A nobreza, fonte espiritual da Civilização

Ricardo da COSTA


In: Julia BUTIÑÁ JIMÉNEZ; Ricardo da COSTA (orgs). Mirabilia 9 (2009).
Aristocracy and nobility in the Ancient and Medieval World
,
p. 01-04
 (ISSN 1676-5818).

Nobilis, non vilis, cuius et nomen et genus scitur.
Nobre, não vil, cujo nome e raça são conhecidos.
Isidoro de Sevilha, Etimologias X, 184.

A simplicidade e concisão da definição do bispo de Sevilha não deixam dúvidas: o que então distinguia e hierarquizava os homens na Alta Idade Média era o conhecimento que esses privilegiados tinham de pertencer a uma raça sagrada, antiga noção de nobreza (nobilis, “que se pode conhecer”, “que é conhecido”).

Isso porque ainda não havia um estatuto jurídico próprio que se perpetuasse através do sangue – condição sine qua non para a constituição de uma nobreza, já dizia Marc Bloch (1886-1944). Isso só ocorreu bem mais tarde, por volta do século XII.1

Mas o primeiro alicerce já fora lançado: só era nobre aquele cujo nome fosse conhecido, e, posteriormente, aquele que, com seu nome, pudesse provar a nobreza de seus antepassados.

Quando Isidoro de Sevilha (c. 560-636) escreveu aquelas palavras, a obscuridade quase se tornara lei. Para se ter uma idéia disso, as genealogias dos camponeses medievais islandeses (sim, dos camponeses) são mais bem conhecidas por nós que a dos barões continentais!2

Essas famílias, essas raças, sofriam uma notável e constante renovação, até mesmo extinções. De qualquer modo, a distinção de nascimento era aceita também pelo fato de não existir escravos entre seus antepassados – o que também sucintamente diz Isidoro. E pelo seu conceito oposto, isto é, nobre era que tinha o gozo da libertas, a faculdade de dispor de si e de seus bens – e de ser generoso com eles (a famosa largueza cavaleiresca).3

Além disso, a posse de uma terra, mesmo que alodial, tornava o seu detentor, mesmo que um modesto camponês (sim, um camponês), alguém distinto dos outros, alguém honorável. Contudo, a riqueza não era condição indispensável (embora sempre fosse postulada – na Espanha eles não eram os ricos-homens?): poderia haver – e havia – nobres ricos e pobres, como camponeses ricos e pobres!4

Por exemplo, a nobreza polonesa (de 8 a 10% da população), em pleno século XVI, isto é, já no período moderno, tinha um nível de vida que não diferia muito do de seus camponeses.5

Mas, acima de tudo, o poder de mando. Marc Bloch, sempre muito sensível a tudo que é humano, pergunta: “Houve alguma vez motivo mais seguro de prestígio do que o de poder dizer: ‘eu quero’?”.6 Não.

Igualmente honorável era o exercício do poder (especialmente o de julgar, o poder de ban) ou a proximidade dele (especialmente o monárquico), embora isso também não concedesse a nobilitas per se.

Somado a isso, a coragem no campo de batalha, e o desejo do combate – a cavalo, claro: pouco a pouco, com o tempo, cavaleiro passou a ser sinônimo de nobre. Todas essas peculiaridades conferiam ao seu detentor um orgulhoso sentimento de distinção, de pertença a um grupo de escol.

Sempre pouquíssima numerosa, a nobreza era aberta, pois não totalmente endogâmica. Nesse sentido, a mulher desempenhava um papel fundamental. Elas eram as responsáveis pela transmissão do sangue, o elemento permanente e consubstancial da raça livre.7 Essa é a origem laica da valorização feminina na Idade Média.8

Mas o herdeiro deveria fazer jus ao herdado pela família, ao direito patrimonial, mesmo um rei. Para fazer valer sua potestas real, o monarca, primus inter pares, deveria saber impor-se, com sua personalidade, com sua inteligência, e, sobretudo, com sua coragem. Sem isso, ele teria o poder, mas não a autoridade.9

A nobreza medieval forjou a gênese de nossa civilização. Mais do que seu caráter guerreiro, foi na nobreza que brotou a literatura, expressão máxima de uma cultura digna do nome.10 Poemas, novelas, genealogias, cronologias, tratados, enciclopédias, crônicas, hagiografias, com eles a nobreza européia exprimiu e difundiu os códigos sociais universais. Por isso, ela foi o substrato que moldou a cultura exportada para o mundo com a Modernidade.

Contudo, a Idade Média não inventou a nobreza, mas a aprimorou, a lapidou sob os valores cristãos. Em uma profunda camada histórica abaixo do mundo medieval, o terreno já fora muito bem preparado e sedimentado pela Antigüidade, pela arete nobiliárquica grega.11

Notavelmente, todas as características da nobreza medieval já estão presentes na poesia do período homérico, tanto na Iliada quanto na Odisséia – por exemplo, a coragem em campo de batalha e o profundo sentido do dever, a honra e o orgulho de pertencer a seu grupo social, e, acima de tudo, a elevação da posição feminina.12

Trata-se, portanto, de uma gestação inscrita na longa duração, como diria Fernand Braudel (1902-1985), no tempo quase imóvel do movimento mais profundo das marés.13 Por isso sua perenidade, densidade e profundidade.

Retornar periodicamente à nobreza do Velho Mundo, reinterpretá-la, resgatá-la do historicismo sem limite, nesta noite em que todos os gatos são pardos, como bem disse Werner Jaeger (1888-1961)14, é beber do tesouro inesgotável que é a cultura antiga e medieval, é examinar novamente os nossos próprios fundamentos histórico-culturais, principalmente em um momento crítico como esse, em que presenciamos o ocaso de seus frutos.15

Pelo contrário, só poderemos aspirar a um futuro mais compreensivamente generoso com o estudo de nosso passado mais universal. A universalidade histórica clama pela generosidade espiritual. E certamente a aristocracia e a nobreza no mundo antigo e medieval podem nos proporcionar essa amplitude do espírito, tão necessária nos obscuros dias hodiernos.

