Visões do apocalipse anglo-saxão

Na Destruição Britânica e sua Conquista (c.540), de São Gildas (c.500-570)

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Invasões anglo-saxônicas dos séculos V-VI
Bandos de guerreiros e colonizadores encontraram resistência ferrenha à medida que subiam para os estuários dos rios Humber (no mapa próximo de York, no Nordeste), Wash (no centro) e Tâmisa (sul). Quase dois séculos se passaram antes que pudessem controlar o Reino Unido. In: BARRACLOUGH, Geoffrey (ed.). Atlas da História do Mundo. São Paulo: Folha de S. Paulo, 1992, p. 99.

Por volta de 540, um angustiado e obstinado monge bretão de nome Gildas decidiu relatar os trágicos acontecimentos ocorridos alguns anos antes em sua ilha. A invasão de anglos e saxões havia praticamente destruído o pouco que restara da dominação romana naquela que se chamaria mais tarde Inglaterra. Seu opúsculo, A Destruição Britânica e sua Conquista, escrito na primeira metade do século VI, tornar-se-ia o único registro desse conturbado século naquela região.

Este artigo analisará esta importante obra de Gildas, especialmente as passagens onde o autor exorta os chefes bretões por suas fraquezas, para ele, responsáveis pela destruição dos bretões. Um problema na análise da obra de Gildas é que os reis bretões são em sua maioria, lendários, traço que foi mantido em obras posteriores, como a de Nennius no século IX (História dos Bretões). Porém, para reconstituirmos a história da Inglaterra na Alta Idade Média é necessário enfrentar este desafio e tecê-la com o que nos contam as fontes da época, mantendo sempre o espírito crítico.

Dividimos o trabalho em duas partes. Inicialmente, tratamos dos aspectos socioculturais comuns à todos os povos germânicos que migraram nos séculos V-VI, dando ênfase especialmente à sua organização social. A seguir, tratamos da invasão da Bretanha, dissertando brevemente a respeito da dominação romana e a visão que os romanos tinham dos povos nativos, utilizando a obra de TácitoVida de Júlio Agrícola como base documental. Ainda comentamos as diferentes formas de invasão realizadas pelas tribos bárbaras, abordando as novas estruturas sociais e a cristianização da Inglaterra no limiar do século VII. Nesta parte, nos valemos da Crônica Anglo-Saxã, escrita em vernáculo durante o reinado de Alfredo, o Grande (871-899, n. 849), rei de Wessex, além da própria obra de Gildas.

Na segunda parte, fizemos um breve histórico do pouco que se sabe a respeito da vida de Gildas, para, a seguir, tratar de sua obra, destacando a estrutura do documento e seus aspectos literários. Analisamos as passagens da Destruição Britânica e sua Conquista em que o autor comenta as fraquezas dos bretões, sua incapacidade de governar, os vícios de seus tiranos, responsáveis por sua derrocada e, por fim, sua crítica aos monges de seu tempo, uma crítica mordaz e eloqüente provavelmente influenciada pelo rígido monaquismo irlandês.

I. Características dos reinos germânicos

Apesar de possuírem características distintas, os reinos germânicos que surgiram no ocidente a partir da queda do Império Romano desenvolveram-se ao longo da Alta Idade Média tendo como alicerce alguns traços comuns.

O primeiro deles era o parentesco tribal, instituição antiga e baseada numa tradição linhagística (MaeghtAetSippeGeschlecht ou Fara). Ela oferecia a segurança necessária aos bens e às vidas dos membros da comunidade, além de proporcionar prestígio ao grupo. Tratava-se de uma rede estável de direitos que uniam as famílias de um povo. A teoria clássica da Sippe a definiu como um clã, uma organização governada por um conselho de anciãos. No caso anglo-saxônico, os clãs eram claramente familiares, agnáticos — parentesco de consangüinidade por linha masculina — e exogâmicos — matrimônios realizados com membros de outra tribo ou, se da mesma tribo, de clãs diferentes. O marido entrava para o clã da mulher (CUVILLIER, 1997: 30).

O casamento (éwa) era celebrado no seio do povo: uma troca matrimonial feita de modo equilibrado. Este equilíbrio estava assentado no Mund (paz, honra, proteção e compra). Socialmente, o Mund era o poder de compra da noiva por parte da parentela do noivo. O marido geria o dote da mulher sob a vigilância do clã dela, clã do qual ele passava a estar associado. É este equilíbrio que significa a palavra Mund. Assim que o casamento era consumado, o dono da casa (husherre) — que detinha um poder de vida e morte sobre sua família — concedia à sua esposa o Morgengabe (bens que destinava à mulher caso falecesse antes dela), reconhecendo-a como dona da casa. Cabia à essa mulher germânica exprimir a consciência do grupo (Familiensinn), pois representava o papel principal na manutenção da paz clânica (CUVILLIER, 1997: 33).

No entanto, a relação entre essas estirpes foi sempre bastante conturbada, pois sabemos que a sociedade germânica era profundamente marcada por vinganças privadas (fehde), uma decorrência das teias de reciprocidade social. Essas rixas marcaram indelevelmente as sociedades medievais européias e sua existência se prolongou por toda a Idade Média. A vingança podia ser realizada se um dos membros da estirpe fosse morto, ferido ou maltratado, e ela poderia ser proporcional ou até maior que o prejuízo sofrido. Ela tornava-se um dever, mais que um direito, pela manutenção da honra tribal. A estirpe que estivesse ressentida poderia preceder do direito à vingança física mediante o pagamento do wehrgeld, espécie de compensação pecuniária que variava de acordo com a grandeza do ato infligido (PREVITÉ-ORTON, 1967: 193).

