Direito de resposta concedido ao Prof. Dr. Ricardo da Costa pela Revista NECULT

 

crítica da crítica: algumas considerações sobre a resenha “Os nórdicos e a academia”, do Prof. Johnni Langer

Ricardo da COSTA


Antes de tecer meus breves comentários acerca da resenha “Os nórdicos e a academia”, do Prof. Dr. Johnni Langer, agradeço aos editores da NECULT a abertura deste espaço para que os leitores da revista tenham uma posição diametralmente oposta à argumentação do resenhista. Sem esse espírito de livre discussão de idéias, nossa civilização ocidental já teria perecido.

O Prof. Langer divide a sua resenha em duas grandes partes. Na primeira, desqualifica totalmente meu trabalho com o argumento que o historiador não pode julgar o que estuda – e vale-se especialmente de dois grandes nomes nacionais, os professores Ciro Cardoso (de quem tive a honra de ser aluno, em meu mestrado) e Hilário Franco Jr., o maior medievalista brasileiro vivo (de quem sou, confessadamente, fã).

Na segunda parte, entre outras questões, Langer discute a condição feminina (e o tema da virgindade), a questão da escrita, as grafias erradas (Oseberg), simplificações de conceitos (boendr), e dedica especial atenção às ilustrações (único tema que não irei comentar aqui, já que diz respeito exclusivamente ao prezado autor Orlando Paes).

Em meus comentários, inverterei a ordem acima, pois entendo que nossas diferenças teóricas a respeito do interessante tema do julgamento histórico foram o Leitmotivda resenha.

Em primeiro lugar, o problema da simplificação dos conceitos e dos erros de grafia. Agradeço sobremaneira as correções do Prof. Langer. Possivelmente, esses pequenos problemas não teriam ocorrido se o professor não tivesse desistido de sua participação naquela coleção DUAS SEMANAS ANTES do prazo final para envio do texto aos editores – o que fez com que tivéssemos de realizar um verdadeiro tour de force para cumprir o acordo contratual firmado meses antes.

Quanto ao tema em voga do gênero (história das mulheres), há alguns pontos em sua argumentação que merecem uma reflexão. Para o contrapor à prática viking de assassinato de crianças, Langer critica o fato de o cristianismo condenar somente o adultério feminino.

Além de ser uma comparação inexata (assassinato de crianças versus adultério), isso mostra um profundo desconhecimento do autor em relação aos cânones eclesiásticos medievais – e da Bíblia (documento-mor da Idade Média e de todo medievalista). Já em Mateus há prescrições contra o adultério MASCULINO (Mt 19, 9).

Ademais, não só, como numa carta do papa ao bispo de Tiberíades (de 1201), há clara crítica à prática pagã da poligamia (um homem ter muitas mulheres), e do costume do repúdio masculino, e a Igreja claramente DEFENDE A IGUALDADE DE JULGAMENTO PARA OS DOIS SEXOS, nos seguintes termos: “Se abandonada a mulher, não se pode, em direito, ter outra, muito menos quando é retida, e é evidente que a pluralidade de um e outro sexo não deve ser julgada de modo díspar” (DENZINGER, 1963: 120-121).

O macabro assassinato de crianças persistiu na Escandinávia viking após a instalação do cristianismo não por culpa deste, mas do próprio paganismo, isto é, de sua relutância em mudar alguns de seus costumes. Pelo contrário, o cristianismo trouxe notável melhora da condição infantil em comparação com o período anterior, pois é sabido que, no mundo antigo (tanto romano quanto bárbaro), a criança estava indefesa nas mãos do poder paterno – um poder de vida e de morte em que o pai não levava em consideração o desejo materno. Com o advento do cristianismo, e a idéia que só uma alma infantil poderia entrar no reino dos céus (Mt 18, 1-4), a condição das crianças nas sociedades ocidentais, a longo prazo, mudou – e para melhor.

