seria a sua alma.” Ver ARISTÓTELES. De Anima, op. cit., p. 72 (412b10).
- 14. “E preciso considerar o que foi enunciado também no que diz respeito às partes. Pois, se o olho fosse um animal, a alma dele seria a visão, pois esta é a substância do olho segundo a determinação”. Ver ARISTÓTELES. De Anima, op. cit., p. 73 (412b17).
- 15. ARISTÓTELES. De Anima, op. cit., p. 73 (412b17).
- 16. ARISTÓTELES. Metafísica (ensaio introdutório, texto grego com tradução e comentário de Giovanni Reale). São Paulo: Edições Loyola, 2005, V, 11, 1019a, 15.
- 17. CASANOVA, Carlos. “La doctrina aristotélica del alma como forma y del intelecto como potencia del alma”. In: Síntesis. Revista de Filosofía, vol. 1, n. 2, 2007, pp. 09-19.
- 18. Para os conceitos aristotélicos (ser, matéria, forma, potência, ato etc.) ver REALE, Giovanni. “ Ensaio intrdutório”. In: ARISTÓTELES. Metafísica (ensaio introdutório, texto grego com tradução e comentário de Giovanni Reale). São Paulo: Edições Loyola, 2005, volume I. Ensaio introdutório, cap. quarto, pp. 63-85.
- 19. Para Plotino – e o neoplatonismo em geral – ver: BEZERRA, Cícero da Cunha. Compreender Plotino e Proclo. Petrópolis, RJ: Vozes, 2006; BEZERRA, Cícero Cunha; BAUCHWITZ, Oscar Federico (orgs.). Neoplatonismo: Tradição e contemporaneidade. São Paulo: Hedra, 2013; BEZERRA, Cícero Cunha; SILVA, Nilo César Batista da (orgs.). Estudos de neoplatonismo e filosofia medieval. Curitiba: Editora CRV, 2020.
- 20. PLOTINO. Enéadas I e II (introd., trad. e notas: Juvino A. Maia). João Pessoa: Ideia, 2021, pp. 17-18.
- 21. “Consideremos então estar misturado. Mas, se há mistura, o elemento pior, o corpo, ficará melhor, e o elemento melhor, a alma, ficará pior; e melhor será o corpo tomando parte da vida, e pior será a alma tomando parte da morte e da irracionalidade.” Ver PLOTINO. Enéadas I e II (introd., trad. e notas: Juvino A. Maia). João Pessoa: Ideia, 2021, p. 19.
- 22. BRANDÃO, Bernardo. “A noção de ascensão na filosofia de Plotino”. In: Doispontos: Revista dos Departamentos de Filosofia da Universidade Federal do Paraná e da Universidade Federal de São Carlos, n. 10 n. 2 (2013): Temas de Filosofia na Antiguidade. Curitiba, São Carlos, vol. 10, n. 2, pp. 55-74, outubro 2013.
- 23. BRANDÃO, Bernardo Guadalupe dos Santos Lins. Ascensão e virtude em Plotino. Belo Horizonte: Tese de doutorado, 2012, especialmente as pp. 62-63, 163-164, 169-170, 181-182.
- 24. Um trabalho que engloba Platão, Aristóteles e Plotino é ASSIS, Jean Felipe de. “Contemplação e maravilhamento: limites da causalidade em Platão, felicidade e prazer em Aristóteles, transcendência e emanação em Plotino”. In: Classica. Revista brasileira de estudos clássicos, v. 31, n. 1, 2018, pp. 43-59.
- 25. “Ora, a alma humana que desde o pecado encontra-se em seu lugar em corpos frágeis e mortais, governa cada uma o seu corpo, não totalmente conforme sua própria vontade, mas como o permitem as leis universais.” – SANTO AGOSTINHO DE HIPONA. O livre-arbítrio (trad., org., introd. e notas: Nair de Assis Oliveira; revisão: Honório Dalbosco). São Paulo: Paulus, 1995, p. 188 (III, cap. 11, 34).
- 26. SCIACCA, Michele Federico. “O composto humano na Filosofia de Santo Agostinho”. In: Revista Portuguesa de Filosofia, t. 11, fasc. 2, Santo Agostinho: No XVI Centenário do seu Nascimento 354-1954 (Apr. - Jun., 1955), pp. 125-141.
- 27. Em A Cidade de Deus, Santo Agostinho discorre sobre a ressurreição dos corpos em vários momentos da obra: Livro I (cap. XIII), Livro XII (cap. XXVII), Livro XIII (caps. XVI, XVII, XVIII, XIX, XX), Livro XX (caps. V, VI, X, XIX, XXI), Livro XXII (caps. XI, XII, XIII, XIV, XX, XXV, XXVI, XXVII, XVIII). SANTO AGOSTINHO. A Cidade de Deus (tradução, prefácio, nota biográfica e transcrições de J. Dias Pereira). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 3 volumes, 1991-1993-2011.
- 28. Agostinho sustenta que as almas existiam previamente em um lugar secreto, estabelecido por Deus, antes de serem enviadas à vida terrena. A missão dessas almas é animar e governar os corpos humanos, conduzindo-os segundo a vontade divina. O propósito último dessa incumbência é a conquista da morada incorruptível no céu, destino que confere sentido à experiência terrena e orienta a conduta moral da alma no corpo: “Por outro lado, ao admitirmos que talvez as almas já tenham preexistido em algum lugar secreto disposto por Deus, e serem elas enviadas para animar e governar os corpos de cada uma das pessoas que for nascendo – nesse caso, estão elas destinadas a esse ofício para dar uma boa direção ao corpo em que nascem, sujeito à penalidade do pecado, isto é, padecendo a mortalidade devida ao pecado do primeiro homem. Fazem isso dominando o corpo por meio das virtudes, para submetê-lo a uma servidão perfeitamente legítima e conveniente, para lhe fazer adquirir assim progressivamente, conforme a ordem, em tempo oportuno, um lugar na morada incorruptível do céu”. Ver SANTO AGOSTINHO DE HIPONA. O livre-arbítrio, op. cit., p. 215 (III, cap. 20, 57).
