Vida de Macrina (séc. IV)

Para o monge Olímpio

Introdução

[960A] A forma desse volume, se alguém pode julgar pelo título, é aparentemente epistolar, mas este volume excede o de uma carta, estendendo como faz na extensão de um livro. Minha apologia deve ser que o assunto no qual tu me ofereceste escrever é maior do que pode ser condensado nos limites de uma carta.

Tenho certeza que tu não esqueces do nosso encontro, quando, no meu caminho para Jerusalém, no prosseguimento de um voto, para ver as relíquias da permanência do Senhor na carne e nas marcas atuais. Eu te procurei na cidade de Antioquia, e tu deves lembrar-te de todas as diferentes conversas que tivemos, pois não era usual que o nosso encontro fosse silencioso, quando a sua sagacidade fornecia tantos assuntos para a conversa. Como sempre acontece nesses momentos, a [960B] conversa fluiu até que nós viemos a discutir a vida de algumas pessoas famosas.

Nesse caso, foi uma mulher que nos forneceu o nosso assunto; se, de fato, ela devia ser uma mulher de estilo, eu não sei se é conveniente designá-la pelo seu sexo, a quem ultrapassou tanto o seu sexo. Nosso interesse por ela não foi baseado na narrativa de outros, mas nossa conversa foi uma descrição acurada daquilo que aprendemos pela experiência pessoal, nem precisava ser autorizada por estranhos. Nem mesmo a referida virgem era desconhecida no nosso círculo familiar para fazer necessário aprender as maravilhas da sua vida através dos outros, mas ela veio dos mesmos pais que nós sendo então que falaremos da primeira fruta ofertada, porque ela foi a primeira nascida do útero de minha mãe.

Então, tu decidiste que a história de sua nobre carreira vale a pena ser contada para evitar que tal vida seja desconhecida no nosso tempo, e que o registro de uma mulher que cresceu [960C] pela filosofia para a maior elevação da virtude humana passando pelas sombras do esquecimento inútil, eu acho por bem obedecer a ti e, em poucas palavras, como eu posso melhor contar a história dela de uma maneira não meditada e num estilo simples.

Os pais de Macrina

O nome da virgem era Macrina; ela foi assim chamada por seus pais depois de uma famosa Macrina algum tempo antes na família do pai da nossa mãe que tinha confessado a Cristo [962A] como um bom atleta no tempo das perseguições. Este, de fato, era o seu nome para o mundo externo, aquele usado pelos seus amigos. Mas outro nome tinha sido dado a ela privadamente como resultado de uma visão antes do seu nascimento neste mundo. Porque, de fato, sua mãe era tão virtuosa que ela havia sido guiada em todas as ocasiões pela vontade divina.

Particularmente, ela amava tanto um modo de vida puro e sem mancha que ela não queria se casar. Mas desde que ela perdeu ambos os pais, e ela havia desabrochado na sua beleza de juventude e, a fama da sua boa aparência estava atraindo muitos pretendentes e havia muito perigo nisso, se ela não tivesse um companheiro de boa vontade, ela poderia sofrer algum fato não desejado, vendo que alguns homens, inflamados pela sua beleza, estavam prontos para seqüestrá-la, por causa disso ela escolheu para seu marido um homem que era conhecido e aprovado pela seriedade de sua conduta e assim ganhou o protetor de sua vida.

O nascimento de Macrina

No seu primeiro parto ela se tornou mãe de Macrina. Quando veio a hora devida, as dores agudas do parto terminaram, ela adormeceu e parecia estar carregando em suas mãos aquilo que ainda estava em seu útero. E alguém com forma e brilho mais esplêndido que um ser humano apareceu e dirigiu-se à criança que ela estava carregando pelo nome de Thecla, que Thecla, eu quero dizer, que é tão famosa entre as virgens.

Depois de fazer isto e testemunhar isso três vezes, ele partiu da sua vista e deu a ela um parto fácil, de maneira que, naquele momento, ela acordou do sono e viu seu sonho realizado. Agora, esse nome era usado apenas em segredo. Mas [962C] parece-me que a aparição não fala tanto para guiar a mãe para a escolha certa do nome, mas para prever a vida da jovem criança e para indicar pelo nome que ela deveria seguir o modo de vida do nome.

A infância de Macrina

Bem, a criança foi educada. Embora ela tivesse a sua própria ama-seca, ainda como regra sua mãe tomou os seus cuidados com suas próprias mãos. Depois de passado o estágio da infância, ela mostrou-se com talento para aprender e os seu poderes naturais foram mostrados em todo o estudo no qual seus pais julgaram dirigi-la. A educação da criança era tarefa da mãe. Ela não utilizou, no entanto, o método mundano de educação o qual utiliza a prática do uso de poesia como meio de treinamento nos primeiros anos da crianças.

Seu contrato de casamento

Preenchendo seu tempo com estas e ocupações similares, e atingindo então uma considerável proficiência no trabalho da lã, a menina em crescimento atingiu seu décimo segundo ano, a idade quando o florescimento da adolescência começa a aparecer. Com relação a isso, é digno de nota que a beleza da menina não podia ser ocultada, apesar dos esforços para escondê-la. Nem em todo o campo, parece, existia algo tão maravilhoso quanto a sua beleza, em comparação com a das outras.

Tão justa era ela que mesmo as mãos dos pintores não podiam fazer justiça à sua [964B] graça; a arte, que inventa todas as coisas e tenta as grandes tarefas, mesmo como modelar uma imitação e figuras dos corpos celestes, não poderia reproduzir com precisão a beleza de sua forma. Em conseqüência, um grande enxame de pretendentes, propondo casamento, ajuntavam-se ao redor de seus pais. Mas seu pai, um homem astuto, com reputação de tomar boas decisões, retirou do resto um jovem relacionado à família, que acabara de deixar a escola, de bom nascimento e notável equilíbrio, e decidiu dar sua filha em contrato de casamento a ele, tão logo ela fosse madura o suficiente.

Nesse meio tempo, ele desenvolveu grandes esperanças, e ofereceu a seu futuro sogro sua fama em falar em público como se fosse um de seus dons; ele exibia o [964C] poder da sua eloqüência em controvérsias forenses em favor dos erros dos culpados.

A morte de um jovem

Mas a inveja cessou essas brilhantes esperanças jogando para longe o pobre rapaz da vida. Agora, Macrina não era ignorante ao esquema de seu pai, mas quando o plano formado para ela foi despedaçado pela morte do jovem, ela disse que a intenção de seu pai era equivalente ao casamento e decidiu permanecer solteira daí em diante, como se a intenção tivesse realizado o fato.

E, de fato, a sua determinação foi mais firme do que poderia ser esperado para a sua idade. Por que quando seus pais traziam-lhe propostas de casamento, como sempre acontecia devido ao grande número de pretendentes que vinham atraídos pela fama de sua beleza, ela dizia que era absurdo e contra a lei não ser fiel ao casamento que havia sido arranjado para ela por seu pai, mas ser compelida a considerar outro; porque na natureza das coisas havia apenas um casamento, como há um nascimento e uma morte.

Ela persistiu que o homem que havia estado ligado a ela pelo [964D] arranjo de seus pais não estava morto, mas que ela considerava que ele vivia para Deus, graças à esperança da ressurreição que estava somente ausente, não morto; era errado não manter a fé com o noivo que estava longe.

Macrina decide nunca deixar sua mãe

Com tais palavras, repelindo aqueles que tentavam fazê-la mudar de idéia, ela manteve a sua boa resolução em salvaguarda e resolveu não se separar de sua mãe em nenhum momento da vida. De maneira que sua mãe dizia sempre que ela havia carregado o resto de suas crianças na sua barriga por um tempo definitivo, mas que ela criou sempre Macrina, porque, de alguma maneira ela sempre carregou Macrina consigo. Mas a companhia da filha não era infrutífera, nem um fardo para a mãe.