Em uma insólita passagem a respeito do ataque viking ao mosteiro de Lindisfarne (793), o Prof. Langer se “esqueceu” de dizer que o acontecimento FOI narrado no livro (p. 07). Isso me sugere que ou o professor não leu com a devida atenção o livro, ou omitiu o dado apenas para contradizer minha apresentação (p. 6), quando afirmei que os vikings “...entraram na História no século IX” – isto é, entraram EFETIVAMENTE na História, DEFINITIVAMENTE na História (pois os ataques de 793, 794, 795, 799 foram o prelúdio de uma onda muito mais vigorosa). Como logo na página seguinte comentamos fartamente a atrocidade do massacre ao mosteiro de Lindisfarne, creio que houve, de fato, má fé na leitura do Prof. Langer.

A respeito da idéia da superioridade viking no que diz respeito à virgindade (o cristianismo defendia a virgindade como um valor e a cultura viking não), trata-se de um JUÍZO DE VALOR por parte do professor, o que me leva ao tema do julgamento do historiador, questão de que a resenha se ocupou em toda a sua primeira metade.

Como disse anteriormente, o Prof. Langer se vale de algumas idéias de Ciro Cardoso e Hilário Franco Jr. (além de E. Carr), mesclando-as para defender a idéia que “o historiador não pode julgar”. Ultimamente tenho escutado esta proposição autofágica e contraditória em muitos lugares, e as pessoas não se dão conta de que ela é um juízo de valor.

Além do mais, o Prof. Langer não precisava se ancorar nas citações daquelas autoridades, pois desde o séc. XIII é sabido (pelo menos nos círculos intelectuais universitários) que o argumento da autoridade é o mais fraco de todos: não se deve levar em conta QUEM diz, mas a validade DO QUE se diz.

Claro, não farei o mesmo aqui. Poderia, mas não preciso elencar citações de autoridades nacionais e estrangeiras para “provar” que minha idéia é a correta, pois me bastará a razão, a capacidade argumentativa. Aprendi isso com os medievais. Só assim ascendemos da mera opinião para o consenso científico – e todos os leitores podem criar seu próprio juízo, sem receio de desconhecer a bibliografia citada. A razão não necessita de suporte bibliográfico.

Assim, caro leitor da NECULT, quando alguém disser “você não pode julgar”, saiba que ISSO É UM JULGAMENTO: ele está julgando que você não pode julgar! Esse contra-senso é o mesmo que dizer “não existe verdade”. É verdade que não existe verdade? Vejam a contradição intrínseca da afirmativa.

Bem, tantos os antigos quanto os medievais sabiam que afirmativas não podem ser simultaneamente negadas.

Da mesma forma, é uma contradição dizer “isso não existe”: negativas não podem ser provadas. De fato, se levarmos essa parlapatice às últimas conseqüências, a pessoa que disser isso não poderá sequer abrir a boca, e limitar-se-á a narrar os acontecimentos do passado.

Insisto: se não podemos julgar, não podemos emitir nenhuma idéia. E, de fato, em sua resenha, embora diga que “o historiador não é um juiz”, o Prof. Langer julga O TEMPO TODO. Senão vejamos:

1) “...muitas pesquisas ainda conservam o tradicional anacronismo de historiadores...”;

2) “o cristianismo é considerado o baluarte do progresso e da civilização, em detrimento de práticas anteriores consideradas incivilizadas, um conceito perigoso...”;

3) “...a sofisticada cultura dos escandinavos medievais...”;

4) “A mulher na Escandinávia Viking possuía muitos privilégios...”;

5) “Essa enorme quantidade de equívocos desqualifica a utilização da obra tanto para fins didáticos quanto paradidáticos”.

E por aí vai (não vou enumerar todos os julgamentos da resenha do Prof. Langer, que são muitos).

Bem, se não podemos julgar, como diz o Prof. Langer, ele também NÃO PODE JULGAR O MEU LIVRO (nem, muito menos, esta crítica da crítica)! Além disso, sua afirmação também contradiz a própria essência do que é uma resenha, qual seja, um julgamento, para que o público tenha uma idéia de se uma obra é boa ou não!

Mas por que o Prof. Langer afirma uma coisa e faz exatamente o contrário logo em seguida? Simples. O juízo faz parte do raciocínio. Mesmo que diga que não, o Prof. Langer não pode recusar a reflexão, pois ela integra sua intelectualidade. Aliás, a própria palavra razão (do latim ratione) significa isso: capacidade do ser humano de avaliar, julgar, ponderar idéias universais...