- 29. Para Agostinho, a salvação exige um combate contínuo contra o demônio, uma vez que a vida humana está permeada por tentações incessantes. Nesse contexto, a alma assume o papel de guia e governante, orientando o indivíduo na luta espiritual. O cristão deve, portanto, empenhar-se na resistência ao mal, mantendo os desejos corporais sob a direção da alma. Aquele que descuida desse combate e se entrega aos prazeres e amores transitórios da vida incorre na condenação eterna, resultado da má utilização da liberdade concedida por Deus. “Deus mesmo ordena que se façam esforços, seja de modo exterior por intermédio da lei, seja por convites pessoais, do íntimo do coração. E ao mesmo tempo, prepara a glória daquela cidade bem-aventurada para os vencedores (do demônio), que arrastou o primeiro homem a tal miséria, tendo-o vencido por uma pérfida persuasão”. Ver SANTO AGOSTINHO DE HIPONA. O livre-arbítrio, op. cit., p. 216 (III, cap. 20, 57).
- 30. Agostinho enfatiza que o pecado desvia o ser humano da salvação e da verdadeira felicidade. Embora a alma seja criação divina, não se pode imputar a Deus a origem do pecado, uma vez que este surge do exercício do livre-arbítrio humano. Dessa forma, a transgressão e a consequente condenação das almas não comprometem a integridade, a justiça, a firmeza ou a perfeição de Deus, que permanece totalmente imune a qualquer imperfeição moral do mundo criado: “[...] as almas estão sujeitas a um castigo merecido por seus próprios pecados, sem que seja atingida em nada a integridade, a justiça e a irredutível firmeza e imutabilidade do Criador, em sua natureza e majestade. Porque os pecados, como já expusemos longamente, não devem ser atribuídos senão à própria vontade. E não é para se buscar outra causa além dessa”. Ver SANTO AGOSTINHO DE HIPONA. O livre-arbítrio, op. cit., p. 224 (III, cap. 22, 63).
- 31. R. IRIARTE, Raúl. “Perspectiva del cuerpo humano en San Agustín”. In: Estudio Agustiniano, volumen 9 (1974), pp. 61-74.
- 32. FILIPPI, Silvana. “La unidad de cuerpo y alma en la antropología tomista”. In: Espíritu. Cuadernos del Instituto Filosófico de Balmesiana, n. 136, año 56, 2007, pp. 257-267; ECHAVARRÍA, Martín F. “La corporalidad humana según Tomás de Aquino”. In: Revista Española de Teología vol. 79, n. 03, 2019, pp. 345-366.
- 33. SANTO TOMÁS DE AQUINO. Suma de Teología II. Parte II. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, MCMLXXXIX, p. 475 (q. 63, a. 1).
- 34. PLATÃO. A República (tradução do grego de Carlos Alberto Nunes). Belém: Editora da UFPA, 2016, p. 383 (439d).
- 35. “[...] Así tambien, respecto de las ciencias y de las virtudes, algunos afirmaron que proceden totalmente de adentro, de modo que todas las virtudes y todas las ciencias preexisten naturalmente en el alma; pero que es mediante la disciplina y el ejercicio como se vencen los impedimentos de la ciencia y de la virtud, ocasionados al alma por la gravedad del cuerpo, de modo parecido a como se hace brilhar al hierro mediante la limación.” – SANTO TOMÁS DE AQUINO. Suma de Teología II. Parte II, op. cit., p. 475 (q. 63, a. 1).
- 36. Na questão 63 da Suma Teológica, Aquino debate “Sobre a causa das virtudes” e, em seu Artigo 1, investiga se a virtude é dada ao homem pela natureza. Para isso, apresenta três objeções: a primeira refere-se à posição de São João Damasceno (675-749), segundo a qual as virtudes seriam forças naturais distribuídas igualmente a todos os seres humanos; a segunda retoma a reflexão de Aquino na questão 55, artigo 4, na qual ele sustenta que a virtude é fruto da razão e, como esta é natural ao homem, a virtude também o seria; a terceira concepção considera que aquilo que é natural nasce com o sujeito, e a virtude, conforme o livro de Jó (31, 18), estaria presente no homem desde o ventre materno. Ao concluir o debate, Tomás de Aquino propõe que as virtudes funcionam como sementes inseridas na natureza da alma humana, derivadas da razão inata. Desde a gestação, portanto, o ser humano já possui uma disposição para o exercício da virtude, embora sua plena realização dependa da formação moral e da prática ao longo da vida. Ver SANTO TOMÁS DE AQUINO. Suma de Teología II. Parte II, op. cit., p. 475 (q. 63, a. 1).
- 37. Quanto à ressurreição dos corpos, ““Se é evidente, pelo que se acabou de dizer, que tanto a felicidade quanto a miséria futuras realizam-se principalmente na alma, secundariamente, porém, e por certa derivação, no corpo, a felicidade ou a miséria da alma não dependem da felicidade ou da miséria do corpo, mas mais dela mesma. Como, após a morte e antes da ressurreição dos corpos, umas almas apresentam-se com a merecida bem-aventurança, outras, com a merecida miséria, isso evidencia que, já antes da reassunção dos corpos, algumas almas gozarão da felicidade, conforme atesta a Segunda Carta aos Coríntios [...] Outras almas, porém, viverão na miséria, conforme se lê no Evangelho de São Lucas [...]”. SANTO TOMÁS DE AQUINO. Compêndio de Teologia (trad. e notas: D. Odilão Moura, OSB). Rio de Janeiro: Presença, 1977, cap. CLXXVIII.