Porque eram válidas muitas daquelas atenções e trabalhos servis recebidos de sua filha [966A], e os benefícios eram mútuos. Porque a mãe tomava conta da alma da menina e a menina tomava conta da alma da mãe, e em todos os aspectos preenchia os serviços requeridos, chegando mesmo a preparar as refeições para sua mãe com suas próprias mãos. Não que ela fizesse disso a sua atividade principal. Mas depois que ela havia ungido suas mãos pelo desempenho de tarefas religiosas porque julgou que o zelo por isto era consistente com os princípios de sua vida no tempo que foi deixado, ela preparava comida para sua mãe com sua própria labuta.

E não apenas isso, mas ela ajudava sua mãe a manter o seu fardo de responsabilidade. Por que ela tinha quatro irmãos e cinco irmãs e pagava taxas para três governos diferentes porque sua propriedade estava espalhada em vários distritos. Em conseqüência [966B], sua mãe estar distraída com várias ansiedades, porque o seu pai tinha nesta época partido dessa vida. Por todos esses problemas, ela dividia a labuta de sua mãe, dividindo seus cuidados com ela e iluminando a sua pesada carga de sofrimentos.

No mesmo momento, graças à proteção de sua mãe, ela estava vivendo sua própria vida sem culpa, de modo que o olhar de sua mãe direcionou e testemunhou tudo o que ela fez; e também por sua própria vida instruiu grandemente sua mãe, levando-a para a mesma marca, quero dizer, aquela da filosofia, e gradualmente conduzindo-a para a vida imaterial e mais perfeita.

Basil retorna da universidade

Quando a mãe tinha providenciado excelentes casamentos para as outras irmãs, como era melhor em cada caso, o irmão de Macrina, o grande Basil, retornou depois de seu longo período de [966C] educação, já um hábil retórico. Ele estava envaidecido além da medida com o orgulho da oratória e desprezava os dignitários locais, superando em sua própria avaliação todos os homens de liderança e posição.

No entanto, Macrina o tomou pela mão, e com tal rapidez levou-o também em direção à marca da filosofia, que ele renunciou às glórias deste mundo e desprezou a fama ganha pelo discurso, e desertou disso para a sua vida ocupada onde a labuta de um é feita com as mãos de outro.

Sua renúncia à propriedade foi completa, para que nada devesse impedir a vida de virtude. Mas, de fato, sua vida e os atos subseqüentes, pelos quais tornou-se renomado por todo o mundo e colocou-o à sombra de todos aqueles que haviam ganho renome por sua virtude, iria [966D] necessitar de uma longa descrição e de muito tempo. Mas eu devo desviar minha história para a sua tarefa determinada.

Agora que todas as desordens da vida material haviam sido removidas, Macrina persuadiu sua mãe a desistir da vida comum e todo o estilo de vida ostentoso e os serviços domésticos aos quais ela estava acostumada antes, e trouxe a ela o seu ponto de vista para aquele das massas, e partilhou a vida das servas, tratando todas as suas escravas e criados como se eles fossem irmãos e pertencessem à mesma condição social que ela.

Mas, nesse ponto, eu gostaria de inserir um pequeno parênteses à minha narrativa e não deixar de relatar tal questão como a que se segue, na qual o sublime caráter da donzela é exibido.

A história de Naucratius

Segundo de quatro irmãos, de nome Naucratius, que veio logo depois do grande Basil, superava o resto em dons naturais, em beleza física, força, rapidez e habilidade para aprimorar sua mão para qualquer coisa. Quando [968A] ele atingiu seu vigésimo primeiro ano e havia dado tal demonstração de seus estudos ao falar em público que toda a audiência no teatro estava emocionada, ele foi guiado pela Divina Providência para desprezar tudo que já estava ao seu alcance e, levado por um irresistível impulso, retirou-se para uma vida de solidão e pobreza. Ele não levou nada consigo, somente si mesmo, salvo aquele de seus servos chamado Chrysapius, que o seguiu por causa da afeição que ele tinha para com o seu patrão e a intenção que havia formado de levar a mesma vida.

Então, ele viveu por si mesmo, tendo encontrado um lugar solitário às margens do rio Íris, um rio fluindo através do centro do Ponto. Ele nasce realmente na Armênia, passa através de nossas partes e descarrega sua corrente no [968B] Mar Negro. Próximo dali, um jovem encontrou um lugar com um crescimento luxuriante de árvores e um vale, debaixo do qual havia um ninho de passarinhos projetando-se sobre a massa de uma montanha.

Ali ele vivia longe, afastado dos barulhos da cidade e das desordens que cercavam as vidas, tanto do soldado quanto do advogado das cortes da lei. Tendo então se libertado do atordoamento de cuidados que impedem o homem de uma vida mais alta, com suas próprias mãos, ele procurou alguns idosos que estavam vivendo na pobreza e debilidade, considerando apropriado para seu modo de vida fazer de tal trabalho seu cuidado.

Então, o generoso jovem ia em expedições de pesca, e como ele era um perito em todo tipo de esporte, ele fornecia comida por todos os meios para os seus gratos clientes. E, ao mesmo tempo, por tais exercícios, estava domesticando sua própria humanidade.

Além disso, alegremente ele também obedecia aos desejos de sua mãe sempre que ela pedia. E então, dessas duas maneiras, ele guiou sua vida, [968C] a natureza de sua juventude pelas labutas e cuidado assíduo com sua mãe, e, além de manter os mandamentos divinos, estava viajando para a casa de Deus.

Deste modo, completou o quinto ano de sua vida como filósofo, pelo qual fez sua mãe feliz, tanto pelo modo no qual adornou sua própria vida pela continência, e pela devoção de todos os seus poderes para fazer o desejo dela que o criou.

A trágica morte de Naucratius

Então, caiu sobre a mãe uma dolorosa e trágica aflição, arquitetada, eu acho, pela adversidade, que trouxe problemas e tristeza para a família. Porque ele foi arrebatado repentinamente da vida. Nenhuma doença prévia lhes havia preparado para a desgraça, nem nenhuma dos usuais e conhecidos infortúnios trouxeram a morte para o jovem. [968D] Tendo iniciado uma das expedições pela qual ele fornecia as coisas necessárias para os idosos, ele foi trazido para a casa morto, juntamente com aquele Chrysapius, com quem dividia a sua vida. Sua mãe estava longe, três dias distante da cena da tragédia. Alguém veio a ela contando as más notícias.

Embora ela fosse perfeita na virtude, a natureza dominou-a como faz com os outros. Pois ela desmaiou. E, em um momento, perdeu a fala e a respiração, já que a razão lhe falhou sob o desastre, e ela foi jogada ao solo pelo assalto das marés do mal, como alguns nobres atletas batidos por uma inesperada desgraça.

Macrina, aquela que deu amparo à sua mãe

E agora, a virtude da grande Macrina foi exibida. Enfrentando o desastre com [970A] espírito racional, ela se preservou do colapso, e se tornou o suporte na fraqueza de sua mãe, elevando-a do abismo da dor, e, por sua própria firmeza e imperturbabilidade, ensinou à alma de sua mãe a ser corajosa. Em conseqüência, sua mãe não foi oprimida pela aflição, nem se comportou de maneira ignóbil e de modo feminino, como gritar à calamidade, ou rasgar seu vestido, ou lamentar sobre o problema, ou principiar cantos fúnebres com melodias pesarosas.

Pelo contrário, ela resistiu aos impulsos da natureza, e se aquietou tanto por reflexões que lhe ocorreram espontaneamente, como por aquelas que eram aplicadas por sua filha para curar a doença. Pois então, a nobreza do espírito de Macrina foi visível mais que tudo; já que [970B] a afeição natural a estava fazer sofrer. Pois ele era um irmão, e um irmão favorito, que havia sido arrebatado de tal forma pela morte.