As reuniões dos homens livres determinavam as questões ligadas aos litígios e às decisões decorrentes, além de fixarem as normas do direito consuetudinário, um outro traço comum a todos os reinos germânicos ocidentais. Tal tradição perdurou mais tarde sob a forma de tribunais locais de justiça. A instituição do comitatus — comitiva composta por um grupo armado (GasindiGefolge) com o objetivo de proteger, na paz ou na guerra, o rei ou o chefe da tribo — era outra forma de proteção social mútua, pois fixava as solidariedades e a camaradagem do bando. Essa tradição germânica se mesclou com o costume romano do Baixo Império Romano de uma guarda pessoal de homens poderosos (bucelari).

Ao mesmo tempo em que forneciam uma força bélica, essas comitivas criavam um ambiente de segurança recíproca numa clara relação de interdependência de seus membros. E mais ainda: o Gefolgeera a própria estrutura do poder, pois tanto a consagração dos chefes como guerreiros quanto os vínculos de solidariedade foram-se fixando lentamente a partir dessa comitiva armada. Homens livres, jovens em busca de aventuras e riquezas se uniam a um senhor através de um laço de fidelidade e conservando sua liberdade.

Estes séquitos militares tiveram um grande papel entre os germanos, pois aceleraram o processo de hierarquização social, consolidando uma verdadeira nobreza guerreira. Mais tarde, o corpo de idéias nascidas desse grupo transferir-se-ia para as instituições feudo-vassálicas, além da própria realeza medieval (MATTOSO, s/d: 346): muitas realezas tiveram origem nesses grupos armados, pois o rei era eleito entre os melhores guerreiros (Heerkönig).

Ao estabelecerem-se nas terras do Império, os invasores não tornavam-se meros camponeses. Especialmente godos, burgúndios, vândalos e francos transformaram-se em grandes senhores de novos reinos, fortalecendo seu poder nas terras conquistadas.

O fato de a maior parte dos povos germânicos pertencer ao arianismo foi, decerto, um fator de desagregação com os romanos — o arianismo pregava que o Logos (a palavra de Deus que em Jesus se fizera carne) não era o próprio Deus, “mas uma criatura infinitamente superior aos anjos, embora como eles criada do nada antes do começo do mundo (DUFFY, 1998: 22). Essa idéia divulgada pelo bispo Ario (256-336) foi considerada herética no Concílio de Nicéia (325) (FRÖHLICH, 1987: 31). Tal diferença religiosa inibiu durante um certo tempo os casamentos inter-étnicos, além de causar grande desconfiança mútua e inimizades (DUBY, 1974: 21).

Certas práticas do Império tiveram continuidade, mesmo que de forma precária, nos novos reinos germânicos. O sistema e os métodos agrícolas mantiveram suas características gerais, com grandes e pequenas terras; colonos, tanto livres quanto servos, tinham seus direitos e deveres numa economia natural quase fechada, com o declínio do uso do dinheiro e do comércio. Os saxões praticavam uma agricultura sedentária em planícies úmidas, com criação de gado, além de cavalos. O usufruto dos bosques, dos campos e das águas era coletivo - tradição mantida mais tarde em alguns territórios tribais do Kent, do Sussex e do Wessex (CUVILLIER, 1997: 38).

Seu artesanato era medíocre, mas chegaram a realizar verdadeiras obras-primas na metalurgia (MUSSET, 1967: 12), como pôde ser visto no enterro real de Sutton Hoo, naquele que foi o reino de East Anglia (em Suffolk): um barco sem vela com um tesouro (moedas, harpa, armas, cornos de beber).

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Restauração de um elmo cerimonial anglo-saxão do século VII, encontrado em 1939 em Rendlesham (Suffolk, Reino Unido), no provável funeral do rei anglo Raedwald (c. 599-625), convertido ao cristianismo pelos missionários de Kent, mas que continuou a praticar os rituais pagãos. O túmulo do rei foi um navio de 25 metros de comprimento, com todo o equipamento de guerra real, além de pratos de prata, chifres, copos e taças. O elmo é de placas rebitadas, e foi ricamente decorado com cenas de batalha e da vida cotidiana. The British Museum.

O rei germânico herdou as prerrogativas imperiais, assim como as terras do reino. A administração civil romana sobreviveu, embora de forma simplificada. O direito romano continuou a reger a vida dos “romanos” e, ao longo do tempo, influenciou a elaboração dos códigos bárbaros. A literatura romana foi conservada especialmente pelo clero, embora houvesse literatos laicos na Itália e na Espanha. A Igreja Católica teve um papel significativo na preservação dos elementos da civilização romana e cristã, numa constante luta contra os ideais bárbaros de violência e paixão.

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Adorno de um escudo encontrado em sepultamento anglo-saxão do século VII em Sutton Hoo (Suffolk). InThe Sutton Hoo Room.

II. A invasão da Bretanha

A Inglaterra foi a região menos romanizada da Europa durante a existência do Império Romano. Após a conquista de César (55 a.C.) — que chamou toda a população de britanni por achá-los semelhantes a uma tribo gaulesa — e a invasão de Cláudio (43 d.C.), os romanos dividiram a ilha em duas províncias, subdivididas em quatro no século IV (Camulodunum [Colchester], Lindum [Lincoln], Eboracum [York] e Glevum [Gloucester]), e treze cidades-estado, todas próximas da fronteira com as tribos celtas.