- 38. Naturalmente, o corpo de Cristo é uma referência teológica de Santo Tomás. Ver MOLTENI, Agostino. “El cuerpo pensado y pensante de Jesús según Tomás de Aquino: Recursos para una filosofía del cuerpo”. In: Revista de Filosofía UCSC. Universidad Católica de la Santísima Concepción Facultad de Estudios Teológicos y Filosofía, vol. 23, nº 2, 2024, pp. 502-520.
- 39. As edições de base para o trabalho foram três: 1) RAMON LLULL, Libre de Contemplació en Deu. Palma de Mallorca: Comissió Editora Lulliana, 1906; 2) RAMON LLULL. “Libre de contemplació”. In: Obres Essencials (OE). Volum II. Barcelona: Editorial Selecta, 1960, pp. 97-1269, e 3) RAMON LLULL. Libro de Contemplación en Dios. Tomo I (eds.: Julia Butiñá, Matilde Conde, Carmen Teresa Pabón, Maria Lluïsa Ordóñez y José Higuera). Madrid: Palas Atenea, 2018.
- 40. Para o papel dos quatro elementos na filosofia de Llull, o clássico trabalho é o de YATES, Frances A. “La teoría luliana de los elementos”. In: Studia Lulliana 1960, vol. 4 fasc. 1, pp. 45-62.
- 41. RAMON LLULL. “Libre de contemplació”. In: Obres Essencials (OE). Volum II. Barcelona: Editorial Selecta, 1960, p. 180 (Volum Primer, Libre Segon, XI Distinció. Qui tracta de l’odenació divina, Cap. XXXIX, 1-2).
- 42. RAMON LLULL. Libro de Contemplación en Dios. Tomo I (eds.: Julia Butiñá, Matilde Conde, Carmen Teresa Pabón, Maria Lluisa Ordóñez y José Higuera). Madrid: Palas Atenea, 2018, p. 189.
- 43. Tradução do catalão antigo: Prof. Dr. Ricardo da Costa (UFES).
- 44.
“[...] e tot so que tos ulls voen desús la luna, tot es dels quatre elements.” – Libre de Doctrina Pueril, XCIV, 2, p. 264.
Tradução para o português: RAMON LLULL. Doutrina para crianças (c. 1274-1276) (trad.: Ricardo da Costa e Grupo de Pesquisas Medievais da UFES III [Felipe Dias de Souza, Revson Ost e Tatyana Nunes Lemos]). Alicant: e-Editorial IVITRA, 2010. Ver também COSTA, Ricardo da. “Reordenando o Conhecimento. A Educação na Idade Média e o conceito de Ciência na Doutrina para Crianças (c.1274-1276) de Ramon Llull”. In: OLIVEIRA, Terezinha (coord.). Anais Completos da II Jornada de Estudos Antigos e Medievais: Transformação Social e Educação. Universidade Estadual de Maringá, 2002, pp. 17-28.
- 45. “¿Sabs, fill, que vol dir simplicitat? cosa estant en sa natura metexa, sens composicio d altra cosa: ¿e sabs que vol dir composicio? ajustament de diverses coses mesclades en una cosa.” – Libre de Doctrina Pueril, XCIV, 6, p. 264.
- 46. “En dues maneres se fa composicio: una es con lo foch es sech per la terra, e l aer es calt per lo foch, e l aygua es humida per l aer, e la terra es freda per l aygua. L altra manera es con tots los elements son ajustats en un cors elementat, axí com en lo meu e en lo teu e en les altres coses on son ajustats los quatre elements.” – Libre de Doctrina Pueril, XCIV, 7, pp. 264-265.
- 47. ALBY, Juan Carlos. “La concepción antropológica de la medicina hipocrática”. In: Enfoques XVI, 1, 2004, pp. 05-29.
- 48. REZENDE, Joffre Marcondes de. “Dos Quatro Humores às Quatro Bases”. In: À sombra do plátano: crônicas de história da medicina. São Paulo: Editora Unifesp, 2009, pp. 49-53.
- 49. “[...] La colera es del foch, la sanch del aer, la fleuma de l aygua, la malenconía es de la terra. La colera es calda per lo foch e es seca per la terra; la sanch es humida per laer e es calda per lo foch; la fleuma es freda per l aygua e es humida per laer; la malenconía es seca per la terra e es freda per l aygua.” – Libre de Doctrina Pueril, LXXVIII, 5, p. 201.
Para a melancolia, ver COSTA, Ricardo da. “A Melancolia na filosofia de Ramon Llull (1232-1316)”. In: FREITAS, Verlaine, COSTA, Rachel, FERREIRA, Debora Pazetto (orgs.). O trágico, o sublime e a melancolia. Volume 3. Belo Horizonte: ABRE – Associação Brasileira de Estética, 2016, p. 192-206. - 50. REZENDE, J. M. Dos Quatro Humores às Quatro Bases, op. cit., p. 51.
- 51. “Oh Senyor dels senyors e Pare dels pares e Sant dels sants! Vertut e gloria sia a vos, qui avets posat en cors humà ulls per veer Ies coses elementades; car ab los ulls veu hom les formes e les diversitats, e ab los ulls es hom certificat per los locs e per les carreres per les quals ha hom volentat d anar”. LC, Dist. 11, cap. 39, 4.
- 52. RAMON LLULL. “Libre de contemplació”. In: Obres Essencials (OE). Volum II. Barcelona: Editorial Selecta, 1960, p. 180 (Volum Primer, Libre Segon, XI Distinció. Qui tracta de l’odenació divina, Cap. XXXIX, 5-6).
- 53. RAMON LLULL. Libro de Contemplación en Dios. Tomo I (eds.: Julia Butiñá, Matilde Conde, Carmen Teresa Pabón, Maria Lluisa Ordóñez y José Higuera). Madrid: Palas Atenea, 2018, p. 189-190.
- 54. Tradução do catalão antigo: Prof. Dr. Ricardo da Costa (UFES).