No entanto, conquistando a natureza, ela tanto sustentou sua mãe com seus argumentos que ela, também, ergueu-se superior ao seu sofrimento. Além do que, a elevação moral sempre mantida pela vida de Macrina deu à sua mãe a oportunidade de rejubilar-se pelas bênçãos que possuía mais do que a dor do que havia perdido.

Mãe e filha fazem mais progressos na vida ascética

Quando os cuidados de conduzir uma família e as ansiedades por sua educação e estabelecimento na vida tiveram um fim, e a propriedade, uma causa freqüente do conhecimento mundano, tinha sido em sua maior parte dividida entre os filhos, então, como eu disse acima, a vida da virgem tornou-se o guia de sua mãe e conduziu-a para este filosófico e espiritual [970C] modo de vida.

E, afastando-a de todos os luxos costumeiros, Macrina continuou dirigindo a mãe a adotar o seu próprio ideal de humildade. Induziu-a a viver em pé de igualdade com o séquito de servas, também partilhava com elas a mesma comida, o mesmo tipo de cama em todas as necessidades da vida, sem nenhuma consideração com as diferenças de posição social.

Assim era o modo de suas vidas, tão grande a altura de sua filosofia, e tão sagrada sua conduta dia e noite faz a descrição verbal inadequada. Pois somente como almas livres do corpo pela morte são salvas dos cuidados desta vida, eram suas vidas removidas muito longe de todas as preocupações terrenas e ordenadas com a visão de imitar a vida angélica. Pois nem raiva ou inveja, ódio ou orgulho foi observado em seu meio, nem nada desta natureza, já que elas abandonaram todos os desejos vãos por honra e glória, todas as vaidades, arrogâncias e similares. A continência era o seu luxo, e a obscuridade a sua glória.

Pobreza, e a retirada de todas as materialidades supérfluas de seus corpos como poeira era a sua riqueza. De fato, todas as coisas que os homens perseguem obstinadamente em suas vidas, não eram nada, elas podiam facilmente dispensar. Tudo foi deixado, exceto o cuidado com as coisas divinas e a incessante ladainha de orações e hinos, co-extensivas no tempo, praticadas noite e dia. De forma que, para elas, significava trabalho, e o resto era assim chamado trabalho. O que as palavras humanas podem te fazer pretender com uma vida como esta, uma vida na fronteira entre natureza humana e espiritual?

Pois que a natureza esteja livre das fraquezas humanas é mais do que pode ser esperado da humanidade. Mas estas mulheres não alcançaram a natureza angélica e imaterial apenas na medida em que (estas) apareciam em forma corporal, e estavam contidas numa estrutura humana, e eram dependentes dos órgãos dos sentidos. Talvez alguns pudessem mesmo ousar dizer que a diferença não lhes estava em desvantagem, já que, ao viver num corpo e ainda ter semelhanças com seres imateriais, elas não haviam sido submetidas ao peso do corpo, mas suas vidas eram exaltadas aos céus e [972B] caminhavam para o alto na companhia dos poderes do céu.

O período coberto por este modo de vida não foi curto, e com um lapso de tempo seus sucessos aumentaram, como sua filosofia cresceu continuamente mais purificada com a descoberta de novas bênçãos.

Pedro, o irmão mais novo

Macrina foi ajudada principalmente por seu irmão Pedro para atingir o grande objetivo de sua vida. Com ele, as angústias da mãe cessaram, pois ele foi o último nascido na família. De imediato, recebeu os nomes de filho e órfão, porque quando entrou nesta vida seu pai passou do tempo dela.

Porém, a mais velha da família, assunto da nossa história, levou-o logo após o nascimento para uma ama de leite, que criou-o e educou-o [972C] num sublime sistema de treinamento, exercitando-o desde a infância nos estudos sagrados para não dar à sua alma a ociosidade que o levaria às coisas vãs. Assim, tendo sido todas as coisas para o jovem — pai, professora, tutora, mãe, doadora de todos os bons conselhos — ela produziu tais resultados que, antes que a idade da puerícia tivesse passado, quando ele ainda estava despindo o primeiro florescimento da tenra juventude, aspirou à alta marca da filosofia.

E, graças ao seus dons naturais, ele possuía talento em toda arte que envolvia trabalho manual, de forma que, sem nenhuma orientação, atingiu um completo e acurado conhecimento de tudo o que as pessoas comuns aprendem com tempo e dificuldade. Desdenhando ocupar [972D] seu tempo com estudos do mundo, e tendo em sua (própria) natureza um instrutor suficiente em todos os bons conhecimentos, e sempre procurando como modelo tudo o que era bom, avançou para tal altura de virtude que, em sua vida subseqüente, ele não pareceu nada inferior ao grande Basil.

Mas, neste momento, com sua mãe e irmã, ele estava cooperando completamente com elas na busca da vida angélica. Uma vez, quando uma severa fome ocorreu e as multidões de todos os quarteirões estavam freqüentando o retiro onde elas moravam, dirigidas pela fama de sua benevolência, a bondade de Pedro supriu com uma tal abundância de comida que o deserto parecia uma cidade por causa do número de visitantes.

A morte da mãe

[974A] Foi por volta dessa época que a mãe morreu, honrada por todos e foi para Deus, deixando sua vida nos braços de seus dois filhos. É  válido dar as palavras de bênção que ela transmitiu a seus filhos, mencionando cada um dos ausentes com uma lembrança amorosa, de maneira que nenhum foi desprovido da bênção e encomendou especialmente a Deus em suas orações aqueles que estavam presentes com ela.

Pois quando aqueles dois sentavam próximo a ela em cada lado da cama, ela os tocou com suas mãos e pronunciou essas orações a Deus com suas palavras agonizantes: “Para Ti, ó Senhor, eu dou o fruto do meu útero ambos tanto como as primícias quanto os décimos. Pois o meu mais velho é a primícia e o meu último nascido é o décimo. Cada um é santificado por Ti pela Lei, e eles são oferendas votivas para ti. Portanto, deixe Tua santificação [974B] descer sobre meu primeiro e meu décimo.”

Enquanto ela falava, indicava por gestos sua filha e filho. Então, após cessar a bênção, ela deixou de viver, tendo primeiramente ordenado a seus filhos colocar seu corpo no sepulcro de seu pai. Mas eles, após cumprirem a ordem, mantiveram-se fiéis à filosofia com ainda mais sublime resolução, até mesmo esforçando-se contra sua própria vida e eclipsando seu registro prévio pelos seus sucessos subseqüentes.

Basil morre depois de uma nobre carreira

Enquanto isso, Basil, o famoso santo, fora eleito bispo da grande igreja de Cesaréia. Ele promoveu Pedro à sagrada ordem do sacerdócio, consagrando-o em pessoa ao cerimonial místico. E desta maneira um avanço adicional em direção à dignidade [974 C] e à santidade foi feito em suas vidas, agora que a filosofia fora enriquecida pelo sacerdócio.

Oito anos depois disso, o renomado Basil partiu dos homens para viver com Deus, para a dor geral de sua terra nativa e de todo o mundo. Agora, quando Macrina ouviu as notícias sobre a calamidade em seu distante retiro, afligiu-se, de fato, na alma, por tão grande perda como ela não se sentiria por uma calamidade, pois como não ser levada ao sofrimento, que muitas vezes foi sentido até mesmo pelos inimigos da verdade?

Mas, como dizem, o teste do ouro somente acontece depois de várias fornadas, então, se qualquer impureza escapar à primeira fornalha, ele pode ser separado na segunda, e outra vez na última de todas quando a impureza do metal fundido puder ser removida ? consequentemente é mais acurado testar o ouro puro se a cada fornada não mostrar nenhuma impureza. Assim acontecia também no caso dela (de Macrina).

