Muçulmanos e Cristãos no diálogo luliano

Em nome de Deus, o Clemente, o Misericordioso 
Louvado seja Deus, Senhor do Universo 
O Clemente, o Misericordioso, 
Soberano do Dia do Juízo. 
Só a Ti adoramos e só de Ti imploramos ajuda! 
Guia-nos à senda reta, 
À senda dos que agraciaste, não à dos abominados, nem à dos extraviados.
(Alcorão, A Abertura, 1ª Surata)

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A viagem de Ramon Llull a Túnis e sua disputatio com os líderes religiosos muçulmanos. Iluminura VIII do BreviculumBadische Landesbibliothek de Karlsruhe, St. Peter, pergaminho (detalhe). Raimundus Lullus Ikonographie.

Primavera de 1307. Ramon Llull é um homem velho, muito velho, que viaja incessantemente. Busca reis, papas e príncipes para sua causa: quer que Deus seja amado, conhecido e servido por todo o mundo:

— Ai, senhor Deus! Quando virá o tempo que Vós sereis amado e conhecido por todo o mundo? E quando tereis procuradores que façam toda a força em fazer amar-Vos e conhecer-Vos por aqueles que não Vos têm amor nem de Vós têm conhecimento? (Félix ou o Livro das MaravilhasInOS, vol. II, Livro VIII - Do Homem, 1989: 171)

Ramon quer converter todos os infiéis, judeus e especialmente muçulmanos, para o cristianismo, para ele a verdadeira fé. Para isso, estivera viajando incessantemente nos últimos seis anos: em 1301 fora hóspede do mestre dos templários, Jacques de Molay, em Chipre; depois viajara para Gênova, Oriente Próximo — talvez Jerusalém (GAYÀ ESTELRICH) —, Maiorca, Montpellier, e por fim Paris, onde leu sua Arte na universidade, sistema que acreditava ter sido dado a ele por Deus para combater os erros dos infiéis (Vida Coetânia 14In: OS, vol. I, 1989: 23).

Além disso, enquanto viajava nesses anos, escrevia febrilmente, mais de trinta obras, uma atividade frenética para um homem de setenta e três anos. Entre 1301 e 1307 Llull escreveu as seguintes obras:

1. Rhetorica nova
2. Liber de natura
3. Libre què deu hom creure de Déu (Liber quid debet homo de Deo credere), 
4. Mil Proverbis
5. Lògica nova
6. Disputatio fidei et intellectus
7. Liber de lumine
8. Liber de regionibus sanitatis et infirmitatis
9. Ars de jure
10. Liber de intellectu
11. Liber de voluntate
12. Liber de memoria
13. Liber ad probandum aliquos articulos fidei catholicae per syllogisticas rationes (=Liber de syllogismis), 
14. Liber de significatione
15. Liber de consilio
16. De investigatione actaum divinarum rationum
17. Liber de praedestinatione et libero arbitrio
18. Liber de praedicatione (=Ars magna praedicationis), 
19. Liber de ascensu et descensu intellectus
20. Liber de demonstratione per aequiparantiam
21. Liber de fine
22. Liber pracdicationis contra judaeos (=Liber de erroribus judaeorum, ou Liber de Trinitate et Incarnatione), 
23. Liber de Trinitate et Incarnatione
24. Lectura Artis quae intitulatur Brevis practice Tabulae generalis
25. Ars brevis (Art breu), 
26. Ars brevis juris civilis (= Ars brevis quae est de inventione mediorum juris civilis), 
27. Liber de venatione substantiae, accidentis et compositi
28. Ars generalis ultima
29. Disputatio Raymundi christiani et Hamar saraceni (= De fide catholica contra sarracenos), 
30. Liber de centum signis Dei
31. Liber clericorum (Libre de clerecia) (BONNER, 1989, vol II: 564-569).

No entanto, nenhum príncipe, nem o santo papa, nem seus cardeais o escutavam: Llull suplicara inutilmente a Clemente V que fossem construídos mosteiros onde se ensinassem as línguas dos infiéis para que pregadores, à semelhança dos apóstolos, levassem a palavra do Evangelho a todos os infiéis, a todas as criaturas, como ordenara São Marcos (Vida Coetânia 35; citação de Mc 16, 15. InOS, vol. I, 1989, p. 41).

Tudo em vão. Para Ramon, o mundo inteiro se esqueceu do testemunho da verdade da fé cristã: os prelados riam de suas propostas missionárias, o chamavam de louco, de fantástico, de superfantástico! (Disputatio Petri clerici et Raymundi phantastici (= Phantasticus), escrito em outubro de 1311, no caminho de Paris a Vienne. Barcelona, 1985).

Por esse motivo, ele constantemente chorava, vertendo deprimido muitas lágrimas pela falta de fervor no mundo, às vezes só, às vezes na companhia de eremitas, de sábios ou mesmo santos homens religiosos:

Félix teve muito prazer com o que os homens lhe disseram, e junto com eles chorou longamente, dizendo estas palavras: “— Ah, Senhor Deus Jesus Cristo! Onde estão o santo fervor e a devoção que existia nos apóstolos, os quais por amá-Lo e conhecê-Lo não duvidavam de manter trabalhos e nem a morte? Belo Senhor Deus, que seja de Seu agrado que em breve venha um tempo no qual se complete a santa vida que está significada na figura da vida desses homens.” (Félix ou O Livro das MaravilhasInOS, vol. II, 1989, Livro VII - Das Bestas, 126)

Assim, decidido a dar sua própria vida como exemplo para esse projeto missional — e porque desde sua conversão há quase quarenta anos ansiava também pelo martírio (Vida Coetânea 5In: OS, vol. I, 1989: 14) — o “homem louco” voltou para sua terra natal, Maiorca, e dali embarcou para pregar o cristianismo em Bugia, no norte da África, terra dos sarracenos, terra do sultão Abu-l-Baqa Halid (1302-1311) e de sua dinastia hafsida — a dinastia hafsida (ou hafçida) durou de 1228 a 1574 e foi construída a partir das ruínas do Império Almôada (1130-1269) do Magreb. Tendo Túnis como capital, a dinastia hafsida foi um dos quatro “estados” da África do Norte (os outros foram os merínidas - ou marínidas - no Marrocos [1196-1465], o reino berbere dos Abd al-Wâdidas em Tlemcen e o principado Násrida [1230-1492] no sul da Península Ibérica) (MIQUEL, 1971: 242-244).

Embora pregar o cristianismo em terras muçulmanas fosse uma empreitada muito perigosa, sua opção não era de todo insensata: na época, Bugia (atualmente Bejaia, na Argélia), cidade localizada entre Argel e Constantina, na costa africana, era praticamente um feudo comercial de Maiorca. Nos anos 1285-1309, um ramo dos hafsidas estabeleceu ali e em Constantinopla um emirado independente (BONNER I BADIA, 1991: 43).

Além disso, era a segunda vez que Llull viajava para o norte da África. Quatorze anos antes, em 1293, com esse mesmo objetivo, Lull fora a Túnis, capital do reino hafsida, para pregar. Como fora essa sua primeira viagem?

I. A Primeira Viagem de Ramon Llull ao norte da África (1293)

A escolha de Túnis era bastante adequada e lógica. A cidade não era um espaço estranho para Llull. Ali circulavam mercadores da Catalunha, Maiorca, Pisa e Gênova; os maiorquinos tinha em Túnis seu próprio funduq – um edifício originário do Magreb, construído por grandes homens da cidade em torno de pátios, com um depósito no térreo e hospedarias no segundo andar para mercadores visitantes (HOURANI, 1994: 139); os de Maiorca tinham ainda uma capela cristã onde residia um cônsul que resolvia problemas legais e comerciais (BONNER, 1989, vol. I: 34); a milícia do sultão Halid era também composta de mercenários catalães (BONNER I BADIA, 1991: 33).

Por sua vez, franciscanos e dominicanos já haviam realizado missões a Túnis pelo menos desde 1230 e criaram um studium arabicum na cidade — desaparecido quando Ramon fez sua primeira viagem (GARCIAS PALOU, 1981: 181-182). Todas essas circunstâncias indicam que, em sua primeira viagem à África, Llull não estava sozinho.

Em Túnis, Llull parece ter seguido a estratégia tradicional da atividade missionária de então: tentar primeiramente a conversão das elites políticas e religiosas muçulmanas. Uma das formas dessa estratégia — e que exigia bastante coragem e disposição de espírito — era o diálogo com os líderes religiosos. Era sobretudo um sinal de respeito. A grande maioria da população passava ao largo de tais contatos, até para que fossem preservadas as bases de um comércio que se mostrava estável e rendoso para ambas as partes (GAYÀ ESTELRICH).