- 55. RAMON LLULL. “Libre de contemplació”. In: Obres Essencials (OE). Volum II. Barcelona: Editorial Selecta, 1960, p. 180 (Volum Primer, Libre Segon, XI Distinció. Qui tracta de l’odenació divina, Cap. XXXIX, 7-8).
- 56. RAMON LLULL. Libro de Contemplación en Dios. Tomo I (eds.: Julia Butiñá, Matilde Conde, Carmen Teresa Pabón, Maria Lluisa Ordóñez y José Higuera). Madrid: Palas Atenea, 2018, p. 190.
- 57. Tradução do catalão antigo: Prof. Dr. Ricardo da Costa (UFES)
- 58. Ao discutir as funções de cada parte do corpo humano, Llull retoma sua postura de autocomiseração, lamentando comportamentos inadequados que teve em relação ao próprio corpo. Para ele, o uso das capacidades corporais em fins meramente terrenos representa um desvio do propósito divino. No caso específico das mãos – que recebem atenção especial no capítulo – Llull expressa vergonha por não ter cuidado das feridas dos pobres, por não ter compartilhado suas vestes com os necessitados e por não ter cedido sua comida para alimentar os famintos, reconhecendo o fracasso em utilizar o corpo para a prática da caridade e da virtude. Ver LC, Dist. 11, cap. 39, 21.
- 59. O funcionamento do coração como órgão central na circulação sanguínea só foi compreendido de forma sistemática no século XVII, quando o médico inglês William Harvey (1578-1657) publicou, em 1628, seu “Estudo anatômico sobre o movimento do coração e do sangue nos animais”. Ver REBOLLO, Regina Andrés. William Harvey e a descoberta da circulação do sangue. Estudo anatômico sobre o movimento do coração e do sangue nos animais. São Paulo: Editora UNESP, 2013.
- 60. “[...] ajats donat al home cor per amar e per esser casa en que vos estiats”. LC, Dist. 11, cap. 39, 24.
- 61. Mt 5, 8: “Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus”.
O Sermão da Montanha foi magnificamente dissecado por Santo Agostinho. Ver SANTO AGOSTINHO. Sobre o Sermão do Senhor na Montanha (ed., trad. e notas de Carlos Ancêde Nougué). Anápolis-Goiás: Edições Santo Tomás, 2003. - 62. Prov 27, 19.
- 63. 1Sm 16, 7: “[...] O Senhor não vê como o homem: o homem vê a aparência, mas o Senhor vê o coração.” – Sl 51, 10; “Cria em mim um coração puro, ó Deus, e renova dentro de mim um espírito estável.” – Ez 36, 26: “Darei a vocês um coração novo e porei um espírito novo em vocês; tirarei de vocês o coração de pedra e, em troca, darei um coração de carne”; Mt 22, 37: “Respondeu Jesus: ‘Ame o Senhor, o seu Deus de todo o seu coração, de toda a sua alma e de todo o seu entendimento’”.
- 64. Desde João de Salisbury (c. 1120-1180), os pés ocupam lugar central na metáfora do corpo: “‘Os agricultores se parecem aos pés, pois também se encontram continuamente no solo. Para eles é especialmente necessária a atenção da cabeça, já que tropeçam em muitas dificuldades enquanto pisam a terra com o trabalho de seu corpo, e merecem ser protegidos com tanta ou mais justa proteção para se manterem de pé, sustentarem e moverem todo o corpo. Retire de qualquer corpo essas peças dos pés que, por mais robusto que ele seja, não poderá caminhar por suas próprias forças, mas tentará se arrastar torpemente com as mãos, sem consegui-lo e com grande fadiga, ou só poderá se mover com o auxílio das bestas (Livro V, 2, 6)’. Da passagem, não posso deixar de ressaltar a importância que a filosofia política de Salisbury dá à base da sociedade: os camponeses.” – COSTA, Ricardo da. “A Estética do Corpo na Filosofia e na Arte da Idade Média. Texto e imagem”, op. cit., pp. 164-165.
- 65. “Car per los peus que avets donats, Sènyer, als homens, son los homens poderosos d anar a la sancta esgleya adorar e pregar vos; e ab los peus van los homens a lurs lauraons e a lurs mercaderíes; e ab los peus van los rics visitar los pobres qui per amor de vos demanen.” – LC, Dist. 11, cap. 39, 26.
- 66. RAMON LLULL. “Libre de contemplació”. In: Obres Essencials (OE). Volum II. Barcelona: Editorial Selecta, 1960, p. 181-182 (Volum Primer, Libre Segon, XI Distinció. Qui tracta de l’odenació divina, Cap. XXXIX, 28-29).
- 67. RAMON LLULL. Libro de Contemplación en Dios. Tomo I (eds.: Julia Butiñá, Matilde Conde, Carmen Teresa Pabón, Maria Lluisa Ordóñez y José Higuera). Madrid: Palas Atenea, 2018, p. 192-193.
- 68. Tradução do catalão antigo: Prof. Dr. Ricardo da Costa (UFES)
- 69. “[…] que mon cors no sia amant ni loant nulla autra cosa si no la vostra deitat e humanitat, les quals foren ajustades en lo ventre de nostra dona Sancta María, la qual portá vos per fill, qui sots son creador e son Deu.” – LC, Dist. 11, cap. 39, 30.
- 70. “Como a alma é substância invisível, afirma Ramon, muitos homens não têm conhecimento dela, nem sabem usá-la e ordená-la para a finalidade para a qual foi criada, isto é, lembrar, conhecer e amar a Deus. Essas três finalidades são uma exata correspondência de base agostiniana com as funções da alma. Llull as designa pelo conceito de potências ativas criadas, mais um conceito aristotélico, potência, que significa ‘capacidade de realizar mudança em outra coisa ou em si mesmo’ em um fundo agostiniano. Na filosofia de Ramon, essas potências ativas foram ampliadas em sua noção conceitual e receberam o nome de correlativos.” – COSTA, Ricardo da. “O que é, de que é feita e por que existe? Definições lulianas no Livro da Alma Racional (1296)”. In: PARDO PASTOR, Jordi (coord.). Mirabilia 5. Ramon Llull (1232-1316): la convivencia entre las diferentes culturas y el diálogo inter-religioso, 2005, p. 146.