Quando seu nobre caráter fora testado  por essas difíceis aproximações de dificuldades, em cada sentido o metal de sua alma  provava ser puro e imaculado. O primeiro teste foi a perda do irmão (Naucratius), o segundo, a morte de sua mãe, o terceiro ocorreu quando a grande glória da família, o grande Basil, foi removido da vida humana. Assim ela permaneceu, como uma invencível atleta sem a sabedoria alquebrada pelo assalto dos infortúnios.

Gregório decide visitar sua irmã

No nono mês ou pouco mais tarde após este desastre, um sínodo de bispos reuniu-se na Antioquia, no qual também tomamos parte. E quando nos dispersamos, cada um indo para casa antes que o ano acabasse, então eu [976 A], Gregório, senti desejo de visitar Macrina. Pois um longo período transcorrera em que as visitas foram impedidas pela distração com os problemas que suportei, estando constantemente voltado para fora do meu país pelos líderes da heresia. E quando eu avaliei o tempo decorrido durante o qual as aflições nos impediram de encontrar-nos face a face, não menos que oito anos, ou muito próximo desse período, pareciam ter passado.

Agora, quando eu havia cumprido a maior parte da viagem e estava a um dia de distância, uma visão apareceu-me num sonho e encheu-me com ansiosas antecipações do futuro. Parecia-me que carregava relíquias de mártires em minhas mãos: um luz veio delas, tal como [976 B] vinda de um espelho claro quando é colocado voltado para o sol, de forma que meus olhos foram cegados pelo brilho dos raios. A mesma visão voltou-me ao espírito vividamente três vezes aquela noite. Eu não podia entender claramente o enigma do sonho, mas vi infortúnio para minha alma e observei cuidadosamente a fim de julgar a visão pelos acontecimentos.

Quando aproximei-me do retiro no qual Macrina levava sua vida angélica e celestial, perguntei, em primeiro lugar, a um dos servos sobre meu irmão, se estava em casa. Ele nos contou que este havia saído havia quatro dias, e entendi, o que de fato era o caso, que ele havia ido encontrar-nos por outro caminho. Então perguntei sobre a grande senhora. Ele disse que ela estava muito doente, e eu fiquei mais impaciente para continuar e completar o resto da viagem, por uma certa ansiedade e um medo premonitório do que estava vindo furtivamente [976 C] e me inquietando.

Gregório vem ao mosteiro e encontra Macrina em seu leito de morte

Mas quando eu cheguei ao verdadeiro mosteiro já havia rumores anunciando a minha chegada para a irmandade. Então toda a companhia de homens correu de seus cômodos para nos encontrar, porque era costume deles honrar os amigos indo encontrá-los. Mas a associação das virgens na ala feminina esperava modestamente na igreja pela nossa chegada.

Porém, quando as orações e as bênçãos haviam acabado, e as mulheres, depois de reverentemente inclinarem suas cabeças para recebê-las, retiraram-se para seus próprios aposentos, e nenhuma delas ficou conosco. Eu adivinhei a explicação: a abadessa não estava com elas. Um homem levou-me para casa onde estava a minha grande irmã, e [976D] abriu a porta. Então entrei naquela morada sagrada.

Encontrei-a terrivelmente aflita com sua fraqueza. Ela não estava deitada numa cama ou leito, mas no chão; um saco tinha sido estendido numa tábua e outra tábua apoiava sua cabeça, tão ideal como um travesseiro, sustentando os tendões de seu pescoço de maneira inclinada e segurando-o confortavelmente. Quando ela me viu próximo à porta, ela ergueu-se pelos cotovelos, mas não pôde vir encontrar-me. Sua força tinha sido drenada pela febre.

Mas, ao colocar suas mãos no chão e inclinar-se do estrado o máximo que podia, ela mostrou o respeito [978A] devido à minha posição. Então, ela levantou sua mão para Deus e disse: “Este favor Vós também me concedeste, oh, Deus, e não privou-me do meu desejo, porque Vós comoveste o teu servo para visitar aquela feita pela Vossa mão.”

Temendo afligir o meu espírito, ela deteve seus gemidos e fez grandes esforços para ocultar, na medida do possível, a sua dificuldade para respirar. E de todas as maneiras  tentava ser alegre, tomando a precedência em uma em conversa amigável, e nos dando a oportunidade de fazer perguntas. Quando ao longo da conversação mencionou-se o grande Basil, minha alma entristeceu-se e meu rosto ficou abatido.

Mas estava ela tão longe de sentir a minha aflição [978 B], que tratou a menção ao santo como uma oportunidade ainda para uma filosofia mais elevada, discutindo vários assuntos, inquirindo sobre os problemas humanos e revelando na conversa o objetivo divino associado aos desastres. Além disso, discutiu sobre a vida futura. Como se ela estivesse inspirada pelo Espírito Santo, pareceu-me que minha alma, pelo auxílio de suas palavras, era elevada da natureza mortal e colocada no santuário celeste.

E assim como aprendemos na história de Job que o santo foi atormentado em todas as partes de seu corpo com desconfortos por causa da deteriorização de seus ferimentos, e mesmo dessa forma não permitiu que dor [978 C] afetasse o poder da sua razão, ao contrário, apesar das dores corporais, não diminuiu suas atividades nem interrrompeu os sublimes sentimentos de seu discurso, similarmente eu vi o caso desta grande mulher.

A febre estava drenando-lhe as forças e conduzindo-a à morte, mas ela refrescava seu corpo como se ele estivesse com frescor e então mantinha sua mente desimpedida na contemplação das coisas celestes, de nenhuma maneira prejudicada por sua terrível fraqueza. E se minha narrativa não se estendesse por uma extensão inconsciente eu contaria tudo em ordem, como ela melhorava quando discursava para nós sobre a natureza da alma e explicava a razão da vida na carne, e porque o homem foi feito, e porque ele era mortal, e a origem da morte e a natureza da viagem da morte para a vida outra vez. Em tudo o que [978D] ela contava, sua história era clara e ordenada, como se inspirada pelo poder do Santo Espírito, e mesmo o fluxo da sua linguagem era como uma fonte cuja água fluía ininterruptamente.

Macrina dispensa Gregório para ele descansar

Quando nossa conversa havia acabado, ela disse: “É hora, irmão, de descansares teu corpo por enquanto já que este está exausto com a grande labuta da tua viagem.”

E embora eu considerasse um grande e genuíno descanso encontrá-la e ouvir suas palavras nobres, ela queria tanto que tive de obedecer a minha senhora, encontrei uma bela árvore que me aguardava nos jardins vizinhos, e descansei à sombra do caminho das vinhas.

Mas era impossível ter algum sentimento de [980 A] satisfação quando meu espírito estava aflito com sombrias antecipações porque a visão secreta de meu sonho parecia agora estar revelada a mim pelo que vi. Pois a imagem que havia visto era de fato verdadeira — as relíquias de um santo mártir que havia morrido em pecado, mas agora resplandecia com o  poder que residia no Espírito. Expliquei isto para um dos que me ouviram contar o sonho anteriormente.

Estávamos, como se pode supor, num estado desanimador, esperando tristes ocasiões quando Macrina de algum modo adivinhando o nosso estado de espírito, nos enviou um mensageiro com novidades mais animadoras, e solicitou-nos para ficar com boa disposição e ter melhores esperanças por ela porque estava sentindo uma mudança para o melhor. Isso não foi dito agora para enganar, mas a mensagem [980 B] era de fato verdadeira embora não soubéssemos naquele momento.

Pois na verdade, tal como um corredor que havia ultrapassado seu adversário e já se encontrava próximo do fim do estádio, tal como se ele se aproximasse do assento do juiz e visse a coroa da vitória, rejubila-se interiormente como se já houvesse atingido seu objetivo e anunciasse sua vitória aos seus simpatizantes, entre os espectadores — em tal estado de espírito ela também nós dizia para dividir melhores esperanças para ela pois ela já olhava para o prêmio da chamada ao Céu, e tudo pronunciando as palavras do apóstolo: Daqui em diante está guardada para mim a coroa da justiça que o justo Juiz me dará porque eu lutei um bom combate, terminei o caminho, mantive a fé.”