Provavelmente os bretões eram um povo proveniente da fusão dos iberos — uma cultura megalítica pré-céltica — e os celtas (MELEIRO, 1994: 55). Segundo Tácito (n.56/57 d.C.), a aparência destes nativos era

...diferente nos diversos povos (...) as cabeleiras ruivas e a corpulência dos que povoam a Caledônia asseguram que são de origem germânica. A cor do rosto dos siluros, seu pêlo ondulado e sua situação (geográfica) em frente à Hispânia fazem crer que foram os antigos iberos que passaram para ali e ocuparam aquela região.” (TÁCITO, 1946: XI, 979)

Os romanos construíram estradas e cidades na ilha. A aristocracia romana era detentora de grande propriedades, nas quais fundavam vilas; os imperadores mantinham vastas terras nas Midlands e no posterior reino da Ânglia do leste (NICHOLAS, 1999: 83). Estes latifúndios prosperaram à custa dos pequenos agricultores locais. Parece que muitos deles apoiaram os invasores anglo-saxões contra os proprietários de terras romanos (Cambridge Ancient History, 1924: vol. XII, 287).

De qualquer modo, uma “cultura romana” floresceu neste período. Muitas casas romanas, construídas com tijolos, dispunham de aquecimento central e várias tinham janelas com vidraças, sempre rodeadas por um vasto jardim. Muitas aldeias foram construídas em volta dessas grandes propriedades (GRIMAL, 1993: 272). Tácito nos conta que Agrícola, governador da Bretanha (78-84 d.C.) e seu sogro, incitaram os habitantes, “homens rudes e dispersos”, a

...levantar templos, praças e casas, instruindo nas artes liberais os filhos das principais famílias, colocando o talento dos bretões à frente dos galos (...) Desde então, começaram a ufanar-se de levar nossos vestidos, fazendo o uso da toga freqüente, e pouco a pouco foram se desviando até o vício, os pórticos, os banhos e a ostentação nos banquetes, chamando os instruídos de cultura, sendo parte da escravidão” (TÁCITO, 1946: XXI, 988-989).

O principal comércio na região era o da tecelagem, exportado para o continente. Assim, poucas legiões romanas bastavam para manter a segurança na ilha (ALCOCK, 1971).

Esse estado de coisas mudaria a partir do final do século II, quando a pirataria céltica aumentou em toda a costa leste, o que obrigou os romanos, em parceria com um conde saxão, a estabelecerem uma linha de fortificações entre a ilha de Wight e a de Wash — desde Diocleciano, o poder na Bretanha foi dividido entre três homens: um governador civil, um Dux britanniarum (espécie de comandante-chefe) e um Comes littoris saxonici, um conde da costa saxônia que dependia do prefeito das Gálias, e não do governador da Bretanha. Essa organização foi relativamente eficaz no combate às invasões de pictos e escotos durante a primeira metade do século IV.

Somente a partir da segunda metade do século IV o poder romano viu-se seriamente ameaçado. Em 367, pictos (da atual Escócia) e escotos (Irlanda) — ambos de origem céltica — e piratas saxões planejaram um ataque, repelido por tropas gaulesas e bretãs. A pressão fazia-se sentir: Magno Máximo (383-388), comandante do exército e conde da Bretanha, revoltou-se em 383, levando para o continente, para fins pessoais, a maior parte das tropas — foi morto em Aquiléia (FERRIL, 1989: 63-64).

Até 410, com o usurpador Constantino (407-411), as legiões praticamente desapareceram da região. A arqueologia nos mostra que a partir de 402 houve uma interrupção da importação de moedas: provavelmente isso significa que as tropas acantonadas na ilha deixaram de receber seu pagamento. Assim, em 408 formou-se uma milícia de cidadãos romano-bretões para resistir às invasões. É possível que os líderes romano-bretões tenham contratado mercenários para auxiliá-los na defesa. De qualquer modo, o que restou do domínio romano foi uma “aristocracia bretã romanizada” (OLIVEIRA, 1988: 79), que enviava regularmente pedidos de auxílio à corte imperial em Ravena. Essas súplicas mostram o grau de desespero dos bretões face às invasões de pictos, escotos e saxões. Gildas descreve com grandes metáforas os pedidos de socorro dos bretões:

...Os bretões, impacientes pelos ataques dos escotos e pictos, suas hostilidades e maldosas opressões, mandaram embaixadores a Roma com cartas, suplicando em lamentáveis termos a assistência de um bando armado para protegê-los, e oferecendo lealdade e pronta submissão para as autoridades de Roma se eles apenas pudessem expulsar os invasores (...). 

...E novamente, eles mandaram embaixadores suplicantes, com suas roupas rendadas e cabeças cobertas com cinzas, implorando a assistência dos romanos e, como tímidas galinhas, amontoando-se sobre a proteção das asas de seus pais. Eles disseram que seu infeliz país não devia ser de todo destruído, pois o nome romano, que agora era somente um som vazio para encher os ouvidos, poderia não tornar-se uma repreensão até para as distantes nações. 

Após isso, os romanos, movidos pela compaixão tanto quanto a natureza humana pode ser movida, após os relatos de tais horrores mandaram, como águias em vôo, seus inesperados bandos de cavalaria por terra e marinheiros pelo mar, e, colocando suas terríveis espadas sobre os ombros de seus inimigos, cortaram-nos como folhas que caem no período propício; e como uma avalanche de montanha levaram-nos com numerosas correntes, e destruindo suas margens com barulho de rugido, com a crista espumando e espumantes ondas crescendo às estrelas — por aquelas correntes circulares nossos olhos estavam como que ofuscados — fizeram uma de suas ondas superar todos os obstáculos em seu caminho, como fizeram nossos ilustres defensores que vigorosamente levaram nossos bandos de inimigos além do mar, se algum pudesse escapar deles. Pois isso estava além daqueles mesmos mares que eles transportaram, ano após ano, a pilhagem que eles haviam ganho, sem que ninguém ousasse resistir a eles (GILDAS, II. 15,17).