- 71. RAMON LLULL. “Libre de contemplació”. In: Obres Essencials (OE). Volum II. Barcelona: Editorial Selecta, 1960, p. 180 (Volum Primer, Libre Segon, XI Distinció. Qui tracta de l’odenació divina, Cap. XXXIX, 3-4).
- 72. RAMON LLULL. Libro de Contemplación en Dios. Tomo I (eds.: Julia Butiñá, Matilde Conde, Carmen Teresa Pabón, Maria Lluisa Ordóñez y José Higuera). Madrid: Palas Atenea, 2018, p. 189.
- 73. Tradução do catalão antigo: Prof. Dr. Ricardo da Costa (UFES)
- 74. “Los cuatro humores –colera, melancolia, flema y sangre entran en la composicion del cuerpo, que tiene cuatro potencias: apetitiva, retentiva, digestiva y expulsiva.” – AOS BRACO, Celestino. “La imaginacion en el sistema de Ramon Llull”. In: Studia Lulliana 1979, vol. 23, fasc. 2-3, p. 158.
- 75. ARTUS, Walter W. “El dinamismo divino y su obra máxima en el encuentro de Llull y la filosofía muçulmana”. In: Studia Lulliana 1978, vol. 22, fascs. 1-3, pp. 155-197.
- 76. Em De Anima, Aristóteles distingue três espécies de alma: vegetativa, sensitiva e intelectiva. A chamada alma vegetativa, ou “nutritiva”, responde pelas funções mais básicas da vida, incluindo nascimento, nutrição, crescimento e reprodução. As plantas, por realizarem exclusivamente essas atividades, constituem o exemplo paradigmático de alma vegetativa: “É manifesto ainda que as plantas – e dentre os animais, alguns insetos –, quando secionadas, continuam a viver como se tivessem a mesma alma especificamente, ainda que não numericamente; pois cada uma das partes tem sensação e move-se localmente por algum tempo. Se não sobrevivem, não resulta em absurdo algum, pois não mantêm órgãos a ponto de conservar a sua natureza. Em cada uma das partes, porém, estão todas as partes da alma e nenhuma a menos. E elas são da mesma espécie entre si e em relação à alma inteira – as diversas partes são inseparáveis umas das outras, embora a alma inteira seja divisível. Parece que o princípio encontrado nas plantas é também um certo tipo de alma, pois apenas ela é compartilhada por animais e plantas: e ela existe separada do princípio perceptivo, embora sem ela nada possa ter percepção”. Ver ARISTÓTELES. De Anima, op. cit., 411b19, pp. 69-70.
- 77. Como as plantas possuem a potência vegetativa, os animais podem alimentar-se delas e garantir sua sobrevivência, assim como podem nutrir-se de outros animais. Para Llull, isso ocorre porque tanto vegetais quanto animais compartilham as funções essenciais de nascer, crescer e reproduzir-se: “[...] Beneyt siats vos, qui aquesta potencia vegetable avets posada en los vegetables e en los animals; car per so con la avets posada en los vegetables, poden los animals viure de los vegetables; e en so que vos avets posada la potencia vegetable en los animals, poden los animals pendre vida de los vegetables e poden los uns animals pendre vida dels altres.” – LC, Dist. 11, cap. 40, 3.
- 78. “[…] car vostra saviea ha ordonat que en axí com lo nautxer ordona la nau e dona a cada loc de la nau les coses que hi son mester, en axí vostra saviea ha ordonat que la anima per potencia vegetable tenga ordonat tot lo cors del home.” – LC, Dist. 11, cap. 40, 7.
- 79. Llull atribui à potência vegetativa o ordenamento das quatro qualidades (quente, seco, úmido e frio) no corpo humano. Ver LC, Dist. 11, cap. 40, 8.
- 80. Llull cita a gula como pecado que desordena o corpo, uma vez que o excesso de comida distorce o processo natural da potência vegetativa. Embora o corpo seja naturalmente regulado, a ação humana é capaz de deteriorá-lo conforme suas ações indevidas. Ver LC, Dist. 11, cap. 40, 19.
- 81. A mortificação de si mesmo não significa um sacrifício literal da própria vida, mas sim subjugar os interesses pessoais e humanos aos desígnios divinos. Portanto, compreende dedicar a existência neste mundo aos propósitos de Deus. Ver LC, Dist. 11, cap. 40, 13.
- 82. Para Llull, tal limitação ocorre pois o homem, em sua natureza de pecado, é presunçoso, ambicioso, injurioso e cheio de vícios. Ver LC, Dist. 11, cap. 40, 14.
- 83. “[...] en axí los homens justs viurán en gloria, per la vera fe que han del entrament que vos feés en est seggle, adoncs con ic nasqués, e per l eximent que feés d aquest mon, adoncs con ic murís.” – LC, Dist. 11, cap. 40, 25.
- 84. Aristóteles entende que todo pensamento tem início nos sentidos, que captam imagens do mundo para que a mente processe, analise e reflita. Não há pensamento sem imagem: “Sentir, então, é semelhante ao mero proferir e pensar; e quando é agradável ou doloroso, como o afirmado ou negado, isso é perseguido ou evitado; e sentir prazer ou dor consiste em estar em atividade com a média da capacidade sensitiva, em face do bem ou do mal como tais. A aversão e o desejo são a mesma coisa em atividade, e a capacidade de desejar e de evitar não são diferentes, nem entre si, nem da capacidade de sentir, embora o ser seja diverso. Para a alma capaz de pensar, as imagens subsistem como sensações percebidas. E, quando se afirma algo bom ou nega-se algo ruim, evita-o ou persegue-o. Por isso, a alma jamais pensa sem imagem”. Ver ARISTÓTELES. De Anima, op. cit., p. 119 (431a8).