De acordo, sentindo-nos felizes com as boas [980 C] novas, começamos a apreciar a visão que se colocavam ante nós. Elas eram muito variadas e os arranjos davam grande prazer na medida em que a grande senhora era cuidadosa mesmo nessas insignificâncias.

Gregório revê Macrina, que conta os acontecimentos de sua infância

Mas quando a vimos outra vez, pois ela não nos permitia passar o tempo sozinhos na ociosidade, começou a contar-nos sua vida passada, começando pela infância, e descrevendo tudo em ordem como numa história. Ela contou tanto o quanto podia lembrar-se da vida de nossos pais, e os acontecimentos que ocorreram antes e depois do meu nascimento.

Mas seu objetivo em todas as partes era a gratidão a Deus porque ela descrevia nossos pais não do ponto de vista da reputação que tinham aos olhos de seus contemporâneos devido às suas riquezas, mas como um exemplo da bênção divina.

Os pais de meu pai tiveram seus bens confiscados por serem cristãos. Nosso avô  materno [980 D] foi morto pela ira imperial, e todas as suas possessões transferidas para outros donos. No entanto, suas vida abundaram tanto na fé que ninguém era nomeado acima deles naqueles tempos. E além disso, depois que sua herança foi dividida em nove partes de acordo com o número de filhos, a parte de cada um aumentou tanto pela bênção de Deus que as rendas de cada filho excederam a prosperidade dos pais.

Mas quando chegaram à própria Macrina, ela não conservou nada das coisas que lhe foram atribuídas na divisão eqüitativa entre irmãos e irmãs, porém toda a sua parte foi entregue aos homens da Igreja de acordo com o mandamento divino. Além disso, sua vida tornou-se tal pelo auxílio divino que suas mãos nunca cessaram de trabalhar de acordo com o mandamento. Ela nunca procurou por ajuda de nenhum ser humano, nem a caridade deu-lhe a oportunidade de uma existência confortável.

Nunca os suplicantes foram em direção contrária, mas ela jamais apelou por ajuda, porém Deus secretamente abençoava as pequenas raízes dos seus bons trabalhos até que crescessem como uma poderosa fruta.

Como eu contasse minhas próprias dificuldades e tudo pelo que passei, primeiro meu exílio pelas mãos do Imperador Valenciano por causa da  fé, e depois a confusão na Igreja, que convocou-me para conflitos e julgamentos, minha grande irmã disse: “Tu não cessarás de ser insensível às bênçãos divinas? Não remediarás a ingratidão da tua alma? Não compararás a tua posição com aquela dos nossos [982 B] pais?

E ainda, com relação às coisas do mundo, nós pudemos gabar-nos de sermos bem nascidos e pensar que viemos de uma família nobre. Nosso pai era muito estimado como jovem pelo seu conhecimento; de fato sua fama estabeleceu-se por todas as cortes de lei da província. Subseqüentemente, embora ele ultrapassasse a todos em retórica, sua reputação não se estendeu além de Ponto. Mas ele estava satisfeito em ter a fama em sua própria terra.”

“No entanto tu,” ela disse, “é renomado em cidades, povos e países. Igrejas citam-te como um aliado e dirigente, e não vês a graça de Deus em tudo isso? Falhas em reconhecer a causa de tais bênçãos, que foram as preces de nossos pais, preces que agora estão elevando-te cada vez mais para cima, tu que tens uma pequena ou nenhuma capacidade para tal sucesso?”

Assim ela falou, e desejei que a duração do dia se estendesse além, que ela nunca cessasse de encantar nossos ouvidos com a sua doçura. Mas a voz do coro estava nos convocando para o serviço noturno, e me enviando à igreja, (ficando) a grande dama mais uma vez isolada para rezar a Deus. E assim ela passou a noite.

Os acontecimentos do dia seguinte: as últimas horas de Macrina

Mas quando o dia raiou, estava claro para mim pelo que tinha visto que era o derradeiro limite da sua vida na carne já que a febre consumira toda a sua força. Porém, ela, considerando a fraqueza de nossas mentes, planejava como nos distrair de nossas tristes antecipações, e mais uma vez com aquelas suas lindas palavras dissipou o que havia do sofrimento de seu espírito com [982 D] uma curta e difícil respiração.

Muitas, em verdade, e variadas foram as emoções de meu coração com o que vi. Porque a natureza estava me afligindo e me fazendo triste, apenas como era esperado já que eu não podia mais ter esperanças de ouvir tal voz outra vez. Nem estava ainda reconciliado com o pensamento de perder a glória comum da nossa família, mas minha mente, como se inspirada por esse espetáculo, imaginou que ela realmente ficaria acima da sorte comum.

Pois mesmo no seu último suspiro não encontrou nada a duvidar na esperança da Ressurreição, nem mesmo temeu a partida desta vida, mas com a mente elevada continuou a discutir até o seu último suspiro as convicções que havia formado desde o início sobre esta vida — tudo isso me pareceu mais que humano. Mais parecia como se algum anjo tivesse adquirido a forma humana com um tipo de encarnação para quem isso não era nada [984]. Um estranho para quem a mente permaneceria sem perturbação uma vez que não tinha nenhum parentesco ou apego por essa vida da carne, e então a carne não levava a mente a pensar nas suas aflições.

Portanto, acho que ela revelou para os circunstantes aquele divino e puro amor pelo noivo invisível, que ela mantinha escondido e alimentado em locais secretos da alma, e proclamou a secreta disposição do seu coração de correr em direção a Ele, a quem desejava, aquele com quem ela poderia rapidamente estar, livre das correntes do corpo. Porque em toda a verdade seu caminho foi dirigido em direção à virtude e nada mais poderia alterar a sua atenção.

A prece de morte de Macrina

[984 B] A maior parte do dia havia agora passado, e o sol estava declinando em direção ao oeste. Sua ânsia não diminuiu, mas ao aproximar-se de seu fim, como se discernisse a beleza do Noivo mais claramente, apressou-se em direção ao Amado com grande avidez.

Tais pensamentos ela proferiu, não mais para nós que estávamos presentes, mas para Ele em pessoa a quem fitava fixamente. Seu leito foi virado em direção ao leste; e cessando de conversar conosco, falou dali em diante para Deus em oração fazendo súplicas com as mãos e sussurrando com uma voz baixa, de forma que nós podíamos apenas ouvir o que era dito. Tal era a sua prece; não temos dúvidas que atingiu [984C] Deus, e que ela, também, estava ouvindo a Sua voz:

“Vós, Oh Senhor, nos libertastes do medo da morte. Vós fizestes o fim desta vida o começo para nós da verdadeira vida. Por uma estação descansastes nossos corpos no sono e acordastes-nos de novo na última trombeta. Destes nossa terra, que ocupastes com vossas mãos para manter a terra em segurança. Um dia tirareis de novo o que houvestes dado, transfigurando com imortalidade e graça nossos repugnantes e mortais traços. Salvastes-nos da maldição e do pecado, tendo tornado ambos para nossa causa.

Quebrastes as cabeças do dragão que se apoderou de nós com suas mandíbulas, no abismo escancarado (aberto) pela desobediência. Mostrastes-nos o caminho da ressurreição, quebrando os portões do inferno, e arruinou quem tem poder na morte — o diabo. Destes um sinal para aqueles que vos temem no símbolo da Cruz Sagrada, [984 D] para destruir os adversários e salvar nossas vidas. Oh, Deus eterno, a quem estive ligada desde o ventre de minha mãe, Aquele a quem minha alma amou com todas as suas forças, Aquele a quem dediquei minha carne e meu espírito, da juventude até agora — destes-me um anjo de luz para conduzir-me para o lugar de refrescamento, onde é a água do repouso, no seio dos Pais Sagrados. Vós que quebraste a espada flamejante e restaurastes para o Paraíso o homem que foi crucificado convosco e implorou vossos perdões, lembrai-vos de mim, também, em vosso reino; porque eu também fui crucificada convosco, tendo pregado minha carne na cruz por medo de Vós, e de Vossos julgamentos tive medo.