Em outra importante passagem, Gildas mostra o desespero dos bretões e a cartas a Aetius — comandante romano (430-432 e 433-454 d.C.) durante a maior parte do reinado de Valentiniano III (imperador do Império do Ocidente, 425-455 d.C.):

Novamente, portanto, o infeliz povo remanescente mandou a Aetius, um poderoso cidadão romano, o seguinte recado: “— Para Aetius, agora cônsul pela terceira vez: o gemido dos bretões.” E novamente um pouco depois, desta maneira: “— Os bárbaros nos jogaram para o mar, o mar nos jogou de volta para os bárbaros: desta maneira dois modos de morrer nos esperam, nós seremos mortos ou afogados.” Os romanos, no entanto, não puderam assisti-los, e, neste meio tempo, o confuso povo, vagando pelas florestas, começou a sentir os efeitos da fome severa que compeliu muitos deles sem demora a renderem-se para seus cruéis perseguidores para obter subsistência. Outros deles, entretanto, ficaram escondidos em montanhas, cavernas e florestas, e continuamente saíam de lá em jornadas para renovar a guerra. (GILDAS, II.20)

Esse trecho mostra um pedido bretão que não pôde ser atendido pelos romanos, pois estes se retiraram definitivamente da ilha provavelmente por volta de 446 para defenderem suas terras dos ataques de Átila, rei dos hunos (434-453). Na passagem acima também fica claro o comportamento dos bretões face às invasões. Se dermos crédito às palavras de Gildas, os bretões que não se entregaram refugiaram-se nas florestas e montanhas, sem estabelecerem uma resistência eficaz. Aqueles que se entregaram passaram a viver submissos aos invasores. Assim, até meados de 450 a vida urbana foi sendo abandonada, embora com diferenças que variavam de acordo com a região.

De qualquer modo, a arqueologia nos mostra que antes de 430 cessara a produção em grande escala de cerâmica. Os ecos desses acontecimentos reverberaram por muito tempo na memória daqueles povos. A Crônica Anglo-Saxã, escrita mais de quatrocentos anos depois, em vernáculo, durante o reinado de Alfredo, o Grande (871-899, n. 849), rei de Wessex, também comenta estas súplicas:

443 d.C. — Neste ano os bretões enviaram através do mar até Roma, uma súplica de assistência contra os pictos, mas eles não obtiveram nada, pois os romanos estavam em guerra com Átila, rei dos hunos. Então eles enviaram aos anglos e requisitaram a mesma coisa aos nobres daquela nação (The Anglo-Saxon Chronicle. Part 1: A.D. 1 – 748. Online Medieval and Classical Library Release) (a tradução é nossa)

Assim, as invasões na Bretanha foram realizadas por três ramos das tribos germânicas, com dialetos estreitamente similares. Os anglos, provenientes do atual Slesvig, dominaram as áreas próximas ao Tâmisa (Nortúmbria, Mércia e Ânglia do Leste) (PREVITÉ-ORTON, 1967: 244); os saxões, que compunham o grupo dos germanos do mar, na divisão lingüística de Musset (germanos das estepes – godos e seus vizinhos; germanos dos bosques – a maior parte dos da atual Alemanha; e germanos do mar – saxões, frísios e dinamarqueses) (MUSSET, 1967: 11) provenientes da antiga Saxônia, do Elba e do Weser, dominaram a maior parte do sul da Inglaterra (Essex, Wessex, Sussex e Midlessex, respectivamente saxões do Leste, do Oeste, do Sul e do Centro) (ver mapa 1).

Por fim, os jutos, pequena tribo provavelmente originária da Jutlândia, no norte da Dinamarca, da Frísia e do baixo Reno (McEVEDY, 1979: 24) conquistaram o Kent, a ilha de Wight e a região do Hampshire (em torno do estuário do Solent).

Desses três grupos os jutos são os mais enigmáticos. Segundo a arqueologia, o mobiliário funerário de Kent possui características semelhantes à mobília funerária das regiões francas do Reno inferior (MUSSET, 1967: vol. 1, 97), mas também tem-se notícia que os jutos haviam se estabelecido temporariamente junto aos francos e frísios (PREVITÉ-ORTON, 1967: 244).

Segundo os escassos documentos da época confrontados com vários dados arqueológicos, essas tribos não migraram em um movimento coletivo, unificado. Já antes de 410 haviam germanos na Bretanha, pois foram encontrados túmulos no vale do Tâmisa aparentemente de guerreiros frísios e saxões. Provavelmente as invasões foram atos isolados de chefes com seus comitatus (PREVITÉ-ORTON, 1967: 251). Os primeiros saxões a se fixarem na Bretanha eram foederati, mercenários e não conquistadores. Ou seja, eles haviam sido contratados pelos próprios bretões para defender certas regiões da Bretanha. Então, com alguns grupos já estabelecidos, eles começaram uma série de incursões, com o objetivo inicial da rapina (MUSSET, 1967: vol. 1, 99). Em alguns casos, os grupos de invasores eram formados por membros mistos de tribos distintas, entre os anglos, os saxões e os jutos.

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Tipo de embarcação utilizada pelos primeiros invasores anglo-saxõeshttp://www.angelcynn.org.uk © Ben Levick 1997-2001. Photos copyright © Angelcynn 1997-2001. Webgraphics, design and programming copyright © Nicole Kipar 2000, 2001.

A figura acima é uma caracterização do tipo de embarcação utilizada por aqueles primeiros imigrantes — por volta de 450 a arqueologia comprova uma elevação do nível do mar, fato que pode ter incentivado a migração, já que algumas aldeias costeiras devem ter sido abandonadas.