- 85. “[...] per raó de la potencia sensitiva venga l ome a conexensa de les coses entellectuals; car en so que los homens han conexensa de les coses sentides, aperceben veritat de les coses invisibles.” – LC, Dist. 11, cap. 41, 7.
- 86. Para Llull, o homem consegue imaginar o que o seu próximo sente, mas não é capaz de sentir por ele, fisicamente, aquilo que lhe atinge. Por isso, tem-se um zelo maior consigo mesmo do que pelos outros, uma vez que o homem sente em seu corpo aquilo que lhe diz respeito: “[...] Beneyt siats vos, qui avets ordonat en home que sia pus sentible en amar son esser metex, que en amar null altre esser. En so, Sènyer, que cascun hom ama naturalment sí metex més que no fa altre, per raó de la potencia sensitiva que li dona major sensibilitat en amar sí metex que en amar altre, per assò s esdevé que los homens se percassen en est mon, com ic pusquen viure ni com ic pusquen aver riquèes ab que saviden; e per aquesta ordonacio aital, cascun home pren de les riquèes mundanes a sos obs com més pot.” – LC, Dist. 11, cap. 41, 13-14.
- 87. RAMON LLULL. “Libre de contemplació”. In: Obres Essencials (OE). Volum II. Barcelona: Editorial Selecta, 1960, p. 185 (Volum Primer, Libre Segon, XI Distinció. Qui tracta de l’odenació divina, Cap. XLI, 14).
- 88. RAMON LLULL. Libro de Contemplación en Dios. Tomo I (eds.: Julia Butiñá, Matilde Conde, Carmen Teresa Pabón, Maria Lluisa Ordóñez y José Higuera). Madrid: Palas Atenea, 2018, p. 199.
- 89. Tradução do catalão antigo: Prof. Dr. Ricardo da Costa (UFES)
- 90. Para Llull, a potência sensitiva promove o apego do homem às pessoas que ama, pois as sensações que esses indivíduos provocam lhes impacta mais do que uma pessoa desconhecida: “Encara s esdevé, Sènyer, que per raó de la potencia sensitiva cascun hom ama més sos fills e sos parents e sos amics, que no fa neguns dels altres qui res no li atanyen ne qui res no l amen: e aquesta amor aital s esdevé naturalment per so car la potencia sensitiva fa més amar a home les coses on pus prop li son, de parentesc o d amor.” – LC, Dist. 11, cap. 41, 15.
- 91. “La contemplación, por tanto, definida como comprensión de la fe, consistirá en perfeccionar la potencia racional en todas sus operaciones -y eso incluye el perfeccionamiento de las potencias inferiores: sensitiva e imaginativa- para que proponga a la potencia motiva aquellas acciones más perfectas (es decir, aquellas acciones que son su objeto propio), en este caso, el amor a Dios y una fructífera tarea misionera. En la ascensión contemplativa el hombre adquiere la virtud y vence el vicio.” – GAYÀ ESTELRICH, Jordi. “Ascensio, virtus: dos conceptos del contexto original del sistema luliano”. In: Studia Lulliana 1994, vol. 34, p. 35.
- 92. “Excellencia e gloria e vertut sia a vos, Sènyer Deus, qui tam bé avets ordonada en home la potencia sensitiva; car si hom no amás més per ella o sí metex o sos parents o sos amics que neguns dels altres homens, ja no fora home tam bé ordonat a guaanyar mèrit de gloria ni a guaanyar mèrit de pena.” – LC, Dist. 11, cap. 41, 16.
- 93. Segundo Llull, como o homem tende naturalmente a amar a si mesmo e aos que lhe são próximos, ele também carrega o dever moral de renunciar a esses amores para consagrar-se inteiramente a Deus. Tal renúncia constitui um passo essencial no caminho da salvação da alma. Por outro lado, aqueles que permanecem presos aos afetos terrenos e vivem apenas para satisfazer seus desejos não são dignos da vida eterna, pois dedicam seu amor a realidades inferiores, negligenciando aquele que possui o supremo valor. “[...] e con l ome peccador seguex la amor que li vé per la potencia sensitiva en amar sí metex e sos fills més que vos, es digne de esser punit em perdurable pena, per so car so qui menys val ama, sobre so qui més val.” – LC, Dist. 11, cap. 41, 17.
- 94. “[…] en axí la rayll d on diriva tot mal en l ome sí es la potencia sensitiva con vé que no es mortificada.” – LC, Dist. 11, cap. 41, 27.
- 95. “[…] que jassía so que la potencia sensitiva aja gran forsa e gran poder en home, per tot assò no roman que lo remembrament de la vostra bonea e de la vostra encarnacio no vensa la malea ni la iniquitat qui cau en home per la potencia sensitiva.” – LC, Dist. 11, cap. 41, 24.
- 96. Para Llull, a encarnação, morte e ressurreição de Cristo são o grande exemplo guia do comportamento humano. Jesus amou mais aos outros que a si mesmo; entregou-se abdicando totalmente da própria satisfação e de seu corpo em totalidade. Assim, o homem, ao recordar tais feitos, contempla a bondade de Deus e consegue vencer a inclinação natural da potência sensitiva que lhe induz ao pecado: “[...] car vos, Sènyer, per tal que hom agués occasio de mortificar la potencia sensitiva, volgués pendre carn en lo ventre de nostra dona Sancta Maria, e volgués esser pobre e venut e aontat e turmentat e mort per la nostra amor: e tot assò es occasio a home que mortific sí metex en amar vos, més que sí metex ni nulla autra cosa.” – LC, Dist. 11, cap. 41, 22.