De fato, segundo a Vida Coetânia, Llull entrou em contato com os líderes religiosos de Túnis e conseguiu reunir um pequeno número destes. Após alguns dias de diálogo, Ramon apresentou-lhes as bases de seu método apologético, iniciando seu discurso com as dignidades de Deus — primeiro ponto de concordância com a doutrina muçulmana — para então tentar provar a existência da Santíssima Trindade e a razão necessária da Paixão de Cristo, dogmas cristãos recusados pelos muçulmanos:

...pouco depois chegaram ao porto de Túnis. Após colocarem os pés na terra, entraram na cidade. Convocando paulatinamente dia-a-dia os mais versados na Lei de Maomé, Ramon disse-lhes, entre outras coisas, que conhecia bem os fundamentos de todos os artigos da Lei dos cristãos, e que viera a fim de, após ouvir os fundamentos da Lei de Maomé e sustentar uma disputa com eles sobre essas coisas, se converteria à sua seita caso encontrasse argumentos mais válidos que os dos cristãos. 

E como de um dia para o outro vinha-lhe um número maior de gentes mais versadas na Lei de Maomé expondo-lhe os argumentos de sua Lei a fim de convertê-lo para a sua seita, ele, satisfazendo facilmente seus argumentos, disse:

— Convém que cada sábio tenha aquela fé que atribua em maior igualdade e concordância ao Deus eterno, na qual crêem todos os sábios do mundo, a maior bondade, sabedoria, virtude, verdade, glória, perfeição e outras similares. 

Também é mais louvável aquela fé divina que coloca a maior concordância e conveniência entre Deus, que é a suma causa, e seu efeito. Mas eu, conforme as coisas que me propuseram, vejo que vós sarracenos, que estão sob a Lei de Maomé, não entendem a existência de atos próprios, intrínsecos e eternos às dignidades divinas citadas acima e outras similares, sem os quais essas mesmas dignidades seriam eternamente ociosas. Eu chamo esses atos de bondade de bonificativo, bonificável e bonificar, e os atos de grandeza, magnificativo, magnificável e magnificar, e o mesmo de todas as outras dignidades divinas ditas acima e similares. Mas quando vós, segundo vejo, atribuem e nomeiam os ditos atos à duas dignidades ou razões divinas chamadas de sabedoria e vontade, fica claro que vós, em todas as outras razões divinas — bondade, grandeza, etc. —, deixam existir uma ociosidade, e, por consequência, colocam uma desigualdade e uma discórdia entre elas, coisa que não é lícito. 

Através desses atos substanciais, intrínsecos e eternos das dignidades, e razões e atributos ditos acima, unidos em igualdade e concordância, os cristãos provam de uma maneira evidente a existência de uma essência e natureza divina una que é uma trindade de pessoas, quer dizer, o Pai, o Filho e o Espírito Santo. 

A qual coisa eu, por meio de uma Arte revelada há pouco, segundo creio, por inspiração divina a um certo eremita cristão, vos posso demonstrar estas coisas com claras razões, se Deus deseja e se vós desejarem disputar comigo, durante alguns dias com espírito tranqüilo. 

Também ficará claro com essa mesma Arte de maneira muito racional a vós, se vos apraz, como a primeira e suma causa convém e concorda mais racionalmente com o seu efeito através da união e participação do Criador e da criatura em uma só pessoa na encarnação de Cristo, o Filho de Deus. 

Também verão como isso aparece no mais elevado e nobre grau na Paixão do mesmo Cristo, Filho de Deus, que suportou a parte da humanidade que havia assumido por Sua própria vontade e digna misericórdia a fim de redimir a nós, pecadores, do pecado da corrupção de nosso primeiro pai, e reconduzir-nos ao estado de glória e fruição divina, pela qual causa e finalidade Deus fez uma bênção a nós, homens.” (Vida Coetânia 26, 27InOS, vol. I, 1989: 34-36)

II. As dignidades de Deus e o sufismo

Ramon iniciara seu discurso com as dignidades de Deus: “São elas: Bondade, Grandeza, Poder, Sabedoria, Amor, Justiça e Perfeição” (O Livro dos AnjosIn: ORL, vol. XXI, 1950: 308), que os místicos muçulmanos chamavam de hadras (HILLGARTH, 1976: 18-19).

Em determinadas famílias espirituais islâmicas — místicos que seguiam um caminho comum na busca da união com Deus — havia um ritual que era o ato central da tariqa (a experiência de conhecimento direto com Ele): o dhikr, a repetição do nome de Alá (ELIADE e COULIANO, 1995: 207). O dhikr poderia ser acompanhado por alguma espécie de disciplina corporal, um controle respiratório ou uma concentração em determinada parte do corpo. Poderia haver também o acompanhamento de música, dança e poesia — a recitação poética era uma forma de evocar os estados de graça que poderiam apoiar o caminho para o conhecimento de Deus, o Amante e o Amado se refletindo um ao outro, como um espelho.

Llull conhecia bem esta elevada forma de expressão religiosa. Em sua época, o sufismo espanhol estava bastante entrelaçado com o estudo da filosofia e dependia em boa medida do desenvolvimento do misticismo no norte da África (WATT, 1995: 157). Além disso, o Livro do Amigo e do Amado — sua expressão literária mais perfeita de amor a Deus — fora inspirado na tradição sufi:

Enquanto Blanquerna estava nesta consideração, lembrou-se de que uma vez, sendo ele Papa, um sarraceno contou-lhe que entre eles havia algumas pessoas religiosas, as quais são muito respeitadas e estimadas, e que se chamam “sufis”, e que têm o costume de dizer palavras de amor com exemplos breves que inspiram aos homens uma grande devoção. São frases que precisam de uma curta explicação mediante a qual o entendimento se levanta mais alto e, por causa dessa elevação, a vontade também sobe e multiplica assim sua devoção. Depois de ter considerado tudo isso, resolveu Blanquerna fazer o livro segundo esse método... (Livro do Amigo e do Amado, 1989: 58)

Por outro lado, uma passagem do Alcorão muito recomendada pelos sufis indicava esta forma mística de meditação:

Os incrédulos dizem: Por que não lhes foi revelado um sinal de seu Senhor? Responde-lhes: Deus deixa que se desvie a quem Lhe apraz e encaminha até Ele os contritos, que são fiéis e cujos corações sossegam com a recordação de Deus. Não é, acaso, certo, que à recordação de Deus sossegam os corações? Os fiéis que praticam o bem terão a bem-aventurança e terão feliz retorno. (Alcorão, A Abertura, O Trovão, 13ª Surata, 27-29)

Esses sufis levavam um modo de vida que buscava a união com Deus por meio do amor, do conhecimento baseado na experiência e ascese que levaria a uma união estática com o Criador bem-amado. Assim, esta invocação tinha o objetivo de desviar a alma das distrações mundanas para libertá-la até o vôo da união com Deus. Uma das formas do dhikr era um ritual coletivo chamado justamente de hadra: os participantes repetiam constantemente o nome de Alá, cada vez mais rapidamente até se chegar a um transe e perda da consciência do mundo sensível (HOURANI, 1994: 164-166).

Dessa forma, ao iniciar sua disputatio em Túnis com o tema das dignidades divinas, Llull buscava, através da aproximação desse tema com o misticismo sufi, o primeiro ponto concordante entre as duas religiões para, a seguir, tratar de suas diferenças. Era uma estratégia de diálogo que deveria parecer muito simpática aos ouvintes muçulmanos, já que no século XIV o sufismo já havia se tornado um movimento social com ampla aceitação no mundo muçulmano (LEWIS, 1996: 215).

E mais: ao solicitar que a disputa fosse feita com os “espíritos tranqüilos”, Ramon desejava, citando as dignidades divinas, o “sossego dos corações”, conforme ordena o Alcorão, uma paz coletiva, para então expor suas razões necessárias e provar a existência da Santíssima Trindade. Além disso, mostrava compreender bem a beleza da linguagem litúrgica do Islã, numa atitude bastante rara para a época, já que o comum nesse tipo de debate religioso era iniciá-lo destacando os erros da doutrina oposta (HILLGARTH, 1976: 23-25) — para se ter uma boa idéia do ambiente histórico que envolvia esses debates públicos, basta estudar o famoso Debate de Barcelona (1263), coincidentemente o ano da conversão de Ramon Llull (MACCOBY, 1996).

