Resenha do Prof. Dr. Johnni Langer na Revista NECULT

Os nórdicos e a academia: resenha de Vikings/Universo Angus, do Prof. Johnni Langer

Resenha (09/10/2006) para a Revista NECULT

 

Ultimamente vem crescendo o número de estudos sobre as antigas religiosidades e crenças, especialmente aquelas existentes entre os europeus pré-cristãos. Seu legado e impacto na sociedade medieval, por exemplo, é algo amplamente investigado. Apesar disso, muitas pesquisas ainda conservam o tradicional anacronismo de historiadores com seu posicionamento individual perante o objeto de pesquisa, seja religioso ou moralista. Este é o caso do livro paradidático Vikings (coleção Universo Angus, Editora Planeta, 2004, de Orlando Paes, Ricardo da Costa e Tatyana Nunes Lemos). Os autores em todo o momento tentam convencer os leitores da superioridade do cristianismo em relação ao antigo paganismo:

“...homens violentos (...) Saqueadores impiedosos (...) Além de praticarem sacrifícios humanos, cravarem tocos de madeira nos ânus de crianças (a famosa prática de empalamento) e massacrarem clérigos (...) como viviam esses homens de ‘apetites sensuais’ e que tinham ‘prazer de sangue e de destruição?’ (...)

Às vezes, esses rituais eram excessivamente violentos (...) embora sacrificassem crianças indesejadas, empalassem as dos inimigos e praticassem sacrifícios humanos, além de promoverem orgias e bebedeiras (...) Por sua vez, o cristianismo, a longo prazo, modelou, orientou e civilizou as suas energias (...) tivemos a preocupação de descrever sua organização social bem como o impacto benéfico que o cristianismo, a longo prazo, exerceu sobre a sua cultura” (COSTA; LEMOS; PAES, 2004: 5, 7, 17, 26, grifo nosso).

Neste caso, o cristianismo é considerado o baluarte do progresso e da civilização, em detrimento de práticas anteriores consideradas incivilizadas, um conceito perigoso para uma obra com fins didáticos, se recordarmos as palavras de Edward Carr:

“O historiador sério é aquele que reconhece o caráter de todos os valores historicamente condicionados, não aquele que reivindica para seus próprios valores uma objetividade acima da história. As crenças que mantemos e os padrões de julgamento que colocamos são parte da história e estão tanto sujeitos à investigação histórica como qualquer outro aspecto do comportamento humano (CARR, 1978, 72).

O historiador não é juiz nem advogado, é um cientista social que se preocupa em compreender o contexto cultural, político e econômico em que os fatos históricos estão atrelados. Confrontos de um ponto de vista moral do objeto de pesquisa acabam prevalecendo nas concepções pessoais de alguns investigadores. Esta atitude, segundo Ciro Flamarion Cardoso, tem sido muito comum nas investigações acadêmicas, especialmente nos estudos sobre História das religiões: “o ângulo de abordagem de religiões que já desapareceram costuma ser bastante diferente do que se aplica às religiões cuja vigência continua no presente (...) se vincula às repercussões das militâncias e vivências religiosas presentes hoje em dia” (CARDOSO, 2005).

Ciro Flamarion Cardoso enuncia alguns procedimentos para que o historiador possa desenvolver uma pesquisa acadêmica imparcial, sem interferência de suas tendências religiosas: “maior vigilância no sentido de garantir pelo menos um relativo distanciamento acadêmico do objeto para, assim, evitar juízos de valor, hierarquizações indevidas do ortodoxo e do heterodoxo, bem como outras distorções (...) o distanciamento vem, às vezes, da própria escolha de objetos e ângulos de análise (...) Mais do que no passado, impõe-se hoje com freqüência a análise interdisciplinar ou transdisciplinar nos assuntos da História das Religiões e da Religiosidade” (CARDOSO, 2005).

Com relação ao delicado tema dos sacrifícios humanos e rituais exóticos no passado, Cardoso alerta para os perigos de uma análise parcial e moralista por parte dos pesquisadores contemporâneos, afetando qualitativamente o resultado dos estudos (CARDOSO, 2004b). O mesmo historiador, em outra publicação, aponta para o antigo erro dos acadêmicos em considerar o cristianismo superior ao paganismo da Era Viking:

“Estes dados são incompatíveis com a noção de uma superioridade intrínseca do cristianismo sobre o paganismo escandinavo. Se fosse assim, por que um processo de conversão tão difícil e longo (ainda mais se recordarmos os muitos séculos de contatos dos escandinavos com reinos cristãos da Europa Ocidental e com Bizâncio), em lugar de um paganismo que, diante da superioridade cristã, se esboroa como castelo de cartas tocado pelo vento? E por que, mesmo após a conversão, houve na Islândia um interesse tão persistente pela religião pré-cristã que, durante o século XVII, ainda motivava a exposição de mitos pagãos em manuscritos (nestes casos muito tardios, redigidos em papel)? (...) A tendência predominante nos estudos mais recentes do paganismo escandinavo por historiadores das religiões consiste em encarar tal paganismo como uma religião altamente complexa, satisfatória para os que a praticavam. (CARDOSO, 2006, grifo nosso).