Notas

  • 1. BLOCH, Marc. A Sociedade Feudal. Lisboa: Edições 70, 1987, p. 297.
  • 2. Embora saibamos que muitas das genealogias camponesas tenham sido inventadas (que, de resto, a nobreza também o fazia). Para isso, ver SAWYER, Peter H. “The Twelfth Century”. In: SAWYER, Peter H. Kings and Vikings: Scandinavia and Europe AD 700-1100. London: Routledge, 2003, p. 8-23.
  • 3. GÉNICOT, Léopold. “Nobreza”. In: LE GOFF, Jacques & SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário Temático do Ocidente Medieval II. Bauru, SP: EDUSC; São Paulo, SP: Imprensa Oficial do Estado, 2002, p. 281.
                “A largueza era a terceira das virtudes necessárias ao cavaleiro. Idealmente, ela realizava o gentil-homem, instaurando a distinção social, pois o cavaleiro tinha o dever de nada reter em suas mãos. De sua generosidade ele hauria a força que possuía e o essencial de seu poder – ou, pelo menos, o renome e a calorosa amizade que o cercava. Em Ramon Llull, a largueza (largesa, larguea, larguesa) significava o mesmo: abundância em dar, generosidade, liberalidade, a caridade do cavaleiro, o respeito pelos feridos na batalha.” – COSTA, Ricardo da. “A ética da polaridade de Ramon Llull (1232-1316): o conhecimento necessário dos vícios e virtudes para o bom cumprimento do corpo social”. In: COSTA, Marcos Roberto N. e DE BONI, Luis A. (orgs.). A Ética Medieval face aos desafios da contemporaneidade. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004, p. 487-502.
  • 4. O filósofo catalão Ramon Llull (1232-1316) oferece um considerável número de exempla em que apresenta estórias de nobres empobrecidos e camponeses ricos, como, por exemplo, o cap. 73 do Livro das Maravilhas (1288-1289), em que um camponês rico casa-se com uma mulher de linhagem nobre. Ver COSTA, Ricardo da. “A noção de pecado e os sete pecados capitais no Livro das Maravilhas (1288-1289) de Ramon Llull”. In: FILHO, Ruy de Oliveira Andrade (org.). Relações de poder, educação e cultura na Antigüidade e Idade Média. Estudos em Homenagem ao Professor Daniel Valle Ribeiro - I CIEAM - VII CEAM. Santana de Parnaíba, SP: Editora Solis, 2005, p. 425-432.
  • 5. BRAUDEL, Fernand. Civilização Material, Economia e Capitalismo: séculos XV-XVIII. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 419.
  • 6. BLOCH, Marc. A Sociedade Feudal, op. cit., p. 303.
  • 7. Embora, na prática, isso não impedisse os casamentos das mulheres (particularmente as viúvas) com homens fora do grupo nobiliárquico (as chamadas nuptiae impares).
  • 8. Para o tema, ver COUTINHO, Priscila Lauret e COSTA, Ricardo da. “Entre a Pintura e a Poesia: o nascimento do Amor e a elevação da Condição Feminina na Idade Média”. In: em GUGLIELMI, Nilda (dir.). Apuntes sobre familia, matrimonio y sexualidad en la Edad Media. Colección Fuentes y Estudios Medievales 12. Mar del Plata: GIEM (Grupo de Investigaciones y Estudios Medievales), Universidad Nacional de Mar del Plata (UNMdP), diciembre de 2003, p. 4-28.
  • 9. LUIS VILLACAÑAS, José. Jaume I el Conquistador. Madrid: Espasa-Calpe, 2004, p. 19.
  • 10. Para a literatura medieval, o sempre clássico CURTIUS, Ernst Robert. Literatura Européia e Idade Média Latina. São Paulo: Editora HUCITEC/EDUSP, 1996, mas também COHEN, Gustave. La Vida Literaria en La Edad Media. México: Fondo de Cultura Económica, 1997.
  • 11. “Não temos na língua portuguesa um equivalente exato para este termo; mas a palavra virtude, na sua acepção não atenuada pelo uso puramente moral, e como expressão do mais alto ideal cavaleiresco unido a uma conduta cortês e distinta e ao heroísmo guerreiro, talvez pudesse exprimir o sentido da palavra grega.” – JAEGER, Werner. Paidéia. A Formação do Homem Grego. São Paulo: Martins Fontes, 1989, p. 18.
  • 12. “...numa raça orgulhosa de cavaleiros, a mulher pode ser mãe de uma geração ilustre. Ela é a mantenedora e guardiã dos mais altos costumes e tradições.” – JAEGER, Werner. Paidéia, op. cit., p. 33.
  • 13. BRAUDEL, Fernand. O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrânico na época de Filipe II. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1995, vol. I, p. 25-26.
  • 14. JAEGER, Werner. Paidéia, op. cit., p. 11.
  • 15. Jean Lauand já advertira: “Quem contempla o panorama educacional brasileiro percebe imediatamente que o ostrogodo é uma realidade atual, atualíssima. Tal como no século VI, o perigo que enfrentamos é o do simples desaparecimento da cultura grego-romana que plasmou o Ocidente. Quem lê e compreende a fundo, hoje, Platão, Aristóteles, Virgílio, Cícero, Agostinho, Tomás de Aquino, Dante?” – LAUAND, Jean. Cultura e Educação na Idade Média. Textos do século V ao XIII. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 3.