Por outro lado, parece claro que a iluminura do Breviculum não parece sugerir esta momento de quietude (figura 1): apesar da postura corporal de Llull indicar tranqüilidade — suas mãos abertas sugerem calma e paciência — dois dos cinco líderes muçulmanos retratados gesticulam muito e denotam inquietação e nervosismo. Isso se explica em parte pela narrativa da Vida Coetânia: após expor suas razões e desejar a disputatio, um “homem de não pouca fama entre os sarracenos” teria percebido as intenções de Ramon e solicitou então ao sultão hafsida Abu-Hafs (1284-1295) sua decapitação. Llull foi preso, mas o conselho do sultão, influenciado pelas palavras de “um espírito prudente e científico”, decidiu expulsar Ramon do reino de Túnis, alertando-o que, se retornasse, seria apedrejado até a morte (Vida Coetânia 28InOS, vol. I, 1989: 37).

Num estado de profunda dor, pois já havia preparado a conversão de “alguns homens de reputação”, Llull abandonou o navio que o levaria de volta para a cristandade. Decidira terminar sua obra de conversão, apesar do perigo de morte. No entanto, soube que um cristão que lhe era semelhante “em aspecto e vestimenta” foi capturado na cidade e quase apedrejado. Assim, ele permaneceu durante três semanas nessa hesitação, até que decidiu partir de Túnis para Nápoles, para ler sua Arte. Era o ano de 1293. Antes de presenciar a eleição do papa Celestino V, Llull recebeu permissão para pregar na colônia muçulmana de Lucera (próxima de Foggia), e ainda visitou prisioneiros muçulmanos no castelo dell’Ovo em Nápoles (BONNER, 1989, vol. I: 37-38).

É importante destacar que os especialistas delimitam o ano de 1293 — este ano do primeiro contato real de Ramon Llull com o mundo islâmico — como um “divisor de águas” em seu tratamento da questão do diálogo inter-religioso: até 1293 sua vida seria marcada pelo diálogo; de 1293 até sua morte, pela disputa (LLINÀRES, 1968: 192).

Assim, as duas viagens de Llull ao norte da África, de certa forma, marcam enfaticamente os dois distintos momentos de sua trajetória apologética, além de servirem como fatos concretos para a análise crítica de seu diálogo com o Islamismo. Assim, se tomarmos como base o ano de sua conversão, podemos estabelecer as seguintes datas que delimitam, grosso modo, o diálogo inter-religioso luliano:

Fase A) os primeiros trinta anos, 1263-1293 = período dos escritos de tolerância e do diálogo respeitoso,

Fase B) 1293-1315 = período das disputas, da defesa da cruzada para a imposição do diálogo e o desejo do martírio.

III. A segunda viagem à África (1307): o desejo do martírio

Na primavera de 1307, após a decepção de ter seus pedidos de construção de escolas de línguas negado pelo papa Clemente V em Lyon, Ramon Llull embarcou novamente para o norte da África, dessa vez para Bugia. Agora, parecia que abandonara sua estratégia de diálogo. Um desejo manifestou-se claramente: receber o martírio imediato (HILLGARTH, 1976: 27). Essa insistência pelo martírio se explica em parte por sua visão de reforma social baseada no ascetismo e no ideal apostólico. Uma passagem do Livro das Maravilhas mostra bem esse ideal:

...a maior bem-aventurança que Deus pode dar ao homem neste mundo é lhe dar a graça de ser pobre, atribulado, menosprezado, atormentado e morto para louvar, amar, conhecer, honrar e servir a Deus e levar ao caminho da salvação aqueles que por ignorância e pelo caminho do pecado vão para a danação perdurável. (Félix ou O Livro das Maravilhasop. cit., Livro VIII - Do Homem, p. 251)

Esse retorno de Llull às origens do cristianismo primitivo tinha o martírio como uma base autêntica — na perspectiva cristã, morrer como ser humano seguindo Cristo e Sua mensagem é ter a certeza de acesso à glória do Paraíso e à vida eterna (VAUCHEZ, 1989: 212). Por outro lado, talvez Llull também quisesse conseguir adesões e converter as pessoas para o cristianismo através do exemplo do martírio, uma técnica franciscana (BONNER I BADIA, 1991: 43; LE GOFF, 2000).

Ao entrar na cidade, Llull imediatamente começou a discursar na “língua sarracena” e ofender a Lei de Maomé, chamando-a de falsa e errônea, num gesto que contrariava totalmente tanto a política costumeira de primeiro procurar as autoridades religiosas e a partir delas converter o restante da população quanto sua própria tática de 1293 em Túnis. Nas palavras da Vida Coetânia, a “multidão de pagãos” que Ramon conseguira reunir atacou-o “com mãos criminosas”, desejando apedrejá-lo até a morte. Sua salvação foi o cádi da cidade — cargo ao mesmo tempo de juiz, notário e representante distrital, o na’ib do sultão (SOUZA, 1986: 196-197) — a Vida Coetânia o chama curiosamente de “bispo” (Vida Coetânia 36InOS, vol. I, 1989: 42). Em sua presença, Ramon iniciou novamente sua argumentação a respeito da perfeição divina:

— Como assim tu tens ficado em uma insensatez tão grossa para ter a presunção de querer impugnar a verdadeira Lei de Maomé? Não sabes que qualquer um que presuma tal coisa se expõe à pena capital?

Ramon respondeu: 
— O verdadeiro servo de Cristo, conhecedor da fé católica, não deveria temer os perigos da morte corporal quando pode conseguir a graça da vida espiritual para as almas dos infiéis. 

O bispo lhe contestou: 
— Se crês que a Lei de Cristo é verdadeira e consideras a de Maomé falsa, cite uma razão necessária que o prove”, pois aquele bispo era conhecido como filósofo. 

E Ramon lhe respondeu: 
— Convenhamos alguma coisa em comum. Então eu te darei uma razão necessária.

Como isso causou prazer ao bispo, Ramon o interrogou dizendo: 
— Deus não é perfeitamente bom?

O bispo respondeu que sim. Então Ramon, desejando provar a Trindade, começou a argumentar assim: 

— Todo ente perfeitamente bom é tão perfeito em si que não necessita fazer nenhum bem fora de si nem mendigar. Tu dizes que Deus é perfeitamente bom desde a eternidade e por toda a eternidade. Assim, Ele não necessita mendigar nem fazer o bem fora de Si, caso contrário, não seria perfeitamente bem em toda a Sua simplicidade. E como tu negas a beatíssima Trindade, supões que Ela não existe. Neste caso, Deus não teria estado perfeitamente bom desde a eternidade até que tivesse produzido o bem do mundo no tempo. Contudo, tu crês na criação do mundo e, portanto, crês que Deus foi mais perfeito em bondade quando criou o mundo no tempo do que antes, pois a bondade é mais bondosa quando se difunde do que quando existe em ociosidade. Esse é o teu argumento. De minha parte, contudo, digo que a bondade se difunde desde a eternidade e por toda a eternidade. Isso é próprio do bem, que se difunde, já que Deus Pai, de Sua bondade, gera o Filho, que é bom, e de ambos procede o Espírito Santo, que também é bom.

O bispo, estupefato diante este raciocínio, não fez qualquer objeção como réplica. Contudo, de repente ordenou que ele fosse encarcerado em uma prisão. Do lado de fora havia uma grande multidão de sarracenos esperando para matá-lo. Não obstante, o bispo fez publicar um edito ordenando que ninguém conspirasse na morte daquele homem, porque ele mesmo tinha a intenção de expô-lo a uma morte digna. Então Ramon, ao sair da casa do bispo e andar até a prisão, foi espancado, ora com golpes de bastão, ora por mãos, e finalmente foi asperamente arrastado pela abundante barba que tinha. Então foi trancado na latrina da prisão dos ladrões, onde levou uma vida penosa durante um certo tempo. Depois disso, o colocaram em uma cela da mesma prisão. (Vida Coetânia 36-38InOS, vol. I, 1989: 42-44).

Figura 2

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Segunda viagem de Ramon Llull ao norte da África, dessa vez para Bugia. Iluminura X do BreviculumBadische Landesbibliothek de Karlsruhe, St. Peter, pergaminho (detalhe). Raimundus Lullus Ikonographie.

No dia seguinte a esta verdadeira epopéia, foi feita uma reunião entre os legistas da Lei de Maomé. Neste período faziam parte desse conselho (chamado de sûra) um escriba (kâtib), uma pessoa encarregada de esmiuçar o inquérito sobre os costumes e a moral das testemunhas (muzakki) e quando fosse preciso, poderia ser um intérprete (mutargin) (SOUZA, 1986: 195).

sûra decidiu que Ramon deveria ser interrogado: se vissem que se tratava de um homem “pleno de conhecimentos”, seria morto sem perdão; se fosse um “homem simples e tolo”, deixariam-no ir embora com sua tolice (Vida Coetânia 39InOS, vol. I, 1989: 44).