No caso do livro em questão, Vikings (coleção Universo Angus), o cristianismo introduzido na Escandinávia Medieval é apontado como o responsável pelo futuro desenvolvimento material da região, em detrimento de uma antiga religião considerada violenta e atrasada. Todavia, os autores esqueceram que o próprio cristianismo também teve os seus momentos de “barbárie” e violência na História do Ocidente (como a Inquisição, as Cruzadas, as lutas religiosas contra os protestantes, a perseguição aos judeus e o extermínio cultural dos povos indígenas). Implicitamente, cria-se para o leitor a noção de que as práticas paganistas eram maléficas, enquanto que somente a ideologia cristã foi positiva, algo não muito distante do que os próprios teólogos proclamavam na Antigüidade: “Quando, na passagem do século IV ao V, Sulpício Severo identifica os deuses pagãos a demônios, desqualifica moral e culturalmente os grupos tradicionais, afirma a superioridade dos novos grupos cristãos, proclama a superação de uma cultura e deposita o futuro nas mãos da outra” (FRANCO JR., 2003: 106).

Ainda neste referencial de confronto entre civilização e barbárie, os autores proclamam: “Os vikings fizeram parte de uma das maiores ondas bárbaras que varreram a Europa na Idade Média, retardando por algum tempo o desenvolvimento social europeu” (COSTA; LEMOS; PAES, 2004: 26, grifo nosso). Alguns dos estudos mais recentes apontam, pelo contrário, que a sofisticada cultura dos escandinavos medievais trouxe diversos incrementos sociais, políticos e artísticos para a Europa continental: “Les Vikings auront été des initiateurs de modernité (...) fait des Vikings les artisants d’une osmose nouvelle entre le Nord et l’Europe continentale, et c’est sans doute dans ce sens qu’on peut les considérer comme les premiers européens” (BOYER, 2005: 177, 217, 268).

As quantidades de erros históricos, anacronismos e idiossincrasias são também recorrentes em toda a obra da editora Planeta: “Os normandos ou, como são mais conhecidos, vikings, entraram na história no século IX. Mais precisamente, após a violenta invasão, saque e destruição de um mosteiro inglês” (COSTA; LEMOS; PAES, 2004: 5). Na realidade, o ataque em questão, ao mosteiro de Lindisfarne, ocorreu em 7 de junho de 793, portanto no século VIII e não no IX. Conf. HAYWOOD, 2000: 122.

“Os homens podiam ter concubinas, mandar matar um bebê doente e assassinar a esposa infiel e seu amante. Nesse aspecto, o cristianismo trouxe notável melhora para mulheres e crianças” (COSTA; LEMOS; PAES, 2004: 11). Ao contrário do que afirmam os autores, o cristianismo medieval também condenava o adultério feminino: “As discussões acerca do comportamento a ter perante a mulher adúltera (perdão, punição, repúdio e, no limite, morte), que dominam a literatura canonística e penitencial do século XII em diante, não fazem mais do que confirmar a disparidade dos juízos sobre o adultério masculino e feminino e reforçar a impressão de que, na realidade, a obrigação da fidelidade é apenas reservada às mulheres” (VECCHIO, 1990: 154-155).

A mulher na Escandinávia Viking possuía muitos privilégios, desde controle absoluto da casa, ser dona de propriedades (JOSCHENS, 2003: 53-59) e alcançar grande status social, além de poder divorciar-se em qualquer situação (algo impensável na Europa cristã): “Viking Age Scandinavian society was dominated by men, but women enjoyed higher status than in other areas of Europe at the time (...) On the face of it, divorce was a simple procedure. All that was required of the party who was seeking a divorce was that they summon witnesses and declare himself or herself divorced (...) (HAYWOOD, 2000: 210, 128, grifo nosso). No casamento Viking, a virgindade não era uma necessidade, ao contrário da Europa cristã: “Many Icelandic women married several times, and neither age nor lack of virginity was a hidrance” (BYOCK, 2001: 215). No caso da exposição (morte de crianças com defeitos ou doentes), ao contrário do que afirmam os autores, a prática continuou na Escandinávia após a instalação do Cristianismo e da nova ética religiosa: “Except in the case of severe deformity, exposure was illegal in early Christian times, but the practice continued to be common, primarily for economic reasons” (HAYWOOD, 2000: 43).