- 97. A potência sensitiva dispõe dos cinco sentidos para capturar o mundo externo por meio da visão, da audição, do tato, do olfato e do paladar. A partir daí, a potência imaginativa constrói as referências e os conceitos sobre a realidade captada: “[...] car ab la potencia ymaginativa ymagina hom les coses sentides, en so que la ymaginativa ymagena les formes e les colors e les quantitats e totes les altres qualitats.” – LC, Dist. 11, cap. 42, 1.
- 98. Para Llull a potência imaginativa é a mediadora entre a sensitiva e a racional, sendo a receptora da primeira e a doadora da segunda. Dessa forma, o conhecimento primeiro é captado pelos sentidos, projetado pela imaginação e analisado pela razão: “[...] car per raó de la ymaginacio que hom ha en les creatures, entén e aperceb la raó del home la veritat de les creatures, e aferma quals son les coses qui son o les qui no son, e sab les coses que son ne que no, e sab quines son e per que son.” – Ver LC, Dist. 11, cap. 42, 3.
- 99. “La imaginación humana es una potencia del alma racional, diversificada según los (cinco) sentidos corporales que retiene y representa las cosas sensibles ahora ausentes de los sentidos. R. Llull le da tal importancia que la sitúa como potencia aparte: más aún: es el único sentido interno; es necesaria para retener el pasado y proyectar el futuro; el alma reviste las cosas de su propia naturaleza (para entenderlas) a través de la imaginación que es lo conocible remoto interno. Es la potencia más noble y menos material en la esfera de la sensibilidad y tiene analogías con el entendimiento. Las cosas pueden ser imaginadas pues tienen imaginabilidad: la inteligencia es superior a los sentidos y a la imaginación: la imaginación se da también en los animales, pero no de los ángeles. Dotado él mismo de gran imaginación afirma que es engendrada por los padres y, si no crece en cuanto potencia, sí que aumenta en cuanto a su operación: tiene su órgano en el cerebro del medio (entre la memoria y el entendimiento) y muere con el hombre. Lo primero que el ser humano imagina es su propia semblanza y en la mujer la imaginativa tiene una vida más exuberante. La imaginativa no puede ayudar al entendimiento en lo metafísico y espiritual pues son cosas que le superan.” – AOS BRACO, Celestino. “La imaginacion en el sistema de Ramon Llull”. In: Studia Lulliana 1979, vol. 23, fasc. 2-3, p. 183.
- 100. “Portanto, se nada mais tem os atributos mencionados, exceto a imaginação, e isto é o que foi dito, a imaginação será o movimento que ocorre pela atividade da percepção sensível. Já que a visão é, por excelência, percepção sensível, também o nome ‘imaginação’ deriva da palavra ‘luz’, porque sem luz não há o ato de ver. E porque perduram e são semelhantes às percepções sensíveis, os animais fazem muitas coisas de acordo com elas: alguns, como as bestas, por não terem intelecto; outros, como os homens, por terem o intelecto algumas vezes obscurecido pela doença ou pelo sono.” – ARISTÓTELES. De Anima, op. cit., p. 113 (428b30).
- 101. RAMON LLULL. “Libre de contemplació”. In: Obres Essencials (OE). Volum II. Barcelona: Editorial Selecta, 1960, p. 187 (Volum Primer, Libre Segon, XI Distinció. Qui tracta de l’odenació divina, Cap. XLII, 6).
- 102. RAMON LLULL. Libro de Contemplación en Dios. Tomo I (eds.: Julia Butiñá, Matilde Conde, Carmen Teresa Pabón, Maria Lluisa Ordóñez y José Higuera). Madrid: Palas Atenea, 2018, p. 203.
- 103. Tradução do catalão antigo: Prof. Dr. Ricardo da Costa (UFES).
- 104. Para Llull, as cores, qualidades, formas e quantidades das coisas não poderiam ser recordadas pelo homem se não houvesse a imaginação para impulsionar tais imagens pretéritas em sua mente: “[...] car per so con vos avets dada ymaginacio als homens, per assò son los homens poderosos de remembrar e de cogitar en les coses trespassades e en les coses absents: car per la ymaginacio que han, afermen los homens les formes e les colors e les qualitats e les quantitats de les coses absents; les quals colors e qualitats e formes e quantitats no pogren esser remembrades ni cogitades ni afermades, si ymaginacio no fos en esser.” – LC, Dist. 11, cap. 42, 7.
- 105. “[...] e con dorm en gràvit, cové que somiu; car en so que será en leuger sòn, usará la sensitiva en l ome; e per l usament que la sensitiva hi fará de sa accio, covendrà que hi aja en actu la ymaginativa les coses per que ymagena.” – LC, Dist. 11, cap. 42, 29.
- 106. Para Llull todas as potências podem ser utilizadas à serviço dos propósitos divinos, ou para o pecado. A liberdade, portanto, é decisiva novamente, pois o homem tem, à disposição, diversas capacidades que podem levar à salvação ou à condenação de sua alma. Ver LC, Dist. 11, cap. 42, 25.
- 107. “[...] Jassía so que vos ajats donada gran vertut e gran forsa a la potencia ymaginativa en ymaginar totes coses, emperò no abasta a ymaginar tota la bonea ni totes les vertuts qui son en vostra beneita esencia.” – LC, Dist. 11, cap. 42, 19.
- 108. “[...] avets ennobleída la potencia racional sobre totes les autres potencies, en so que la fets esser dona sobre totes les altres potencies.” – LC, Dist. 11, cap. 43, 4.
- 109. Os cinco sentidos corporais (visão, audição, tato, olfato e paladar) dizem respeito à potência sensitiva. Já os sentidos espirituais referem-se à potência racional: “On, segons aquest ordonament, se seguex que en la potencia racional sia cogitacio e apercebiment e consciencia e subtilea e coratgía, qui son senys espirituals, axí com son en la potencia sensitiva oyment e veer e odorament e gustament e sentiment, qui son senys corporals.” – LC, Dist. 11, cap. 43, 3.