Como rotas para a invasão foram usados principalmente três estuários: o do Tâmisa, do Wash e do Humber (PREVITÉ-ORTON, 1967: 251) — ver mapa 1. Pelo Tâmisa deu-se a invasão ligada ao nome do herói juto Hengst (ou Hengist), que teria sido convidado pelo chefe bretão Vortigern para auxiliar os bretões a expulsar uma invasão de pictos e escotos. Este monarca lendário, usurpador do trono teria reinado entre 425 e 450 (ZIERER, 2000) Gildas descreve esse convite em sua obra, e considera Vortigern um tirano, um traidor dos bretões:

Então, todos os conselheiros, juntos com aquele orgulhoso tirano Vortigern, o rei bretão, estavam tão cegos, que, como uma proteção ao seu país selaram seus destinos, convidando para (estar) entre eles (como lobos no rebanho de ovelhas), os ferozes e impiedosos saxões, uma raça cheia de ódio para ambos, Deus e homem, para repelir as invasões das nações do norte. Nunca nada foi tão pernicioso ao nosso país, nada foi mais infeliz. Que palpável escuridão deve ter envolvido suas mentes — escuridão desesperada e cruel! 

Aquelas mesmas pessoas que, quando ausentes, temeram mais que a própria morte, foram convidadas a residir, como alguém pode dizer, sobre o próprio teto. Tolos são os príncipes, como é dito de Thafneos, dando conselho ao ignorante faraó. Uma multidão de filhotes de leão veio do covil dessa bárbara leoa, em três cyuls, como eles os chamam, que são navios de guerra, com suas velas infladas pelo vento, e com presságios e profecias favoráveis, pois isso foi profetizado por um adivinho entre eles, que deveriam ocupar o país para o qual eles estavam velejando trezentos anos, e metade daquele tempo, cento e cinqüenta anos, deveriam pilhar e roubar o mesmo. 

Eles desembarcaram primeiro no lado leste da ilha, pelo convite do infeliz rei, e lá fixaram suas afiadas garras, aparentemente para lutar a favor da ilha, que tristeza! Mas certamente contra ela. Sua terra-mãe, vendo sua primeira prole tendo êxito, mandou para lá uma maior companhia de suas famintas proles, as quais velejando, juntaram-se aos seus bastardos camaradas. Daquele tempo, o germe da iniqüidade e a raiz da contenda plantou o veneno entre nós, como merecemos, e atirou diretamente nas folhas e ramos. 

Os bárbaros (saxões), sendo dessa maneira introduzidos como soldados na ilha, para encontrar, como eles falsamente disseram, algum perigo em defesa de seus hospitaleiros anfitriões (bretões), obtiveram um subsídio para provisões, as quais, sendo abundantemente oferecidas por algum tempo, pararam suas bocas caninas. Ainda, eles queixaram-se que seus suprimentos mensais não eram fornecidos em suficiente abundância, e eles aplicadamente agravaram cada ocasião de discussão, dizendo que ao menos que mais generosidade fosse mostrada a eles, eles iriam quebrar o tratado e pilhar toda a ilha. Em pouco tempo, eles seguiram suas ameaças como haviam dito (GILDAS, II.23).

Por sua vez, Beda, o Venerável (672-735), nos conta, em sua História Eclesiástica das Gentes dos Anglos, que tal invasão ocorreu no ano 449, e ele conta novamente o desenrolar da chegada de anglos, jutos e saxões, mas já com uma visão retrospectiva, pois haviam passado mais de duzentos anos desde o acontecimento:

No ano 449 da Encarnação de Nosso Senhor, Marciano e Valentiniano, tendo obtido o reino como quadragésimos sextos sucessores de Augusto, o possuíram por sete anos. Neste tempo, as gentes dos anglos ou dos saxões, tendo sido convidadas pelo já mencionado rei (Vortigern) para virem à Bretanha com três longos barcos, e, pelo comando do mesmo rei, ao chegarem, receberam a terra na parte leste da ilha para defendê-la como amigos, mas na realidade, como se provou depois, tinham em mente conquistá-la como inimigos. Depois de iniciar a luta contra os inimigos que vinham do Norte, os saxões tiveram a vitória. Anunciado isso em suas casas, assim como a fertilidade da ilha e a covardia dos bretões, os saxões enviaram rapidamente como reforço uma frota maior com um grupo mais forte de homens armados que, junto aos precedentes, formaram um exército mais forte que os bretões eram capazes de enfrentar.

Então, aqueles que chegaram tiveram a permissão dos bretões para morar entre eles, com a condição que lutariam pela paz e segurança do país contra seus adversários, e que os outros pagariam a eles um salário justo pelo ato de guerrear. Vieram então gentes das três tribos mais valorosas da Germânia, isto é, os saxões, os anglos e os jutos. Dos jutos vieram os cantuários e os vituários, ou seja, os povos que possuem a ilha de Wight e o povo chamado até hoje de jutos na província dos saxões ocidentais (Wessex). Dos saxões, quer dizer, da região que é chamada hoje Velha Saxônia (Holstein) vieram os saxões orientais, os saxões meridionais e os saxões orientais (Essex, Sussex e Wessex).

Dos anglos, quer dizer, da pátria que se denomina Angeln (Sleswig), e que desde então até hoje permanece um deserto — entre as províncias dos jutos e dos saxões — descendem os anglos orientais (East Anglia), os anglos mediterrâneos (South Anglia e Uppland), os mercianos e toda a progenitura dos nortúmbrios, isto é, as gentes que habitam o norte do rio Humber e todos os outros povos dos anglos. (BEDE,Historia Ecclesiastica Gentis Anglorum, XV: 69-71) 
(a tradução é nossa. Obs.: o que se encontra em parênteses não faz parte do texto original).