Um dos legistas muçulmanos conhecia Ramon. Tinha escutado suas prédicas e viajara com ele de Gênova para Túnis: mesmo em alto-mar Llull não desperdiçava a chance de pregar e dialogar com os muçulmanos. O legista aconselhou que a Sûra não o trouxesse ao palácio para ser interrogado pois ele tinha “tais razões contra a nossa lei que será difícil, senão impossível, responder-lhe.”

Os genoveses e catalães que viviam em Bugia se reuniram e conseguiram que ele fosse colocado em um lugar mais decente. A Sûra decidiu então transferi-lo para uma “prisão mais suave”. Ramon ficou encarcerado em Bugia durante seis meses.

A iluminura do Breviculum (figura 2) mostra muito fielmente o texto da Vida Coetânia: a fúria da multidão, as pedras atiradas contra Ramon, ele sendo puxado por sua longa barba, seu diálogo com a autoridade muçulmana, o cádi e depois sendo conduzido à prisão (à direita). Durante os seis meses de sua prisão em Bugia,

...os clérigos ou emissários do bispo freqüentemente o visitavam, e lhe prometiam dons, honras, casa e dinheiros em abundância a fim de convertê-lo à Lei de Maomé. Contudo, fundamentado sobre uma pedra dura, o homem de Deus, Ramon, lhes dizia: 

— Se desejam crer no Senhor Jesus Cristo e tentarem deixar esta lei errônea eu vos ofereço as maiores riquezas e vos prometo a vida eterna.

Como ambos os lados insistiram muito em tais coisas, concordaram em fazer um livro, onde cada parte confirmaria sua lei com os argumentos mais eficazes que pudesse encontrar. E quando Ramon já havia trabalhando bastante em seu livro, sucedeu que da parte do rei de Bugia, que naquele tempo residia na cidade de Constantina, chegaram cartas ordenando que Ramon fosse expulso imediatamente de Bugia. Portanto, quando Ramon embarcou em uma nau no porto, foi ordenado ao patrão da dita nau que não o deixasse retornar mais àquela terra.” (Vida Coetânia 40, 41InOS, vol. I, 1989: 45)

Este trecho é baseado em duas passagens bíblicas: “Caiu a chuva, vieram as enxurradas, sopraram os ventos e deram contra aquela casa, mas ela não caiu, porque estava alicerçada na rocha.” (Mt. 7, 25); “Assemelha-se a um homem que, ao construir uma casa, cavou, aprofundou e lançou o alicerce sobre a rocha.” (Lc. 6, 48). De qualquer modo, em 1307, terminou a segunda aventura de Ramon Llull em terras muçulmanas. Sua terceira viagem para a África, para Túnis em 1316 (GAYÀ ESTELRICH) seria a última de sua longa vida.

IV. As bases do diálogo inter-religioso luliano

Nunca o diálogo apologético luliano foi tão colocado à prova quanto nas duas viagens de Llull à África. Como disse anteriormente, são os dois melhores fatos comprovados que permitem uma análise da eficácia de conversão do método luliano — motivo central de toda a sua produção literária. Assim, gostaria de abordar brevemente alguns aspectos filosóficos de seus discursos nessas duas viagens, para, a seguir, confrontar suas falas com os líderes islâmicos com suas propostas de conversão dos muçulmanos nos textos direcionados exclusivamente aos leitores cristãos, especialmente o Livro das Maravilhas.

Embora em sua segunda viagem (a Bugia) Llull tenha partido conscientemente para o martírio, em ambos os diálogos — tanto com os líderes religiosos de Túnis quanto com o cádi de Bugia — ele iniciou sua locução da mesma forma. Em primeiro lugar, estabelecendo o diálogo buscando uma base de argumentação comum a ambas as religiões, portanto, fugindo de qualquer tipo de discussão baseada em uma autoridade religiosa ou filosófica. Um bom exemplo desse pressuposto da racionalidade é o Livro do Gentio e dos Três Sábios: logo no Prólogo, quando o judeu, o cristão e o muçulmano estão refletindo a respeito das palavras da senhora Inteligência, um deles diz:

Como isso é assim, por acaso vos pareceria bom que nos sentássemos sob estas árvores, ao lado desta bela fonte, e disputássemos isso que cremos, de acordo com o significado dessas flores e as condições destas árvores? E o que não pudéssemos concordar através das autoridades, não poderíamos tentar provar por razões demonstrativas e necessárias? (Libre del Gentil e dels Tres SavisInOS, vol. I, 1989: 113)

Em uma passagem do Livro das Maravilhas, Llull metaforicamente lamenta o fato de os pregadores de se tempo não utilizarem a razão para converter os muçulmanos. Coloca então o seguinte diálogo na boca de Félix, o protagonista da novela:

— Senhor, em uma terra aconteceu que um cristão religioso disputou a fé tão longamente com um rei sarraceno que lhe deu a entender que a lei dos sarracenos era falsa. O rei entendeu, pelas razões necessárias, o que o religioso lhe disse: que ele estava em estado de danação. Aquele rei pediu ao religioso que lhe provasse ser verdadeira a fé dos cristãos por razões necessárias que ele então se converteria ao cristianismo, seria batizado e sua terra se renderia ao mandamento da Santa Igreja. 

Aquele religioso respondeu que não poderia demonstrar a verdade de sua fé por razões necessárias. Muito desagradou ao sarraceno o que disse o irmão religioso, e disse que havia feito mal quando abandonou a fé dos sarracenos, na qual acreditava, pois o irmão não podia lhe dar as razões necessárias a respeito da fé romana. E disse ainda que era coisa grave deixar sua fé por outra e deixar sua má fé pela verdade, onde pudesse existir necessidade da razão. Aquela coisa era muito conveniente, isto é, deixar a crença para entender. Aquele rei disse ao irmão que se não lhe fizesse entender a fé dos cristãos que ele o faria morrer uma má morte. Aquele irmão fugiu e o rei morreu em erro, seguindo-se muito dano a ele e a toda sua terra. (Félix ou O Livro das Maravilhasop. cit., Livro I - De Deus: 47)

Llull acreditava que a base de seu sistema de pensamento, sua Arte, oferecia essa capacidade de argumentação com os muçulmanos (e judeus) baseada exclusivamente na razão: eram suas dignidades divinas. Deus, por ser perfeito, possuía atributos perfeitos. Está claro então porque ele iniciou seus dois diálogos na África com o atributo da bondade divina. Iniciemos então com ela.

Deus é bom em grau superlativo, é perfeitamente bom. Ramon estava consciente de que essa idéia — neoplatônica — era bem conhecida de muçulmanos e judeus (bonum est diffusivum sui) (BONNER I BADIA, 1994: 64) — Bonum est diffusivum sui é uma frase que tem sua origem e se fez axioma no Neoplatonismo e através do Pseudo-Dionísio, o Areopagita e Santo Agostinho tornou-se um lugar comum especialmente na chamada Alta Escolástica (séculos XI e XII). É possível que Proclo (410-485) tenha sido um dos primeiros a formulá-la. No entanto, mais importante que sua origem é sua frutífera história que veio determinar o conceito filosófico-ontológico de bonum, considerado algo que é, que tem que existir, intrínseca e necessariamente ativo e operante. Essa condição determinou necessariamente as reflexões sobre o conceito no campo da Ética e a definição de Deus como SUMMUM BONUM, fonte e origem de todo o bem passado, presente e futuro, natural e sobrenatural (Santo Anselmo, Felipe, o Chanceler, Abelardo, etc.)” (DOMÍNGUEZ REBOIRAS, 2001).

Segundo Ramon Llull, as outras dignidades de Deus seriam:

1. Bondade (B) 
2. Grandeza (C) 
3. Eternidade (D) 
4. Poder (E) 
5. Sabedoria (F) 
6. Vontade (G) 
7. Virtude (H) 
8. Verdade (I) 
9. Glória (K) (Llibre què deu hom creure de DéuInNEORL, vol. III, 1996: 89-93.