Não deixeis que o terrível abismo me separe de vossos eleitos. Não deixeis [986 A] o caluniador postar-se contra mim no caminho; nem deixeis meus pecados serem encontrados ante Vossos olhos, se em qualquer coisa pequei em palavra ou ação ou pensamento, deixei perdido pela fraqueza da nossa natureza. Oh Vós que tem o poder na terra para perdoar os pecados, perdoai-me para que eu seja revigorada e possa ser encontrada diante Vós quando eu abandonar meu corpo, sem manchas em minha alma. Mas possa a minha alma ser recebida em Vossas mãos pura e imaculada, como um oferecimento diante Vós.”

Quando disse estas palavras, ela selou seus olhos, boca e coração com a cruz. E gradualmente, sua língua calou-se com a febre, não pôde mais articular palavras, e sua voz desvaneceu-se, e somente pelo tremor de seus lábios e o mover de suas mãos, percebíamos que estava rezando.

Enquanto isso a noite chegou e uma lamparina [986 B] foi trazida. Imediatamente ela abriu a órbita de seus olhos e olhou em direção à luz, claramente desejando repetir a oração de ação de graças ao acender das luzes. Mas sua voz falhou e ela preencheu sua intenção no coração e pelo mover de suas mãos enquanto seus lábios movimentavam-se em simpatia com seu desejo interior.

Mas quando ela terminou o agradecimento, e sua mão voltou-se para o rosto para fazer o sinal que significava o fim da prece, deu um último e profundo suspiro e fechou juntamente sua vida e sua prece.

Gregório realiza os últimos ofícios

[986 C] E agora que ela estava sem respirar e quieta, lembrando a ordem que ela havia dado em nosso primeiro encontro, dizendo-me que ela desejava suas mãos postas nos olhos, e que os ofícios costumeiros do corpo fossem feitos por mim, eu coloquei suas mãos, entorpecidas pela doença, em sua face santificada, para que não parecesse que eu negligenciava o seu pedido. Pois seus olhos não necessitavam nada para compô-los, estando cobertos graciosamente pelas pálpebras, tal como acontece no sono natural. os lábios estava confortavelmente fechados e as mãos postas reverentemente sobre o peito, e todo o corpo tinha automaticamente ficado na posição correta, e de forma alguma precisavam da ajuda de assentadores.

As irmãs lamentam por sua abadessa

Agora minha mente estava tornando-se debilitada de duas maneiras, pela visão que encontrava o meu olhar fixo, e o triste lamento das virgens que soava em meus ouvidos. Até então lembravam-se [986 D] quietas e suprimiam sua dor, contendo seu impulso de lamentar, por medo dela como se temessem a sua censura, mesmo quando a voz dela estava em silêncio, para que, de nenhuma maneira um som irrompesse delas contrário ao seu comando, e sua senhora sofresse em conseqüência disso.

Mas quando elas não puderam mais subjugar sua angústia em silêncio, e a dor, como algum fogo interior, ardia lentamente em seus corações, imediatamente um forte e irrepreensível grito brotou de forma que meu raciocínio não permaneceu mais calmo, mais uma corrente de emoção, como um curso d’água em inundação varreu, e então, negligenciando meus deveres, eu me entreguei à lamentação.

De fato, a causa do pranto das virgens parecia-me justo e razoável, pois elas não estavam lamentando a perda de um guia e companheiro humano, ou qualquer outra coisa que faz os homens sofrer quando o desastre acontece. Mas parecia como se elas estivessem perdido sua esperança em Deus e na salvação de suas almas, e por isso elas choravam e gritavam dessa maneira:

“A luz dos nossos olhos foi embora 
A luz que guiava nossas almas foi levada 
A segurança de nossas vidas foi destruída 
O selo da imortalidade foi removido 
O vínculo da prudência foi retirado 
O suporte dos fracos foi quebrado 
A cura dos doentes removida 
Em vossa presença a noite se tornou para nós como dia 
Iluminada com a pura vida, 
Mas agora mesmo o nosso dia se tornará escuridão”

Mais triste que todas em sua dor eram aqueles que [988B] a chamavam de mãe e ama-sêca, eram eles que ela pegava, expostos de um lado da estrada em tempo de fome. Ela cuidou deles e os criou e levou-os para a vida pura e sem mancha.

Mas como se fosse das profundezas, eu recobrei meus pensamentos. Eu olhei na direção daquela santa face e me pareceu como se ela me censurasse pela confusão das barulhentas lamentadoras. Então eu chamei as irmãs com uma voz alta:

“— Olhai para ela e lembrai suas ordens, pelas quais ela vos treinou para serem ordeiras e decentes em tudo. Uma ocasião para lágrimas fez essa alma divina ordenar-vos, recomendando-vos para chorar no momento da oração que agora nós iremos realizar, transformando as lamentações na mesma melodia.”

Vestiana vem para ajudar Gregório

[988C] Eu tive que gritar para ser ouvido no barulho das lamuriantes. Então eu supliquei-lhes para ir embora por um tempo para a casa nas vizinhanças, mas pedi que algumas daquelas cujos serviços ela usava para o seu bem-estar quando ela estava viva ficassem. Entre estas, estava uma senhora de nascimento nobre, que tinha sido famosa na juventude pela riqueza, boa família, beleza física e todas as outras distinções. Ela havia se casado com um homem de alta posição e vivido com ele um curto período.

Então, quando seu corpo ainda era jovem, ela foi liberada do casamento, e escolheu a grande Macrina como protetora e guardiã de sua viuvez, e passou seu tempo principalmente com as virgens, aprendendo delas a vida de virtude. O nome da senhora era Vestiana, e seu [988D] pai era um dos que compunham o Conselho de Senadores. Para ela, eu disse que não poderia haver nenhuma objeção de nenhum modo em colocar roupas mais finas no corpo (de Macrina) e adornar aquela forma pura e sem mácula com roupas de bom linho. Mas ela me disse que alguém deve saber que a santa tinha pensado de maneira correta nesses assuntos, porque não era certo que nada que fizéssemos fosse contrário ao que ela desejasse. Mas como era agradável a Deus, seria seu desejo também.

Agora havia uma senhora chamada Lampádia, líder do grupo das irmãs, uma diaconisa. Ela declarou que sabia exatamente os desejos de Macrina [990A] sobre o sepultamento. Quando perguntei-lhe sobre eles (pois ela estava presente em nossas deliberações) ela disse com lágrimas:

“A santa resolveu que a vida pura deveria ser o seu adorno, que isso deveria ser o seu ornamento na vida e o seu sepultamento na morte. Mas tanto como as roupas que adornam o corpo se vão, ela não procurou nenhuma quando estava viva, nem guardou-as para o momento presente. De forma que, nem mesmo se quiséssemos haveria nada mais do que temos aqui, já que nenhuma preparação foi feita para essa necessidade.”

“Não é possível”, eu disse, “encontrar em nenhum baú alguma coisa para fazer um funeral conveniente?”

“Baú de fato”, ela disse, “tu tens na tua frente todo o teu tesouro! Existe um manto, a cobertura para a cabeça, os sapatos usados nos pés. esta é toda a tua riqueza, estas são todas as tuas riquezas. Não há nada guardado em locais secretos além do que tu vês, ou colocados em caixas seguras ou no quarto. Ela conhecia um único depósito [990B] para sua riqueza, o tesouro no céu. Lá, ela guardava tudo. Nada foi deixado na Terra.”

“Suponha”, falei, “que eu trouxesse algumas das coisas que eu já tenho para o funeral. Eu estaria fazendo alguma coisa que ela não teria aprovado?”