Assim, a divisão básica dos povos e seus respectivos estabelecimentos provém de Beda — embora não saibamos suas fontes, sua História Eclesiástica das Gentes dos Anglos, juntamente com A Destruição Britânica e sua Conquista de Gildas e a Crônica Anglo-Saxã do tempo do rei Alfredo são os únicos registros escritos que chegaram até nós.

Por fim, Hengst e Aesc (seu filho, ou neto) estabeleceram o reino juto do Kent, nome da tribo britânica Cantii. Os saxões também utilizaram o Tâmisa para invadir as regiões que mais tarde tornaram-se Midlessex e Essex. Os anglos utilizaram o rio Wash para atingir as Midlands do Leste. Vimos com Beda que, pelo Humber, os anglos expandiram-se pelo East Riding de Yorkshire (PREVITÉ-ORTON, 1967: 251). Para ressaltar o caráter épico da conquista, a Crônica Anglo-Saxã também destaca a origem divina dos invasores. Hengist e Horsa seriam descendentes em linha direta de Odin (Woden), sua quinta geração:

A.D. 449. Neste ano Marciano e Valentiniano assumiram o Império e reinaram por sete invernos. Nestes dias Hengist e Horsa, convidados por Wurtgern, rei dos bretões, para assisti-lo, aportaram na Bretanha em um lugar chamado Ipwinesfleet, inicialmente para ajudar os bretões, mas depois disso, lutaram contra eles. O rei os comandou para lutar contra os pictos, e eles fizeram e obtiveram a vitória em todos os lugares que foram. Eles então foram até os anglos e solicitaram mais ajuda. Eles descreveram a inutilidade dos bretões e as riquezas da terra. Então eles enviaram um apoio maior.

Então vieram os homens dos três poderes da Germânia: os antigos saxões, os anglos e os jutos. Dos jutos descendem os homens do Kent e da Ilha de Wight e aquela linhagem de Wessex que os homens ainda chamam de jutos. Dos antigos saxões vieram o povo de Essex, Sussex e Wessex. Da Ânglia, os quais desde sempre permaneceram perdidos entre os jutos e os saxões, vieram os anglos do leste, os anglos do centro, os da Mércia e todos aqueles do norte do Humber. Seus líderes eram dois irmãos, Hengist and Horsa, que eram filhos de Victgilsi; Victigilsi era filho de Witta, Witta de Wecta, Wecta de Odin. De Odin surgiu toda a linhagem real e todos aqueles ao sul do Humber (The Anglo-Saxon Chronicle. Part 1: A.D. 1 – 748. Online Medieval and Classical Library Release) (a tradução é nossa)

A linhagem de Hengist e Horsa remontando a Odin é confirmada por Beda, que, no entanto não destaca a divindade de Odin, apenas cita seu nome (BEDE, Historia Ecclesiastica Gentis Anglorum, XV: 73). De qualquer forma, os primeiros quarenta anos do século V viram os bretões romanizados entregues à própria sorte pelo Império Romano. Nesta nova conjuntura, anglos e saxões foram o principal instrumento da destruição da Inglaterra romana.

Durante os séculos V e VI, a ilha provavelmente foi um caos de tribos e reinos em constante pé de guerra, pois assistiu a uma segunda fase de conquista. Bretões e celtas provavelmente não aceitaram a ocupação anglo-saxã. Parte dos bretões migrou para a Armórica, no continente, que passou a chamar-se Bretanha (norte da França). Os que permaneceram na ilha fugiram para o norte, para as montanhas do País de Gales, Cornualha, Escócia e Irlanda. Sua cultura praticamente retornou ao “barbarismo céltico” (TREVELYAN, s/d: 38). No final do século V, a urbanização, a língua latina e o cristianismo estavam em franco declínio com a instalação dos saxões (FERRIL, 1989: 104-105).

Gildas nos conta, em sua Destruição Britânica e sua Conquista, que um grande ataque federado saxão teria ocorrido no século V, e que teria arruinado de vez as cidades romanas e devastado toda a região. Tal invasão é associada ao nome do saxão Aelle, senhor das terras ao sul do Humber, que Beda considera o primeiro Bretwalda (soberano da Inglaterra). O mesmo Aelle é atribuído como senhor do Sussex (centro-sul), onde fundou um reino entre o bosque deserto da Anderida e o mar, entre os anos de 477 e 491 (PREVITÉ-ORTON, 1967:251).

Nessa luta contra os invasores, os bretões encontram um chefe originário da antiga população romanizada, Aurelius Ambrosius (BOWDER, s/d: 25). Ele teria estabelecido uma brava resistência, que culminou com a famosa batalha no Monte Badon, por volta do ano 500. Tal batalha foi vencida pelo semi-lendário Artur (Artorius) contra a hoste saxã. Gildas descreve Aurelius como o vencedor da batalha do Monte Badon, sem sequer mencionar Artur. Já Nennius, em sua obra História dos Bretões (c. 800), o apresenta como o principal herói do combate por ser um dux bellorum (chefe guerreiro) cristão (ZIERER, 2000).

Artur teria vencido sozinho novecentos e sessenta homens. Na narrativa posterior escrita pelo monge Nennius há o acréscimo da imagem da Virgem Maria, sendo carregada sobre os ombros do Artur: “A décima segunda batalha foi no Monte Badon no qual caíram em um dia novecentos e sessenta homens de uma investida de Artur e ninguém os golpeou exceto o próprio Artur, e em todas as batalhas ele saiu como vencedor” (NENNIUS, História dos Bretões, cap. 56).