Na etapa ternária (1290-1308) do sistema luliano são 9 dignidades, tal qual encontram-se nesta obra; na etapa quaternária (c.1274-1289) seriam 16:

1. Bondade (B) 
2. Grandeza (C) 
3. Eternidade (D) 
4. Poder (E) 
5. Sabedoria (F) 
6. Vontade (G) 
7. Virtude (H) 
8. Verdade (I) 
9. Glória (K) 
10. Perfeição (L) 
11. Justiça (M) 
12. Largueza (N) 
13. Simplicidade (O) 
14. Nobreza (P) 
15. Misericórdia (Q) 
16. Senhorio (R) (Art DemonstrativaInOS, vol. I: 273-521)

A partir das dignidades divinas, Llull fazia três afirmações que considerava possíveis de serem aceitas por judeus e muçulmanos:

1) As dignidades eram reais, concordantes, sem nenhuma contrariedade e se mesclavam (“convertiam”) mutuamente em uma simples essência divina, isto é, Deus.

Por exemplo: a bondade de Deus é grande, a grandeza de Deus é boa, a bondade de Deus é eterna, a eternidade de Deus é boa, etc. Isso dava ensejo à criação de um sistema gráfico explicativo, onde esses conceitos se entrecruzavam, figuras de sua Arte que estavam relacionadas a um processo de ascensão das coisas sensíveis à contemplação de Deus (GAYÀ ESTELRICH).

Essa primeira afirmação está intrínseca na passagem de seu diálogo em Túnis (“Convém que cada sábio tenha aquela fé que atribua em maior igualdade e concordância ao Deus eterno, na qual crêem todos os sábios do mundo, a maior bondade, sabedoria...” (Vida Coetânia 26, 27InOS, vol. I, 1989: 34-36);

2) As dignidades divinas são ativas, têm atos próprios, eternos e intrínsecos (ad intra); são os chamados correlativos lulianos (também presente em seu diálogo de Túnis: “Eu chamo esses atos de bondade de bonificativo, bonificável e bonificar, e os atos de grandeza, magnificativo, magnificável e magnificar, e o mesmo de todas as outras dignidades divinas ditas acima e similares.” (Vida Coetânia 26, 27InOS, vol. I, 1989: 34-36) — Anthony Bonner afirma que podemos compreender melhor os correlativos se os associarmos ao trio potência-objeto-ato ou ao trio ativo-passivo-ação (BONNER, 1989, vol. I: 35)

3) Deus, a suma causa, possui a maior concordância e conveniência com seu efeito, isto é, a criação. É um Deus eternamente ativo e que proporciona uma ação eterna, difundindo Sua bondade por todos os seres criados (a chamada ação ad extra).

Por esse motivo, Ramon percebia o mundo como uma grande teofania, um imenso espelho onde poderíamos encontrar a Santíssima Trindade refletida em todas as coisas, desde as pedras, passando pelas plantas, até o homem, e cada coisa criada possuiria também essa mesma atividade ad intra de Deus de acordo com a sua capacidade própria de recepção dessa bondade. Numa passagem doLivro das Maravilhas, Llull expõe muito bem essa idéia:

Após estas palavras, o ermitão fez em sua face o sinal da cruz, na esperança da ajuda de Deus, e disse a Félix estas palavras sobre a Trindade: 

— É coisa manifesta Nosso Senhor Deus ter criado tudo quanto existe para dar amor e conhecimento de Si às gentes. Por isso — porque Ele é um em essência e em Trindade de pessoas — Deus deseja que o mundo seja um em essência e que exista em três coisas diversas, as quais são sensualidade, intelectualidade e animalidade. Sensualidade são as coisas sensuais, que são corporais e sensíveis; pela intelectualidade entendemos o que é a alma do homem ou o que são os anjos e pela animalidade entendemos o homem e que ele é ajustado de coisas corporais e espirituais. 

Nesta três coisas está todo o mundo, o qual é um e existe nessas três coisas acima ditas, sem as quais o mundo não estaria na unidade na qual existe, nem as três coisas seriam o que são, sem que cada uma fosse em si mesma uma coisa em três coisas. Isto é, todo corpo é um e existe em três coisas, as quais são matéria, forma e conjunção, que é o resultado da matéria e da forma em ser um corpo ajustado de matéria e forma. A alma é uma em essência e existe em três coisas diversas que formam o ser da alma, sendo essas três coisas a memória, o entendimento e a vontade, sem as quais a alma não poderia ser uma substância. O animal é feito de três coisas, isto é, corpo, espírito e a conjunção, pela qual o corpo e o espírito se ajustam e formam um animal, isto é, homem, leão, ave, e assim todas as outras coisas que são ajustadas de corpo e alma. 

E num desses três nomes está o mundo e tudo quanto foi criado substancialmente, significando que a substância de Deus é uma e existe em três pessoas distintas, isto é, Pai, Filho e Espírito Santo. Porque se Deus não fosse uma unidade de substância e uma trindade de pessoas, não teria criado tudo quanto existe à Sua semelhança, não poderia ser conhecido e amado pelos homens, e os homens estariam em queda se não pudessem conhecê-Lo, porque estariam em falta por não conhecer Sua semelhança e a semelhança do mundo, e o que o mundo contém. (Félix ou O Livro das Maravilhasop. cit., Livro I - De Deus: 34)

Assim, Llull considerava que essas três premissas poderiam ser racionalmente aceitas pelos “infiéis”, e, em nosso caso específico aqui tratado, pelos muçulmanos. O maiorquino considerava-as verdades absolutas, pois via toda a realidade através das dignidades divinas, passando por seus correlativos.

Um bom exemplo disso são suas definições a respeito das operações racionais da alma. Para Llull, a alma possui todos os princípios naturais à semelhança do Criador (bondade, grandeza, duração, poder, sabedoria e vontade; virtude, verdade, deleitação, diferença, concordância, princípio, meio e fim; maioridade, igualdade e menoridade), os correlativos (“os essenciais bonificante, bonificável e bonificar [...] tem também em si os essenciais magnificante, magnificável e magnificar, e o mesmo dos outros), além de seus acidentes próprios, (“...quantidade, qualidade, relação, e os outros nove predicados deles.”) e as três potências, a memória, o entendimento e a vontade (O Livro da Alma Racional, Segunda Parte, II, 1-4)

Percebe-se assim que o pensamento luliano trabalhava sempre em trilogias, à semelhança da Santíssima Trindade.

V. A necessidade da prova racional da Trindade: discordâncias com a doutrina islâmica

Como bom cristão, Llull acreditava que a Trindade é a verdade, como Deus. E esta questão — a definição do que é verdade — era para ele, sem dúvida, um ponto crucial para o estabelecimento de seu diálogo inter-religioso:

— Filho, disse o ermitão, Deus Pai é verdade, e Sua verdade engendra o Filho e espira o Espírito Santo, que também são verdade. E como a verdade criada possui alguma semelhança com a verdade de Deus, por esse motivo Deus deseja que assim como Ele, em Si e de Si engendra e espira a verdade em grandeza, da mesma forma os homens que estão na verdade e no caminho da salvação multipliquem, com a sua verdade, a verdade nos infiéis e nos malvados cristãos que estão no caminho da danação. Contudo, esta multiplicação não poderia ser bem feita se a falsidade existisse em pouca quantidade. (Félix ou O Livro das Maravilhasop. cit., Livro VIII - Do Homem: 258)

Llull compartilhava, como os de seu tempo, a postura exclusivista, que entendia que o único caminho da salvação e de participar da graça divina era a Igreja católica — tese desbancada oficialmente somente no século XX (FIDORA, 2001).

Assim parece claro que, à exceção do primeiro ponto (as dignidades de Deus) — e mesmo assim com fortes divergências — os três pilares do pensamento luliano que serviam de premissas para seu diálogo não eram compartilhados nem por judeus, nem por muçulmanos. Apesar de seu generoso espírito de diálogo, presente sobretudo no Livro do Gentio e dos Três Sábios — escrito, por sinal, na fase A —a proposta apologética luliana em relação aos muçulmanos esbarrava sempre nas diferenças teológicas entre as duas crenças.

No caso das dignidades divinas, sabemos que havia um abismo profundo entre a teologia islâmica e o pensamento luliano. Como destacou Garcias Palou, os muçulmanos discordavam a respeito não só da natureza e do número das dignidades, mas principalmente no que dizia respeito a seus atos intrínsecos (GARCIAS PALOU, 1981: 184), segundo axioma luliano que era um pressuposto para o terceiro — a prova cabal da existência da Trindade.