Sim, julgamos tudo, o tempo todo, mesmo quando nos abstemos – e somos julgados pelo que somos e julgamos. Isso é razão, isso é civilização. A própria Idade Média dos católicos, muçulmanos e judeus, já sabia bem isso. Desde a Antigüidade, os pensadores perceberam que é característica do próprio intelecto a faculdade de julgar.

Vou dar apenas um belíssimo exemplo a esse respeito (não de uma bibliografia contemporânea, mas de um autor do próprio período em questão: o filósofo muçulmano Al-Farabi [c. 870-950]). Na obra O caminho da felicidade – em que analisa o pensamento político de Aristóteles – Al-Farabi afirma que o homem só é livre quando consegue discernir o que é dado pela reflexão (exatamente como disse acima), e é UMA BESTA quando não reflete e não decide nada:

Alguns homens têm excelente reflexão e poderosa decisão para fazer aquilo que a reflexão lhes impõe; são aqueles que podemos merecidamente chamar de homens livres. Outros carecem de ambas as coisas e são os que podemos merecidamente chamar homens bestiais e servos. Outros carecem somente de poderosa decisão, mas têm excelente reflexão: são aqueles que podemos chamar servos por natureza.

Isso acontece a alguns que se arrogam a ciência ou se consideram filósofos, e então estão em uma categoria abaixo do primeiro na servidão, e aquela ciência que se arrogam se converte em ignomínia e desonra para eles, pois o que adquirem é algo inútil, pois não obtêm proveito.

Por fim, outros carecem de excelente reflexão embora tenham poderosa decisãopara quem é assim, outros refletem por eleou bem se deixará levar por quem reflete por ele, ou não se deixará levar. Caso não se deixe levar, também será uma besta, mas se se deixar levar, terá êxito em muitas de suas ações e, por causa disso, poderá escapar da servidão e participar com os livres.” AL-FARABI, O caminho da felicidade, 2002: 62-63 (os grifos são meus).

Vejam como a própria época em que os guerreiros nórdicos surgiram (devastando bibliotecas e atacando cidades) já tinha culturas muito mais desenvolvidas intelectualmente!

Portanto, duvide de pessoas que tentam retirar esse aspecto intrínseco de sua natureza intelectiva, caro leitor do NECULT. Ou, seguindo a lógica de al-Farabi, não deixe que reflitam por você, não seja uma besta, um escravo, seja um homem livre! Julgue com seus olhos e sua mente o que vê e o que lê, do presente ou do passado.

Por fim, convido você a um pequeno exercício judicativo sobre o tema em questão. Na saga Landnámabók (séc. X), há uma interessante e mórbida informação sobre a cultura nórdica de então: um islandês tinha o carinhoso apelido de “homem das crianças”, porque não as empalava na ponta de sua lança como era hábito entre seus companheiros! (Para quem não sabe, a prática da empalação consistia em cravar um talo de madeira no ânus de um infeliz e perfurar seus intestinos, deixando-o morrer lentamente, dependurado.)

Bem, você acha boa ou má uma cultura que pratica a empalação? E a empalação em crianças? Empalar alguém é bom ou mau? De minha parte, não posso deixar de exclamar – e julgo: esses vikings eram realmente uma notável civilização!

Para concluir, penso que o problema não é se devemos julgar ou não, pois isso é inevitável, e sim COMO julgar, com que parâmetros. Para o historiador, uma boa forma é comparar diferentes culturas da época analisada (como fiz brevemente ao citar o muçulmano Al-Farabi, contemporâneo dos vikings), e esclarecer ao leitor quais suas balizas comparativas.

Naquele período das migrações e ataques vikings, os cristãos erguiam maravilhosas catedrais românicas e criavam filosofia e cultura; os monges dedicavam-se ao estudo e à meditação (além de recopilarem os textos dos antigos aos pósteros, preservando-os da destruição e do esquecimento). Já os vikings...

Definitivamente não há comparação!