“Os vikings valorizavam a palavra dita e cantada (...). No entanto, se suas poesias foram registradas por escrito, perderam-se” (COSTA; LEMOS; PAES, 2004: 11). Existem poesias nórdicas que sobreviveram nos registros de inscrições rúnicas (séculos IX e X), além da tradição oral poética ter sido registrada em dezenas de documentos (especialmente os poemas édicos, escáldicos e as Sagas) a partir do século XI, preservando muitos exemplos de métricas e estilos poéticos dos antigos Vikings. Conf. GRAHAM-CAMPBELL, 2001: 167-171; BOYER, 2004: 371.

“Nesse grupo destacam-se os boendr, agricultores e proprietários de terras com maior poder aquisitivo. Os fazendeiros eram chamados bóndis” (COSTA; LEMOS; PAES, 2004: 11. Grifo dos autores). Neste trecho, os autores tratam a mesma palavra como se fosse diferente, mas na realidade é um mesmo termo: “Composante essentiale de la société, le bóndi (pl. boendr) se définit comme un homme libre propriétaire d’un domaine” (NAGELS, 2004: 30).

O livro Chronicles of the Vikings: Records, memorials and Myths (Toronto, 2002), citado na bibliografia final como sendo de W. S. Churchill (COSTA; LEMOS; PAES, 2004: 45), é de autoria do historiador e epigrafista britânico Raymond Ian Page. Por sua vez, o livro Runes and the Vikings, 2000, citado como sendo do arqueólogo irlandês Barry Raftery* (COSTA; LEMOS; PAES, 2004: 46), na realidade foi escrito por Raymond Ian Page.

As ilustrações de capacetes nórdicos, machados, espadas e lanças (COSTA; LEMOS; PAES, 2004: 22-23) foram reproduzidas fielmente da obra The Viking art of war (GRIFFITH, 1995: 165, 170, 177, 179; ISBN: 1-85367-208-4), inclusive com as mesmas legendas (no desenho dos capacetes), porém, em nenhum momento foi citada a fonte, transgredindo normas internacionais de direito autoral: “The moral right of the author has bem asserted. All rights reserved. No part of this publication may be reproduced, stored in a retrieval system of transmitted in any form or by any means, electrical, mechanical or otherwise without first seeking the written permission of the Publisher” (GRIFFITH, 1995: 04, grifo nosso). As ilustrações de embarcações nórdicas inseridas em um quadro tipológico (COSTA; LEMOS; PAES, 2004: 14) foram totalmente reproduzidas do livro Os Vikings: intrépidos navegantes do norte (Abril coleções/Time Life, 1999: 14-15), inclusive com as mesmas legendas, mas em nenhum momento foi citada a referência.

A ilustração de um guerreiro Berserker (COSTA; LEMOS; PAES, 2004: 42) é totalmente estereotipada: a estrutura muscular apresentada não condiz com o perfil dos escandinavos da Era Viking, aproximando-se muito mais das imagens de bárbaros fantasiosos criadas pelos ilustradores Boris Valejo e Frank Frazetta após a década de 1950. Para ilustrações e pinturas fidedignas dos guerreiros Vikings – baseadas em pesquisas antropológicas, arqueológicas e historiográficas - consultar os trabalhos de Tom Lovell (National Geographic, vol. 137, n. 4, april 1970, p. 514, 516, 533, 539) e Michael A. Hampshire (National Geographic, march 1985, p. 281, 282, 285, 287). Ainda sobre os berserkers, a citação de que estes guerreiros participavam de batalhas sem nenhuma roupa (COSTA; LEMOS; PAES, 2004: 25) é um estereótipo desmentido pelos mais renomados especialistas contemporâneos (BOYER, 1997: 27).

A ilustração da cidade nórdica de Dublin (COSTA; LEMOS; PAES, 2004: 29) apresenta um grande equívoco: onde deveria estar representado o edifício público utilizado para assembléias públicas (com formato de navio e casas construídas ao longo do cercado interno, conforme desenho integrante de RINGLEY, 1991: 26-27), foi inexplicavelmente ilustrada uma fortaleza do estilo de Fyrkat e Trelleborg, com dois círculos externos de defesa e quatro conjuntos internos de casas com formato quadrado.

A referência a mais famosa embarcação escandinava recuperada pela Arqueologia, Oseberg, foi grafada erroneamente: “Osenberg” (COSTA; LEMOS; PAES, 2004: 17). A palavra em nórdico antigo Midgard, traduzida como “parede limítrofe” (COSTA; LEMOS; PAES, 2004: 16), na realidade significa “Terra do meio” (conf. BYOCK: 2005: 169).

Essa enorme quantidade de equívocos desqualifica a utilização da obra tanto para fins didáticos quanto paradidáticos. Para a sofrível coleção de romances do escritor Orlando Paes, especialmente o primeiro volume Angus: o primeiro guerreiro, recomendamos a leitura de outra resenha (LANGER, 2003). Esperamos que no futuro possam ser publicados ou traduzidos livros sobre Vikings com maiores qualidades analíticas e conceituais, algo que o público e a academia brasileira aguardam ansiosamente.