Em relação a esse dogma cristão a doutrina islâmica é bem clara:

Ó adeptos do Livro, não vos exagereis em vossa religião e não digais de Deus senão a verdade. O Messias, Jesus, filho de Maria, foi tão-somente um mensageiro de Deus e Seu Verbo, com o qual Ele agraciou Maria, por intermédio de Seu Espírito. Crede, pois, em Deus e em Seus mensageiros e não digais; Trindade! Abstende-vos disso que será melhor para vós; sabei que Deus é Uno. Glorificado seja! Longe está a hipótese de ter tido um filho. A Ele pertence quanto há nos céus e na terra, e é mais que suficiente Custódio. (AlcorãoAs Mulheres, 4.ª Surata, 171)

Ou nesta outra passagem:

72. São blasfemos aqueles que dizem: Deus é o Messias, filho de Maria, ainda quando o mesmo Messias houvera dito; Ó israelitas, adorai a Deus, Que é meu Senhor e o vosso. A quem atribuir semelhantes a Deus, ser-lhe-á vedada a entrada no Paraíso e sua morada será o fogo infernal! Os iníquos jamais terão socorredores.

73. São blasfemos aqueles que dizem: Deus é o terceiro da Trindade! Porquanto não existe divindade alguma além do Deus Único. Se não desistirem de quanto afirmam, um doloroso castigo açoitará os incrédulos entre eles. 

74. Por que não se voltam a Deus e imploram Seu perdão, uma vez que Ele é indulgente, Misericordioso? 

75. O Messias, filho de Maria, não é mais que um mensageiro ao nível dos mensageiros que o precederam; e sua mãe era sinceríssima. Ambos se sustentavam de alimentos terrenos como todos. Observa como lhes elucidamos os versículos e observa como se desviam (...) 

77. Dize-lhes: Ó adeptos do Livro, não vos exagereis em vossa religião, profanando a verdade, nem sigais a concupiscência daqueles que se extraviaram anteriormente, desviaram a muitos outros e se desviaram da verdadeira senda. (AlcorãoA mesa servida, 5.ª Surata)

Apesar disso, o Alcorão Sagrado afirma logo a seguir que os cristãos são aqueles que estão mais próximos do afeto dos crentes, porque possuem sacerdotes e monges e nunca são tomados de soberba (Os significados dos versículos do Alcorão Sagrado. Trad. Prof. Samir El Hayek, 1989, 5.ª Surata, 82, p. 89).

De qualquer modo, o islamismo recusa o dogma da Trindade, base da visão de mundo de Ramon e da própria doutrina católica. Mas e as dignidades divinas, tão caras a Llull?

Para o teólogo e místico Algazel, ou al-Ghazali (Abu Hamid Muhammad ibn Muhammad al-Gazzâli, 1059-1111) — motivo da redação das duas primeiras obras de Ramon, o Compendium logicae Algazelise a Lògica del Gatzel (ORL, XIX, Palma de Mallorca, 1936) — as dignidades (que ele chama de atributos divinos absolutos) são cinco:

1) a necessidade absoluta 
2) a eternidade absoluta 
3) a espiritualidade absoluta 
4) a unidade absoluta e 
5) a simplicidade absoluta.

Para Algazel, o principal atributo divino é a vontade, causa da determinação do ato; os correlativos — que ele nomeia de operativos — são:

1) vontade 
2) onipotência 
3) omnisciência 
4) vida 
5) palavra 
6) visão e 
7) audição (GARCIAS PALOU, 1981: 184).

Em uma de suas principais obras, Maqâsid al-Falâsifa (Tendências dos filósofos) — obra traduzida para o latim por Domingo de Gundisalvo, em Toledo, antes de 1185 (GOMES, 1991: 99-100; FIDORA, 2000: 127-136) — Algazel propusera o justo meio da crença contra os níveis racionais atingidos pela filosofia. Para o místico muçulmano, “Deus é vontade absoluta e liberdade operativa. Essencial, sensível, inteligível e semelhante.” (GOMES, 1991: 102)

Não me deterei nem entrarei nas sutilezas teológico-metafísicas dos diálogos reais entre Ramon e os líderes muçulmanos, pois parece-me claro que apesar da possibilidade e concretização do diálogo com as elites islâmicas norte-africanas, o projeto apologético luliano na prática redundou em fracasso: não temos conhecimento de um único crente muçulmano convertido ao cristianismo graças à Arte luliana ou às suas pregações em praça pública na África. Ao invés disso, à guisa de conclusão, tratarei das propostas lulianas em relação aos muçulmanos contidas no Livro das Maravilhas como um contraponto à suas discussões na África.

VI. Como converter os muçulmanos?

Na vida real, vimos que Ramon Llull não teve sucesso em converter os muçulmanos para o cristianismo. Os diálogos inter-religiosos que aconteceram na África aparentemente resultaram em fracasso. Não temos notícia comprovada de nenhuma conversão de um muçulmano para o cristianismo baseada na Arte luliana ou em suas pregações públicas. Em contrapartida, ao longo de sua vasta obra, Llull criou milhares de diálogos imaginários e corteses entre judeus, cristãos e muçulmanos. Na utopia luliana, ao contrário da vida real, na maior parte das vezes esses debates aconteciam entre sábios tolerantes e generosos, em cenários paradisíacos, quase sempre à sombra de frondosas árvores, fontes maravilhosas, como no Livro do Gentio e dos Três Sábios, onde o gentio caminha antes de encontrar os três sábios das religiões do Livro:

Estando o gentio nesta consideração e neste tormento, veio-lhe em seu coração a idéia de partir daquela terra e se dirigir a uma terra estranha para ver se porventura poderia encontrar remédio para sua tristeza. Pensou então em ir a uma grande floresta desabitada, que era abundante de fontes e de muitas belas árvores carregadas de frutos com os quais o corpo humano poderia sustentar a vida. Naquela selva havia muitas bestas e muitas aves de diversos tipos. Por isso, o gentio cogitou que naquele eremitério, por ver e odorar as flores e pela beleza das árvores, das fontes e das ribeiras, ele poderia ter algum consolo para seus graves pensamentos, que muito fortemente o atormentavam e o afligiam. 

Quando o gentio chegou nesse grande bosque, viu as ribeiras, as fontes e os prados, e nas árvores cantavam muito docemente pássaros de diversas linhagens. Sob as árvores havia cabritos, cervos, gazelas, lebres, coelhos e muitas outras bestas que eram agradáveis de se ver. As árvores eram carregadas de diversas formas de flores e frutos que exalavam odores muito prazerosos. Mas quando o gentio quis se consolar e se alegrar com o que via, ouvia e cheirava, veio-lhe em pensamento a morte e o aniquilamento de seu ser, e então multiplicou-se em seu coração a dor a e tristeza. (Llibre del Gentil e dels Tres SavisInOS, vol. I, 1989: 109)

Em relação aos muçulmanos, Ramon demonstrava em seus escritos basicamente duas grandes preocupações. Em primeiro lugar, a perda da Terra Santa e a expansão do Islamismo:

— Senhor Blaquerna, disse Félix, como e de que maneira aconteceu que os sarracenos possuíram e têm possuído tão longamente a Terra Santa de Ultramar na qual Jesus Cristo nasceu, foi crucificado e enterrado? Porque maravilho-me muito dos cristãos que tão longamente têm sofrido.

Disse Blaquerna: 
— Um sarraceno que era soldado e senhor daquela terra escreveu ao apóstolo e aos reis dos cristãos uma carta na qual dizia como ele se maravilhava muito fortemente como os cristãos pensavam em conquistar aquela terra pela força das armas corporais sem semelhantes armas espirituais com as quais os apóstolos, pregando e desejando o martírio, converteram toda aquela terra de Ultramar na qual os cristãos perderam pela força das armas corporais. De acordo com o hábito de Maomé, seus seguidores conquistaram aquela terra a qual, pela força das armas, a tiveram e possuíram contra todos os cristãos deste mundo, e contra a alta honra que convém a Jesus Cristo e a seus seguidores. (Félix ou O Livro das Maravilhasop. cit., Livro I - De Deus: 65)

Por não darem a devida importância à questão da Terra Santa, os reis desse mundo não eram merecedores de reverência e honra. Para mostrar essa insatisfação, Félix conta ao ermitão o exemplum de um peregrino que não fez a devida reverência a um rei:

Aquele peregrino disse ao rei estas palavras: 
— Dois peregrinos saíam de Jerusalém no dia em que eu entrava. Ambos choravam e lamentavam pela desonra que o cristianismo tem porque os sarracenos têm a posse de Jerusalém e honram Maomé, seu profeta, que disse que Jesus Cristo não é Deus. Enquanto os dois peregrinos assim choravam, um disse ao outro que existem no mundo seis homens que são cristãos e que são reis, os quais poderiam dar aos cristãos, se assim o desejassem, aquela Santa terra de Ultramar. Mas eles não possuem tão grande desejo de honrar a Jesus Cristo como a si mesmos e por isso não são dignos de honra. E vós sois um destes reis e por isso não sois digno que vos faça reverência e honra. (Félix ou O Livro das Maravilhasop. cit., Livro IV - Dos Elementos: 84)