Após tal luta teriam transcorrido quarenta e quatro anos de relativa paz. Durante esse período os bretões dividiram-se em cinco ou mais reinos tribais na região ocidental. Enquanto isso os reinos e a instabilidade aumentavam entre os anglo-saxões no Leste. Por sua vez, os jutos, a partir de Kent, tomaram a ilha de Wight (PREVITÉ-ORTON, 1967: 252).

III. As novas estruturas sociais

Dos cinco reis bretões nomeados por Gildas, o mais poderoso era Maelgwyn (Maglocune) de Gwynedd. Gildas se refere a esses chefes como tiranos, pois, segundo os padrões romanos, a autoridade deles não tinha legitimidade. Esses reinos de resistência bretã estavam localizados na Dummonia (Devon e Cornualha) e Wales (País de Gales), além de Strathclyde e o reino bretão independente de Elmet, ambos no norte (LEVICK, Internet).

Com a morte de Maelgwyn, ficou aberto o caminho que os anglo-saxões esperavam para sua invasão. O chefe anglo Ida iniciou o seu ataque contra os galeses (welsh), bretões que refugiavam-se onde atualmente localiza-se o País de Gales. Após diversos ataques até 592 o ocidente da ilha foi praticamente tomado pelos invasores. O norte também foi dominado em fins do século VI e início do VII, e formou-se o reino da Nortúmbria (PREVITÉ-ORTON, 1967: 252).

Como a Bretanha foi a região menos romanizada durante o período do Império, a forma de dominação diferiu em alguns pontos essenciais da ocorrida no continente. Os invasores conservaram e impuseram sua própria língua; mantiveram as instituições bárbaras e o direito consuetudinário, sem influência do direito romano; estabeleceram seus próprios métodos de cultivo. Eles eram pagãos e, diferentemente dos francos, não adotaram o cristianismo. Assim, estavam livres de qualquer influência da cultura latina (PREVITÉ-ORTON, 1967: 253).

A conservação de sua própria língua caminhou paralelamente com a toponímia. Os nomes foram praticamente renovados, com exceção de alguns rios e de acidentes geográficos mais genéricos. Durante essa dominação, a débil classe bretã romanizada caiu quase completamente. Os camponeses escravizados do Leste eram pouco mais civilizados que seus novos senhores e pouco contribuíram para a formação dessa nova cultura.

A estrutura da Sippe foi alterada pois, com exceção de Kent, onde foi possível manter algumas das condições sócio-culturais originais dos germanos, os invasores se estabeleceram em pequenos grupos, governados em conjunto por aristocratas tribais. Acima do escravo havia o eorl (nobre), e o ceorl (homem livre). No Kent haviam também os laets, provavelmente remanescentes da população bretã. No Wessex, os galeses livres também ocupavam um lugar específico na sociedade.

Os povoados organizavam-se em regiões, ou reinos. Em Kent, o reino era uma divisão administrativa, com a possessão real no centro. A tribo era governada por um rei, geralmente considerado descendente de Woden (Odin). Tais realezas eram formadas pelos chefes das guerras de conquista. Ao redor dos reis, reuniam-se a assembléia de homens notáveis, que o auxiliavam na administração e na justiça. Também devia haver em cada reino uma assembléia central. Mas a presença de assembléias não os fazia democráticos, em um sentido moderno. As guerras privadas, o peso das linhagens, o homem “bem nascido”, todos estes fatores diferenciavam-nos como tipicamente bárbaros.

Os elementos de mescla cultural entre as populações aconteceram mais no campo do artesanato e, em alguns casos, na produção de gêneros agrícolas. Os anglos e os saxões trouxeram consigo o costume de cremar os mortos. Já os jutos praticavam o sepultamento, tal como os romanos. Eles trouxeram consigo também seus deuses do panteão nórdico. Odin, Thor, e Tyr encontram-se ainda na toponímina ao sul do Humber. Os nomes dos dias da semana também sofreram clara influência da cultura germânica (PREVITÉ-ORTON, 1967: 254-255). Por exemplo, a quarta-feira (Wednesday, em inglês) deriva o seu nome do Deus Odin ou Wotan, a quinta-feira (Thursday) do Deus Thor e a terça (Tuesday) do Deus Tyr.

IV. A cristianização da Inglaterra

O estabelecimento do cristianismo durante o período romano na antiga Bretanha deu-se especialmente entre os bretões, pois eram romanizados e foram cristianizados a partir do momento em que o Império adotou a religião cristã. Os escotos da Irlanda também foram cristianizados a partir das incursões e do estabelecimento do bretão São Patrício (c. 385-461), segundo a Crônica Anglo-Saxã, enviado pelo papa Celestino I (422-432) em 430 para “pregar o batismo entre os escotos”.

Outro santo importante foi São Germano (378-448), mencionado por Nennius na História dos Bretões. Ele esteve duas vezes na Bretanha no século V, tentando extirpar o pelagianismo, uma heresia que afirmava não serem os humanos culpados pelo pecado de Adão, visto pelo santo como uma falta individual. Nennius afirma que São Germano põe em relevo os pecados de Vortigern, como o fato de ter se casado com a filha do chefe saxão e de mais tarde unir-se à própria filha, tendo dela um filho, fatos estes que justificariam a dominação chefiada pelos saxões que veio a seguir (ZIERER, 2000).

Com a invasão de anglos, saxões e jutos, o panorama da cristianização da ilha se modificou. Os saxões permaneceram intocados pelo cristianismo; sob a influência dos anglos, pictos e galeses retornaram ao paganismo. Com a saída dos romanos vários outros povos reviveram suas antigas tradições, mantidas por costumes e pela tradição oral (JONES e PENNICK, 1999: 157). Os galeses passaram a viver sob a dominação de reis tribais, e a população sob o regime de clãs e estirpes, com o poder fragmentado entre vários reinos.