- 110. Para Llull, a ordem de poder entre as potências compreende, em ordem crescente: potência vegetativa, sensitiva, imaginativa e racional. Por isso, a potência racional é “dona” de todas as outras, pois a ação final do indivíduo depende do seu comando: “[...] Gloria e noblea e benediccio sia coneguda esser en vos; car vos, Sènyer, avets ennobleída la potencia racional sobre totes les autres potencies, en so que la fets esser dona sobre totes les altres potencies. E so per que la potencia racional es dona de totes les altres, sí es per so car es dona de la ymaginativa, qui es dona de la sensitiva, la qual sensitiva es dona de la vegetable, e la racional es dona de la mutiva, en so que la racional la mou a la accio del fet, tota ora ques vol.” – LC, Dist. 11, cap. 43, 4.
Ela também é mais nobre e virtuosa que as demais potências, pois carrega virtude e nobreza em si mesma devido à capacidade de entender, saber e compreender: “[..] per so car vos avets avertuada e ennobleída la potencia racional sobre les altres potencies; car en so que la potencia racional ha vertut e noblea de sí en més a entendre e a saber e a percebre que la potencia ymaginativa no li pot representar ni offerre, per assò se esdevé que la potencia racional val més e es pus nobla que les altres potencies.” – LC, Dist. 11, cap. 43, 10. - 111. “Mostra-se, então, que há dois fatores que fazem mover: o desejo ou o intelecto, contanto que se considere a imaginação um certo pensamento. Pois muitos seguem as suas imaginações em vez da ciência, mas nos outros animais não há nem pensamento, nem raciocínio, e sim imaginação. Logo, são estes os dois capazes de fazer mover segundo o lugar: o intelecto e o desejo, mas o intelecto que raciocina em vista de algo e que é prático, o qual difere do intelecto contemplativo quanto ao fim. E todo desejo, por sua vez, é em vista de algo; pois aquilo de que há desejo é o princípio do intelecto prático, ao passo que o último item pensado é o princípio da ação.” – ARISTÓTELES. De Anima, op. cit., p. 124 (433a9).
- 112. RAMON LLULL. “Libre de contemplació”. In: Obres Essencials (OE). Volum II. Barcelona: Editorial Selecta, 1960, p. 187 (Volum Primer, Libre Segon, XI Distinció. Qui tracta de l’odenació divina, Cap. XLIII, 8).
- 113. RAMON LLULL. Libro de Contemplación en Dios. Tomo I (eds.: Julia Butiñá, Matilde Conde, Carmen Teresa Pabón, Maria Lluisa Ordóñez y José Higuera). Madrid: Palas Atenea, 2018, p. 208.
- 114. Tradução do catalão antigo: Prof. Dr. Ricardo da Costa (UFES).
- 115. “Els pecals espirituals es consumen en la potencia racional, toi i que tenen el seu inici en les altres quatre potències, les quals també afecten. Aquest –la potència racional– seria el cinquè esglaó de l’escala de les cinc bèsties. Les reines o virtuts es mouen totes elles per escales de cinc esglaons perquè son senyores tant de la natura corporal com espiritual de l’home.” – ENRIC RUBIÓ, Josep. “Un capítol en l’ús de l’al·legoria en Ramon Llull: exegesi del capítol 354 del Llibre de contemplació”. In: Studia Lulliana 2009, vol. 47, p. 19.
- 116. “Car, Sènyer, per so car los homens han raó e enteniment, enténen les coses entellectuals, que son coses nobles e altes: les quals coses null altre animal no pot entendre ni saber, per so car priva de la potencia racional. On, per assò es l ome home e es ennobleít sobre totes creatures, car entén e sab so que altre animal no pot saber ni entendre.” – LC, Dist. 11, cap. 43, 12.
- 117. Llull entende que nenhuma capacidade humana consegue alcançar plenamente a grandeza, bondade e perfeição de Deus, mas a potência racional, ao menos, dedica-se e avança mais nesse sentido do que as demais potências: “On, con la ymaginativa fall a ymaginar tota la vostra bonea, esdevén se que la potencia racional se fa a avant, e vol anar més a avant a entendre que la ymaginativa no l pot oferre ni presentar.” – LC, Dist. 11, cap. 42, 21.
- 118. Llull é enfático ao afirmar, por diversas vezes, que a potência sensitiva, sozinha, é má, vil, mezquinha e inclina o homem ao pecado original e à condenação de sua alma. O autor desenvolve analogia entre o homem que se guia pela potência sensitiva e um príncipe malvado que se cerca de conselhos vis para realizar apenas suas vontades imediatadas: “[...] car en axí com lo malvat príncep se sotsmet a vils homens e a vils consells es despodera de sa entencio e de sa discrecio e de son voler per doctrina de son fals consell; en axí, Sènyer, es de mi, qui per gran orbetat que he en mi aúda, he tenguts e creeguts los consells de la potencia sensitiva sobre cells de la potencia racional.” – LC, Dist. 11, cap. 43, 25.
- 119. “[...] la potencia racional es ordonada a donar als homes tota benahuiransa e tot bé.” – LC, Dist. 11, cap. 43, 17.
- 120. Para Llull, a potência racional reflete sobre a imaginação e ordena a execução na forma de ato e movimento. LC, Dist. 11, cap. 44, 3.
- 121. “[...] con la potencia racional ha afigurat en la cosa si es raó que esdevenga en accio, e ella mana a la mutiva ques mova a adur en actu la cosa qui es en potencia.” – LC, Dist. 11, cap. 44, 9.
- 122. Como Deus ordenou o mundo de modo nobre e concedeu a cada criatura uma razão de existir, o homem deve assumir seu propósito de viver conforme Deus planejou, e a potência racional é a força que concretiza tal princípio por meio da execução da potência motriz. LC, Dist. 11, cap. 44, 12.