“Eu não acho”, disse ela, “que seria contra o seu desejo, pois se ela estivesse viva ela teria aceito tal honra de ti em dois níveis: sua religiosidade, que ela sempre elogiou tanto, e o seu relacionamento, pois ela não repudiaria o que veio de seu irmão.” Foi por isso que ela deu ordens que tuas mãos iriam preparar o corpo para o sepultamento.

Eles encontram no corpo marcas da santidade de Macrina

Quando decidimos isso, e foi necessário que o corpo sagrado fosse enrolado em linho, dividimos o trabalho e nos dedicamos às nossas diferentes tarefas. Ordenei que um de meus homens trouxesse o vestido. Mas Vestiana [990C], mencionada acima, ornava aquela cabeça santa com suas próprias mãos quando colocou sua mão no pescoço.

“Veja”, disse, “que tipo de ornamento está pendurado no pescoço da santa!” Enquanto falava, ela afrouxou o fecho e depois esticou a mão dela e nos mostrou uma representação da cruz de ferro e um anel do mesmo material. Ambos estavam fechados por um fino fio e ficavam continuamente no coração.” 
 “Deixe-nos dividir o tesouro”, eu disse. “Tu tens um estilete da cruz, ficarei contente em herdar o anel”— pois a cruz estava traçada no selo do anel também [990 D].

Olhando para isso, a senhora me disse outra vez “— Tu não erraste em escolher este tesouro, pois o anel é largo no aro e foi escondido num pedaço da Cruz da Vida.

A história de uma cicatriz

Então, quando foi a hora do corpo puro ser envolvido em suas vestimentas, a ordem da grande mulher que tinha partido tornou necessário que eu me incumbisse do ministério; mas a irmã, que dividia comigo aquela grande herança estava presente e juntou-se ao trabalho.

“Não deixes que as grandes maravilhas realizadas pela santa passem desapercebidas”, ela enfatizou, pondo descoberto parte do peito (da Macrina). 
 “Que queres dizer?”, eu disse.

[992A] “Vês”, ela disse, “esta pequena marca apagada abaixo do pescoço? Era como uma cicatriz feita por uma pequena agulha. Enquanto falava, ela trouxe a lâmpada próximo do local que estava me mostrando. “O que é surpreendente”, eu falei, “como se o corpo tivesse sido marcado com algum sinal fraco neste lugar”. “Isso”, ela replicou, “foi deixado no corpo como uma prova da poderosa ajuda de Deus.

Pois ali cresceu uma vez uma doença cruel, e havia perigo que o tumor exigisse uma operação ou que a enfermidade se tornasse incurável, se ela se espalhasse para próximo do coração. Sua mãe implorava-lhe freqüentemente e pedia-lhe que recebesse a atenção de um médico, uma vez que a arte médica, ela [992B] disse, havia sido enviada por Deus para salvar os homens. Mas ela julgava pior do que a dor descobrir qualquer parte de seu corpo aos olhos de um estranho.”

Então, quando a noite chegou, depois de cuidar de sua mãe como sempre, ela foi para o santuário e suplicou por toda a noite a Deus a cura. Uma torrente de lágrimas caiu de seus olhos no chão, e ela utilizou a lama feita de suas lágrimas como um remédio para sua doença. Quando sua mãe sentiu-se desanimada e outra vez insistiu que ela permitisse que o médico viesse, ela disse que seria suficiente para a cura de sua doença se sua mãe fizesse o sinal sagrado no local com sua própria mão. Mas quando a mãe colocou sua mãe em seu seio para fazer o sinal da cruz, o sinal agiu e o tumor desapareceu.”

“Mas isto”, ela disse, “é um minúsculo traço da marca; apareceu no local da terrível [992C] chaga e permaneceu até o final o que poderia ser, como imagino, uma memória da visita divina, uma ocasião e lembrança da perpétua ação da graça de Deus.”

Quando nosso trabalho chegou ao fim e o corpo foi embelezado com o melhor que tínhamos no lugar, a diaconisa falou de novo, insistindo que não era correto que ela fosse vista aos olhos das virgens vestida como uma noiva. “Mas eu coloquei”, ela disse, “um dos vestidos negros de tua mãe que acho que ficaria bem posto nela, para que essa beleza santa não fosse adornada com o desnecessário esplendor da roupa.”

Seu conselho prevaleceu, e o vestido foi posto no corpo. Mas ela estava resplandecente, mesmo naquele vestido negro, o poder divino sendo acrescentado, penso, por esta graça final do corpo, de forma que, como na visão de meu sonho, raios pareciam realmente brilhar de sua beleza.

Vigília por toda a noite: chega uma multidão de visitantes

 Mas enquanto estávamos assim ocupados, e as vozes das virgens cantando salmos mesclavam-se às lamentações que iam enchendo o lugar, as notícias espalharam-se de alguma maneira rapidamente por toda a vizinhança, e todas as pessoas que viviam próximo correram para ao local, de forma que a entrada não dava mais conta da afluência de pessoas.

Quando a vigília de toda a noite por ela acompanhada pelo cantar de hinos, como no caso (da morte) de mártires, e as festividades tinham acabado, a noite veio, e a multidão de homens e mulheres que havia chegado de todas as regiões vizinhas interrompiam os salmos com lamentações. Mas, embora eu estivesse angustiado devido à calamidade, planejava, de acordo com as possibilidades que tínhamos, que não deveria ser omitido um acompanhamento adequado [994 A] a tal funeral.

Gregório faz os preparativos para o funeral

Dividi os visitantes de acordo com seu sexo, e coloquei as multidões de mulheres com o grupo de virgens, enquanto os homens do lugar pus nas fileiras dos monges. Preparei para que os salmos fossem cantados por ambos os sexos de modo ritmado e harmonioso, como num canto coral, de forma que todas as vozes se harmonizassem apropriadamente.

Mas, à medida em que o dia progredia, e todo o espaço do retiro ia ficando mais cheio com a multidão de chegadas, o bispo daquela comarca (de nome Araxius, que havia vindo com todo o conjunto de seus padres), ordenou que a procissão do funeral começasse devagar, [994 B], pois havia um longo caminho a percorrer, e a multidão parecia querer impedir um movimento rápido. Ao mesmo tempo que dava essa ordem, convocou a si todos os presentes que dividiam com ele o sacerdócio para que transportassem o corpo.

Quando isso foi estabelecido e suas ordens realizadas, postei-me debaixo do esquife e chamei Araxius para o outro lado; dois outros renomados bispos tomaram a parte de trás do leito. Então segui adiante lentamente como era esperado, nosso progresso sendo apenas gradual. Pois as pessoas aglomeravam-se ao redor da sepultura e todos estavam insaciáveis em ver aquela visão, de forma que não nos era fácil completar o nosso caminho. De ambos os lados éramos flanqueados por um número considerável de [994 C] diáconos e servos, acompanhando o esquife em ordem, todos segurando velas.

Tudo lembrava uma procissão mística e do início ao fim as vozes se misturavam no canto de salmos, como, por exemplo, aqueles que vem no hino das Três Crianças.

Sete ou oito domicílios interpunham-se entre o retiro e a residência dos Mártires Sagrados, onde os corpos de nossos pais também repousavam. Realizamos com dificuldade a viagem na melhor parte do dia porque as multidões que vinham conosco, e aqueles que constantemente juntavam-se a nós, não permitiam que o nosso progresso fosse como desejávamos.