As igrejas bretã e irlandesa encontravam-se isoladas. Nelas, o papa Gregório (590-604) não exercia qualquer influência. Assim desenvolveu-se uma “microcristandade”, com instituições e estilos próprios, diferindo bastante do continente (BROWN, 1997: 188-201; DUFFY, 1998: 57). A instituição do bispado não era tão importante. Os grandes mosteiros funcionavam mais como centros religiosos, e eram governados por abades em um estilo tribal. Os seus monges fervorosos, de um ascetismo mais rigoroso, tal como Gildas e seus colegas mais famosos Patrício e Columba (528-614), representavam a força da Igreja cristã nas ilhas (PREVITÉ-ORTON, 1967: 256), sendo praticamente os únicos centros de vida intelectual (HEERS, 1991: 32).

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Reconstituição de um mosteiro irlandês
In: CAHILL, Thomas. How the Irish saved civilization. New York: Doubleday, 1995, p. 156.

No entanto, a maior parte da ilha encontrava-se praticamente pagã. Celestino I enviara um bispo chamado Paládio para uma missão junto aos irlandeses, mas com poucos resultados práticos. A conversão da Irlanda — início do processo de conversão da ilha — foi obra do papa Gregório.

A lenda é bem conhecida. Ainda diácono, Gregório parece ter visto belos e louros rapazes anglo-saxões num mercado de escravos em Roma. Gregório viu neles os anjos de Deus, e foi tomado do desejo de converter a ilha. Assim, em 597 ordenou que quarenta monges romanos, liderados por Agostinho, prefeito do mosteiro de Santo André, fossem para a ilha com a missão de evangelizá-la. Beda nos conta: “Agostinho, portanto, sendo muito encorajado com o conforto do abençoado pai Gregório, retornou ao trabalho da palavra com os servos de Cristo que estavam com ele e foi para a Bretanha” (BEDE, Historia Ecclesiastica Gentis Anglorum, XXV: 107-109). O pretexto fora o casamento do rei de Kent, Ethelberto, com Bertha, cristã e filha do rei de Paris. Gregório se referia à Inglaterra como “o fim do universo” (DUFFY, 1998: 56).

Ao chegar à ilha, Agostinho se deparou com uma terra totalmente germânica, governada por reis saxões que remontavam a Odin. Não eram urbanos, viviam em vilas fortificadas e aldeias, falavam anglo-saxão ao invés de celta ou latim e seguiam as leis germânicas, muito semelhantes às descritas por Tácito, quinhentos anos antes (JONES e PENNICK, 1999: 157). Para se ter uma idéia da força dos rituais pagãos, segundo Gildas, quando o rei Ethelberto de Kent recebeu este primeiro grupo de sacerdotes cristãos em 597, exigiu que o encontro fosse ao ar livre, para que o vento dissipasse os encantamentos que pudessem tentar lhe lançar com sua “magia estrangeira” (citado por LACEY E DANZINGER, 1999: 27).

Assim, no final do século VI a Inglaterra era uma região pagã, com pequenos núcleos de cristianização, como a Irlanda. No ano 600, em uma carta endereçada ao abade Melito, o papa Gregório ainda aconselhava a melhor forma de se converter os bretões:

Agora que o Deus Todo-Poderoso vos conduziu até o nosso venerável irmão, o bispo Agostinho, transmiti-lhe o que, depois de longa reflexão, eu decidi a respeito dos Bretões. 

Os templos que este povo consagrou aos deuses não devem ser destruídos; destruir-se-ão apenas as imagens dos deuses que neles se acham. 

Que se benza a água, que se faça aspersão com ela no interior dos templos, que se levantem altares e neles se ponham relíquias. Porque quando estes templos são construídos solidamente, é preciso subtraí-los ao culto dos demônios e consagrá-los ao culto do Deus verdadeiro. 

Quando virem que seus templos não foram destruídos, este povo arrancará o erro de seu coração para reconhecer e adorar o Deus verdadeiro e ele se reunirá mais facilmente em lugares que lhe são familiares. 

De outro lado, os bretões têm o costume de sacrificar muitos animais a seus demônios (os ídolos). Deve-se transformar este costume em festa religiosa. Nestes lugares, no dia da dedicação da igreja ou das festas dos mártires, far-se-á a exposição das relíquias dos santos mártires; ao redor dos templos transformados em igrejas, erigir-se-ão abrigos feitos de ramos de árvores e solenizar-se-á a festa com uma refeição sagrada. Assim não sacrificarão mais animais ao Diabo, mas para alimentar-se e para o louvor de Deus (...) 

Não há dúvida de que é impossível extirpar imediatamente entre seres pouco civilizados, os costumes tradicionais: aquele que quer alcançar um cume elevado, não chega lá senão por etapas, passo a passo, não fazendo saltos (...) 

Tudo isso tu deves comunicá-lo ao nosso irmão, para que ele possa assim refletir sobre sua maneira de agir (...) 

Dado aos 15 de junho, sob o governo de nosso soberano Maurício Tibério, no 19.° ano do seu reinado e no 18° ano do seu consulado, na 4.ª, indicção (citado em FRÖHLICH, 1987: 52)

Bretões sacrificando animais ainda no ano 600! Apesar disso, no tempo de Gildas, sessenta anos antes da redação dessa carta, eles eram os únicos remanescentes do pouco que restou da cultura latina romana — e o papa os considerava “poucos civilizados”. De qualquer modo, como eram a origem social e étnica de nosso autor, isso que explica em boa parte suas lamentações a respeito da degradação de seu tempo.

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