Muito mais que um clássico

Ricardo da COSTA

In: SEVERINO BOÉCIO. A Consolação da Filosofia
(trad. e notas: André Gonçalves Fernandes;
apres.: Ricardo da Costa).
Campinas, SãoPaulo: Vide Editorial, 2023, p. 7-10
(ISBN 978-85-9507-198-8).

Há livros e livros, autores e autores. E obras. E pensadores. E clássicos. E mais que clássicos. A Consolação da Filosofia pertence ao topo. Faz parte da formação do Ocidente. Qual seu mistério? Por que ajudou a forjar a forma com a qual lidamos – ou lidávamos – com a vida e suas encruzilhadas, com as decepções, traições, ardis da existência? Tantos séculos nos separam de seu contexto, do sofrimento de Boécio (†524), de suas sessões de tortura entre um parágrafo e outro que, perplexo, custo a crer que em pleno século XXI, seu elevado misto de poesia e prosa literária e filosófica ainda seja continuamente redescoberto por gerações hoje atônitas com o ocaso do Ocidente, sua ruína. E no Brasil! Pois esse é nosso atual contexto, e sua reflexiva consolação ainda consegue encontrar eco em nossos conturbados espíritos.

Talvez essa seja a conexão entre seu tempo e o nosso, entre 2023 e 524 (quase 1.500 anos!): o mundo romano era destroços, pura transformação barbarizante. O nosso o é. Tentamos sofregamente respirar em meio a nossa distópica disforia. Já Boécio mantinha sua moral estoica – embora já fosse católico – e preservava as melhores tradições de seu código ético de defesa da verdade no mais elevado ambiente político de então, o senatorial, ainda que já devassado, corrompido e devastado. Pagou o preço por isso. Acusado de alta traição, abandonado pelos que defendeu, entregue aos leões, foi barbaramente torturado (como os romanos, agora ostrogodos, sabiam tão bem fazer). E o mais inacreditável de tudo é que, entre uma sessão de tortura e outra, encontrou ânimo e uma sublime inspiração para escrever a Consolação. Mentalmente visitado pela rainha Filosofia (uma alegoria pagã da Virgem?), foi severamente admoestado por tê-la abandonado.

Esse é seu ambiente literário: um diálogo consigo próprio. E quando sinceramente dialogamos conosco, com nossas frustrações e falsas esperanças, alçamos voo e quase alcançamos a Humanidade. Temos a ilusória pretensão de ultrapassar nosso tempo, nossa cronologia, e ilusoriamente ansiamos tocar a Eternidade. O profundo desejo da estética da escrita é chegar ao Belo, à Beleza, que resplandece ainda mais quando se vê cercada pela miséria da feiúra, do grotesco, do horror.

A Sabedoria sabe: sempre trava um combate contra a estultícia, pois seu objetivo primeiro é desagradar os patifes, os maus, a maldade. Por isso combate a Fortuna, caprichosa deusa da roda da sorte, do acaso, da inconstância. A sabedoria que educou Boécio não é governada pelo governo da multidão, mas por sua consciência. Pois tudo provém de Deus.

A Filosofia então admoesta o filósofo (apesar de político, Boécio fora nela formado: apenas esquecera suas melhores tradições, levado que foi pelas delícias do engano). Na verdade, é sua função primeira: espiritualmente consolar-nos, pois o mundo, desde que foi mundo, é caos, desordem, estupidez. Cupidez. Tragicômico teatro de sordidezes. Para retornar ao sereno seio da meditação consolatória, é preciso morrer para o mundo e, vivendo, morrer enquanto nele vive. Pois nada é mais precioso que nós mesmos, de nós sermos senhores. Temos que ser tomados pela posse, possuirmos sem sermos possuídos, paciente e docemente tolerarmos em silêncio as ofensas sofridas, os insultos recebidos. Só assim nossas mentes são libertas de nossos grilhões conseguimos dirigir nossos olhos para os céus. Rumo ao Criador. Ao Amor que rege o cosmos e governa terras e mares.

A Consolação então dá voz à Filosofia. Todos os nossos afãs são voltados para se chegar à Felicidade, o maior de todos os bens, estado completo, íntegro, total e satisfeito. A maior parte das pessoas, animais terrestres, crê que são os gozos pelos bens terrenos. Mas estes nunca completam à saciedade. Pior que isso: a seguir, vem a angústia da incompletude, constante sensação de falta, de não se chegar à autossuficiência.

É então que o texto de Consolação se nos desvela uma de suas passagens mais pungentes: contemplemos toda a extensão do céu, sua estabilidade e ao mesmo tempo célere movimento e deixemos de nos admirarmos por coisas vis. Seu azul é arrebatador, sua beleza, magnífica. O que não tem partes e é uno por natureza é a constância da virtude, o Bem, por todos desejado, por poucos alcançado. Quem quer chegar à Verdade deve se voltar para a luz da própria visão interior, de seu íntimo, do que se encontra no fundo do coração. A Consolação nos ensina o caminho de volta à Pátria, que nada mais é do que o afastamento de todas as vãs perturbações. É quando se chega à verdadeira felicidade: ser bom, praticar o bem. Não há maldade que isso possa ofuscar. E isso é espantoso: conformar o espírito às coisas melhores! Constatar que a Divina Providência nada mais é do que a forma simples e imóvel de realizar as coisas. Ela não se preocupa com o mal, pois nada por causa dele acontece. Quanto a nós, incapazes que somos de perceber a amplidão do todo, não compreendemos a divina cadeia dos acontecimentos, pois eles sempre nos parecem caóticos, confusos. Isso ocorre porque não nos é lícito abarcar todos os mecanismos da belíssima obra de Deus. Eles nos parecem misteriosos. Apenas podemos, por um breve momento, vislumbrar a eternidade do amor de Sua concórdia, invisível aos incautos, paradoxal aos insensíveis.

Nesse locus amoenus é que a Consolação da Filosofia discorre a nós suas eternas meditações. E conclui com uma eterníssima admoestação: devemos nos afastar dos vícios, cultivar as virtudes e erguer nosso espírito, com humildes preces, para as justíssimas esperanças retas. Só o que realmente importa nesta vida é tentar vivê-la de modo honesto, pois todas as nossas ações são apreciadas por aquele juiz que tudo vê, que recompensará os bons e castigará os maus. É n’Ele que devemos depositar nossas esperanças.

Há algo mais eterno que isso?