Os príncipes cristãos eram motivo de censura por parte de Ramon porque preferiam caçar e ouvir jograis do que reconquistar a Terra Santa. Na visão de Llull, a falta da Fé — “...luz do entendimento humano, pois supõe o que o entendimento não entende e o entendimento, pela suposição, se eleva e entende o que o ato de entender não é capaz sem a suposição da fé.” (Félix ou O Livro das Maravilhasop. cit., Livro I - Do Homem: 211) — era o grande problema de seu tempo. A mesma fé que Deus

...deixou à guarda do papa, dos cardeais, prelados, clérigos, que a guardam e a defendem contra a descrença na qual estão judeus, sarracenos, hereges, infiéis, que todos os dias se esforçam para destruir a fé romana. Filho, os cristãos que são homens leigos, estão compelidos a guardar e manter a fé com a força das armas, e os clérigos a devem manter com a força da razão e das Escrituras, com orações e uma vida santa. (Félix ou O Livro das Maravilhasop. cit., Livro I - Do Homem: 211-212)

Em um grande exemplum do Livro das Maravilhas há uma típica construção literária luliana que aborda o tema Terra Santa/Islamismo: diante de Félix, o ermitão chora longamente porque a “santa fé cristã está desonrada”. Os sarracenos, “filhos da descrença” possuem a Santa Terra de Ultramar “onde a fé foi fundada e entregue à guarda da Santa Igreja”. O ermitão lamenta e pergunta: “Quando virá o dia da chegada de combatentes, amantes, louvadores, que com suas armas corporais e espirituais destruirão o erro e darão honra à fé que neste mundo está tão afrontada?” Essa grande angústia dá ensejo para que o ermitão responda sua própria pergunta com um exemplum onde a Fé e a Descrença debatem entre si qual das duas têm mais servidores neste mundo:

— Filho, havia um príncipe muito poderoso que Deus tinha feito muita honra neste mundo. Aquele príncipe estava um dia em uma caça perseguindo um javali. Enquanto caçava o javali, ele se encontrou com a Fé e a Descrença, que discutiam. A Fé gritou muito alto para o príncipe e disse-lhe estas palavras: — Oh, tu, príncipe, que caça as bestas selvagens que são criaturas de Deus! Ajuda-me contra a Descrença, que me faz estar tão desonrada, menosprezada e tão pouca entre os homens! Deixa as bestas selvagens que estás caçando e venha honrar a mim, porque para mim és cristão, e foi feito príncipe para me honrar, e sem mim não podes ter salvação! Enquanto vives dá-te todo e toda a tua terra para honrar a meu Deus, que te criou e tanto te tem honrado, e sejas assim fervoroso em meu honramento para honrar a Deus da mesma forma que é fervoroso ao caçar as bestas selvagens. E depois de tua morte, ordena que teus descendentes me honrem todos os tempos! 

A Fé disse essas palavras e muitas outras ao rei que caçava, mas o rei deu pouco valor à suas palavras e continuou a correr atrás do porco. A Fé chorou e a Descrença a escarneceu, jactando-se que ela tinha mais servidores que a Fé. A Fé respondeu e disse que a Descrença recompensava muito mal seus servidores. 

Félix maravilhou-se com o que o ermitão disse, e afirmou que tinha uma grande maravilha com o fato da fé cristã não ser pregada entre os infiéis e ter tão poucos louvadores, honradores que não duvidassem dela para honrá-la com trabalhos, perigos, morte, ou por alguma outra coisa, porque grande honra convém que todas estas coisas não sejam postas em dúvida. 

— Filho, disse o ermitão a Félix, um homem tomou o ofício de jogral e andava pelos príncipes e prelados e pregava que ajudassem a Fé contra a Descrença. Um dia aconteceu que ele comia na corte de um nobre prelado com muitos outros jograis. Quando tinha comido, perguntou se o prelado desejava honrar a fé pela qual era prelado e honrado. O prelado perguntou àquele homem, jogral da fé e jogral de Cristo, como poderia honrar a fé. O jogral respondeu que ele deveria fazer um convento de religiosos que aprendessem a língua sarracena e fossem honrar a santa fé na Santa Terra de Ultramar, onde a descrença a tem desonrado tanto. O prelado disse que todos que falassem dessa matéria aos sarracenos morreriam e por isso não seria bom que o homem morresse sem ter algum fruto. O jogral respondeu que, mais do que salvar e converter o homem, o maior fruto estava em louvar e honrar a Deus e a fé, porque esta é a coisa mais nobre que existe. Por isso, ainda que nenhum sarraceno seja convertido, não se deve deixar de louvar e honrar a Deus, que é digno de ser louvado, honrado e bendito por Si mesmo. E o maior honramento que o homem lhe pode fazer é aventurar-se à morte e morrer por Ele, honrando-O e louvando-O com as coisas pelas quais pode ser honrado. Pouco valeu o que disse o jogral, porque a Descrença tinha aquele prelado com o qual o jogral falava em servidão. O jogral estava vestido de negro e tinha uma grande barba. Andava pelas terras tendo grande dor e dizia que seu Senhor Jesus Cristo era desonrado através da alta senhoria que a Descrença tinha neste mundo. O jogral chorava e o homem escarnecia de suas lágrimas, ele dizia razões necessárias contra a Descrença e aqueles que o deviam auxiliar o repreendiam. A Fé entristecia-se e a Descrença se alegrava. 

— Filho, disse o ermitão a Félix, chora e lamenta a desonra que a fé recebe neste mundo, e veja como a descrença está tão mais honrada que a fé; veja quantos são os que amam os delitos corporais, quantos são os infiéis e quão poucos são os católicos; e dos católicos veja quão poucos são os que amam a honra e a exaltação da fé que Deus os encarregou. Filho, abra teus olhos e veja como as honras temporais não valem nada e pouco valem para os trabalhos, perigos, mortes e as outras coisas semelhantes a essas, Maravilha-te, filho, pois vês maravilhas! (Félix ou O Livro das Maravilhasop. cit., Livro I - Do Homem: 212-213)

A idéia de um jogral de Deus (joculator Dei) é franciscana e está bem exemplificada nesta passagem, no Jogral de Valor em Blaquerna (cap. 48) e no Libre de contemplació (cap. 118). Há, segundo Bonner, um forte elemento autobiográfico nesta figura literária. Hillgarth chega a chamar Llull de pregador místico do Islã (HILLGARTH, 1979).

A Fé é desonrada e a Descrença exaltada, a Acídia vive e a Diligência morre:

— Um santo peregrino foi à Santa Terra de Ultramar em peregrinação, e quando chegou a Jerusalém e viu que os sarracenos controlavam aquele lugar santo, maravilhou-se muito fortemente com a negligência dos cristãos, que deixaram os sarracenos possuir aquele lugar. Estando o peregrino nessa maravilha, ele entrou em uma igreja de sarracenos onde viu fazerem honra a Maomé, que disse a seus companheiros que Cristo não era Deus. O santo peregrino maravilhou-se com a negligência dos cristãos, que não são diligentes em pregar e mostrar o caminho da verdade aos infiéis. Aquele peregrino foi aos prelados e príncipes dos cristãos, e disse-lhes para serem diligentes em honrar Jesus Cristo. E cada um lhe dizia que seria bom, mas ninguém se colocava à frente como o peregrino desejava. O peregrino maravilhou-se e disse que a acídia vivia e a diligência morria. (Félix ou O Livro das Maravilhasop. cit., Livro I - Do Homem: 239-240)

Parece claro que para Llull os cristãos deveriam ter mais fé em sua fé e deixar as coisas mundanas de lado — como a caça e a música profana dos jograis — para reconquistar a Terra Santa e converter os muçulmanos. Essa conversão deveria ser feita de duas formas: com a força das armas dos homens leigos e com a força da razão, razão baseada nas Escrituras, nas orações e no exemplo da vida santa dos homens religiosos. E dessas duas formas aceitáveis, a melhor delas era a razão, que ele chama no Livro contra o Anticristo de batalhas intelectuais:

Pela experiência das guerras e batalhas que os reis, príncipes, grandes barões, cavaleiros e outros homens cristãos têm feito contra os sarracenos pode-se conhecer e saber que por outra melhor e mais elevada maneira é possível converter o mundo e conquistar a Terra Santa de Ultramar, que não é aquela que os cristãos têm feito contra os infiéis, as guerras e batalhas sensuais, e sim com as batalhas intelectuais, de uma maneira semelhante à que os sarracenos iniciaram e multiplicaram sua seita. (Llibre contra Anticrist. InNEORL, vol. III: 159)

O cristão dialoga com o muçulmano sempre baseado na razão e com o objetivo de tentar provar a existência da Trindade:

— Um sábio cristão disputava uma questão com um sábio sarraceno. O sarraceno perguntou ao cristão se quando Deus Pai engendra o Filho existe corrupção. O cristão disse que em Deus existe mais nobre geração que a que existe nas árvores, onde não pode existir geração sem corrupção, porque logo após a árvore ser cortada toda a sua essência é transformada, corrompendo aquela mesma árvore, e a natureza, também corrompendo-a, engendra algumas coisas a partir dela. Assim, a essência daquela árvore é restaurada através daquelas coisas engendradas. E porque Deus Pai engendra Seu Filho de Si mesmo — engendrando-O integralmente, infinito, eterno e completo de todo o bem — basta a Ele engendrar o Filho infinitamente, eternamente e perfeitamente em todo o bem sem corrupção. E o Pai e o Filho permanecem todo o tempo uma mesma essência e uma mesma deidade e virtude. (Félix ou O Livro das Maravilhasop. cit., Livro V - Das Plantas: 106)

Apesar de ser um homem de razão, percebe-se uma mudança em sua postura pacifista e unicamente missionária presente em seus primeiros escritos, que passa pela união entre a missão e a cruzada — visível no Livro das Maravilhas — até desembocar em sua idéia fixa de reconquistar a Terra Santa. Isto poderia parecer apenas o abandono de sua utopia do diálogo pacífico em detrimento da realidade política do final do século XIII, como já foi muito bem destacado (ALTANER, B. Glaubenszwang und Glaubenfreiheit, l.c., p. 609. Citado em COLOMER I POUS, 176).

Mas, apesar de, vista em retrospecto, sua posição diante judeus e muçulmanos oscilar entre a simpatia e o dogmatismo (COLOMER I POUS: 178), sua crença no diálogo racional como uma forma superior de contato o coloca como um precursor legítimo do verdadeiro diálogo inter-religioso, calcado em um profundo e sincero respeito, em que pese suas características psicológicas históricas típicas do homem do século XIII.

VII. Conclusão

Não seria melhor vencer os infiéis na discussão convencendo-os através dos atributos divinos e com razões necessárias do que fazermos a guerra transpassando-os com nossa espada e arrasando suas terras? Convertemo-los e deixem-nos que sejam possuídos. Sigamos artífices da concórdia e do amor. (Tractatus de modo convertendi infidelis, l.c., p. 140. Citado em COLOMER I POUS: 179)

Acredito que na longa história dos contatos e disputas entre as chamadas três religiões do Livro, Ramon Llull ocupa um lugar especial e de destaque. Num tempo em que os debates públicos realizados no ocidente cristão eram organizados num clima de opressão e manipulação, onde os teólogos baseavam sua argumentação nas autoridades de suas respectivas fés, destacando em suas disputas somente os erros da doutrina contrária, Llull é um notável exemplo de tolerância, de busca de uma verdade comum — filosoficamente, tolerância como o oposto de manipulação (LÓPEZ QUINTÁS).

Ramon Llull aprendeu árabe, viajou e debateu em terras muçulmanas, tentou ser ele próprio a materialização de seus propósitos de conversão do mundo para o cristianismo. Tinha um grande respeito pela cultura islâmica, bem explicitado numa passagem do Livro das Maravilhas, onde afirma que as roupas e a alimentação sarracenas são mais adequadas ao homem e proporcionam aos muçulmanos uma vida mais longa e sadia:

— A principal razão pela qual os cristãos envelhecem e morrem antes dos sarracenos é porque o sarraceno usa mais coisas doces, que são quentes e úmidas, que o cristão. E a água que bebe multiplica a umidade, fazendo durar a umidade radical. E o cristão que bebe vinho, que é quente e seco, multiplica seu calor e consome sua umidade.

— Senhor, disse Félix, por qual natureza os sarracenos possuem melhores sentidos que os cristãos quanto mais envelhecem?

O ermitão disse que o vinho, que se evapora, e os alimentos que os cristãos consomem mais que os sarracenos, ocasionam a destruição do cérebro, lugar do corpo onde é feita a apreensão do entendimento. E a água, que é fria e úmida, é conveniente para o cérebro e para a elevação e queda dos vapores, porque a sua umidade eleva a umidade do cérebro e seu frio desce os vapores, pois a umidade é leve e o frio é pesado, e porque o cérebro, que é frio e úmido, pode ser mais adequado por seus semelhantes vapores do que por seus dessemelhantes. 

— Para conservar a juventude melhor convém uma veste ampla que uma estreita, para que o ar possa participar com a superfície do corpo, e o ar quente possa fazer sair os vapores do corpo que a potência digestiva não deseja expelir. E pelo ar frio os poros são restringidos, e o calor natural permanece dentro do corpo, e faz-se melhor a digestão, conservando-se melhor a juventude no homem jovem e a velhice no homem velho. (Félix ou O Livro das Maravilhasop. cit., Livro VIII - Do Homem: 182)

Nesta passagem Llull trata da umidade radical. Na fisiologia medieval, a umidade radical era o humor vital ao qual era atribuída a conservação da vida animal. Na Idade Média a medicina atribuía grande importância aos humores do corpo. A medicina medieval baseava-se em Galeno de Pérgamo (c. 129-179 d.C.), médico e anatomista grego. Em sua teoria — a famosa doutrina dos temperos — todas as coisas derivam dos quatro elementos e das quatro qualidades (quente, frio, seco e úmido) convenientemente temperadas (no sentido de interpenetração total das partes que se mesclam, e não a simples justaposição das partes) (REALE e ANTISERI, 1990: 361-368).

Assim, o bem-estar do corpo estava condicionado aos fluidos corporais: sangue (úmido), fleuma (seco), bílis amarela (quente) e bílis negra (frio). Nesta teoria clássica dos humores, o homem era quente e seco — sua irascibilidade era decorrência da bílis amarela; a mulher era fria e úmida (ARISTÓTELES, Ética a Nicômanos, Livro 3, cap. 8, 1117a; DAVIS, 2001: 122; BLACKBURN, 1997: 165 e 329). Todos os temperamentos humanos pertenciam a um ou outro dos quatro humores: sangüíneo, flegmático, colérico e melancólico. Em várias combinações com os signos do Zodíaco, que governava partes específicas do corpo, os humores e constelações determinavam os graus de calor e umidade do corpo, e a proporção da masculinidade e feminilidade de cada pessoa. (TUCHMANN, 1990: 99). Desnecessário dizer que Llull adota a medicina de Galeno como base para suas observações da natureza.

Enquanto o regime alimentar cristão era baseado na trilogia clássica pão-carne-vinho, o dos muçulmanos era rico em frutas doces, vegetais e vitaminas. Sensível às duas culturas, Ramon Llull percebia isso e admitia que muitos muçulmanos viviam muito mais que os cristãos, que sofriam prematuramente de gota e envelheciam antes do tempo por serem vítimas de seus excessos alimentares (DOMÍNGUEZ ORTIZ, 1962: 50; FLANDRIN e MONTANARI: 1998).

Filho de seu tempo, Llull tinha sempre em mente a conversão do “infiel” e compartilhava os mesmos preconceitos da maioria dos cristãos em relação ao Islamismo e até mesmo a Maomé — opiniões especialmente explicitadas na obra Doutrina Pueril (1972, Livro LXXI - De Maomé). Contudo, os diálogos inter-religiosos lulianos são pérolas literárias de profundo respeito mútuo. Llull parece ser o ápice do diálogo racional entre o Islã e o cristianismo latino medieval, iniciado no século XI por Pedro, o Venerável, abade de Cluny e todo o impulso das traduções da Escola de Toledo, com Gundisalvo, o bispo João e Gerardo de Cremona. E apesar de não ter conseguido na prática implementar seu ideal de conversão, os ideais lulianos de comunhão e diálogo calcados na razão e na compreensão do outro em sua plenitude tornam sua mensagem sempre atual enquanto nesse mundo houver fé.

Em nome de Deus, Clemente, Misericordioso 
1. Dize: Amparo-me no Senhor dos humanos 
2. O Rei dos humanos, 
3. O Deus dos humanos, 
4. Contra o mal do sussurro do pusilânime, 
5. Que sussurra ao coração dos demais humanos, 
6. Dos gênios e dos humanos!
(AlcorãoSurata dos Humanos, 114.ª Surata)

*

Fontes

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