Chegada na Igreja: o sepultamento

Quando chegamos dentro da igreja, colocamos o esquife e viramos primeiramente para rezar. Mas nossa oração foi o sinal para que as lamentações das pessoas se reiniciasse. Pois no momento em que a voz da salmodia silenciou, e as virgens fitavam fixamente aquela santa face, e o túmulo dos nossos pais já sendo aberto, (onde fora decidido que Macrina seria colocada), [994D] uma mulher gritou impulsivamente que depois desta hora não veríamos aquela santa face outra vez. Então o resto das virgens gritou o mesmo, e uma desordenada confusão perturbou o ordeiro e solene canto dos salmos, e todos ficaram entristecidos com as lamentações das virgens. Conseguimos com dificuldade encontrar o silêncio pelo nosso gesto e graças a  fala do precentor, (que) tomando a liderança e entoando as costumeiras orações da Igreja, (levou) as pessoas a se controlarem finalmente para rezar.

O túmulo da família é aberto

Quando a prece chegou ao seu devido fechamento, o medo entrou em minha mente, pela transgressão ao divino mandamento que nos proíbe de descobrir o pudor de pai e mãe. “E como”, eu disse, escaparei de tal condenação se olhar a vergonha comum da natureza humana manifesta no corpo de meus pais? Uma vez que eles estão todos decadentes e dissolvidos, conforme deve ser esperado, e se tornaram pútridos e disformes?”

Enquanto pensava essas coisas, e a ira de Noé contra seu filho me lançava pavor, a história de Noé me aconselhou o que deveria ser feito. Antes que a tampa do túmulo fosse suficientemente levantada, revelando os corpos ao nosso olhar, eles foram cobertos por um puro tecido de linho esticado de lado a lado.

E agora que [996 B] os corpos estavam escondidos debaixo do pano, nós — eu e os acima mencionados bispos da região — tomamos aquele santo corpo do leito e o pusemos ao lado da mãe, entoando assim a oração comum de ambas. Pois ambas eram uma única voz pedindo a Deus por esta dádiva por toda as suas vidas, que seus corpos ficassem mesclados um com o outro após a morte e que seu companheirismo em vida não fosse quebrado na morte.

Com o término do funeral, Gregório retorna para casa

Mas quando completamos todos os ritos costumeiros do funeral, e tornou-se necessário retornar à casa, atirei-me primeiramente ao túmulo e agarrei a poeira, e então comecei meu caminho de volta, deprimido e lacrimoso, ponderando sobre a grandeza da minha perda.

No caminho encontrei um distinto militar que detinha o comando numa pequena cidade Pontus chamada Sebastópolis, e morava lá com seus subordinados. Ele recebeu-me de maneira agradável quando cheguei à cidade, e ficou muito perturbado ao ouvir a calamidade porque estava ligado a nós por laços de afinidade e de amizade. Contou-me a história de um maravilhoso episódio na vida de Macrina, que devo incorporar à minha história e então encerrá-la. Quando cessamos nossas lágrimas e iniciamos a conversa, ele me disse: “Aprenda sobre a bondade que foi tirada da vida humana.”

A história do militar

 “Minha esposa e eu tínhamos um fervoroso desejo de fazer uma visita à escola da virtude. Porque assim penso que o lugar deveria ser chamado, no qual aquela alma abençoada residia. Conosco [996 D] vivia também naquela época nossa pequena filha, que possuía uma moléstia no olho após uma doença infecciosa. E sua aparência era repulsiva e causava pena, a membrana em volta do olho era mais larga e embranquecida pela doença.

Mas quando entramos naquele domicílio divino, minha mulher e eu nos separamos, visitamos aqueles buscadores de filosofia de acordo com nosso sexo. Fui para a ala dos homens, presidida por Pedro, seu irmão, enquanto minha esposa foi para a ala feminina e conversou com a santa. E quando um intervalo apropriado se passara, achamos que era hora de partir do retiro, e já fazíamos nossas preparações para isso, mas doces protestos foram levantados por ambos os lados igualmente.

Seu irmão estava insistindo para que eu ficasse [998 A] e compartilhasse a mesa dos filósofos, e a santa senhora não queria deixar que minha mulher se fosse antes que preparasse uma refeição para elas e as  entretivesse com as riquezas da filosofia.  E beijando a criança, como era natural, e colocando seus lábios nos olhos dela, ela viu a enfermidade da pequena e disse — se me concederes o favor de dividir a nossa refeição, darei a ti em troca uma recompensa não imerecida por tal honra.”

“O que é?”, disse a mãe da criança.

“Eu tenho um remédio”, disse a grande senhora, “que é poderoso para curar doenças nos olhos.”

“E então notícias me foram trazidas dos aposentos femininos, me contando sobre essa promessa”, e permanecemos alegremente, pensando pouco na premente necessidade de começar a nossa viagem.

[998 B] “Mas quando a festa terminou e havíamos dito a prece, o grande Pedro, que havia nos servido com as próprias mãos e nos animado, e quando a santa Macrina despediu-se de minha mulher com toda a cortesia, então enfim fomos para casa juntos, com alegria e corações animados, contando um ao outro, enquanto viajávamos, o que acontecera conosco. Descrevi-lhe o que aconteceu nos aposentos masculinos, o que vi e ouvi. Ela contou todos os detalhes como numa história, e achou que nada deveria ser omitido, mesmo os mínimos pontos. Contou tudo em ordem, mantendo a seqüência da narrativa.

[998 C] Quando chegou ao ponto em que a promessa de curar a doença fora feita, ela interrompeu a narrativa.

“Oh, o que fizemos?”, gritou. “Como pudemos negligenciar a promessa daquela cura que a senhora disse que ia nos dar?”

“Eu estava envergonhado pelo descuido e pedi que alguém voltasse depressa para buscá-la. Assim que foi feito, a criança, que estava nas mãos da ama, olhou para a mãe e a mãe olhou nos olhos da criança.”

“Parem”, disse, envergonhada pela desatenção, gritando com alegria e medo.

“Vejam! Nada do que foi prometido está faltando! Ela realmente deu à menina o verdadeiro remédio que cura a doença; é a cura que vem da oração. Já deu ambos e ele já provou a sua eficácia; nada da doença [998 D] ficou nos olhos. Tudo foi purificado pelo remédio divino.”

E enquanto dizia isso, tomou a criança e a colocou em meus braços. E eu  entendi as maravilhas do evangelho, que até este ponto pareciam inacreditáveis para mim, e falei:

“O que pode ser surpreendente na recuperação da visão dos cegos pelas mãos de Deus, quando Suas criaturas, executando essas curas pela fé Nele, realizaram algo não inferior  a aqueles milagres?”

Tal foi a história dele; foi interrompida por soluços, e lágrimas engasgaram o que proferiu. Tanto pelo militar como para a sua história.

Conclusão

Não considero aconselhável acrescentar à minha narrativa todas as coisas similares que ouvimos daqueles que viveram com ela e conheceram sua vida precisamente. Muitos homens julgam o que [1000 A] é crível numa história pela medida da sua própria experiência. Mas o que excede a capacidade do ouvinte, os homens recebem com insulto e suspeita de falsidade, (como algo) muito remoto da realidade.

Consequentemente, omito aquela extraordinária ação agrícola na época da fome, (do modo) como o milho, para aliviar as necessidades, embora distribuído constantemente, não sofreu nenhuma diminuição perceptível, permanecendo sempre em quantidade o mesmo que era antes de ser distribuído às necessidades dos suplicantes.

E depois disso, houve acontecimentos ainda mais surpreendentes, os quais eu poderia contar. Curas de doenças, expulsões de demônios e previsões verdadeiras sobre o futuro. Acredita-se que todos sejam reais, mesmo que aparentemente inacreditáveis, por aqueles que os investigaram com acuidade. Mas pela mente carnal são julgados fora do possível. Aqueles, quero dizer, que não sabem que de acordo com a proporção da fé tanto é dado em distribuição das dádivas espirituais, enquanto pouco para aqueles de pouca fé, (saibam que) muito é dado aos [1000B] que possuem plena crença em sua religião.

Então, temendo que o descrente seja afligido por descrer nas dádivas de Deus, abstenho-me de uma narrativa bem encadeada para descrever estas sublimes maravilhas, pensando ser suficiente para concluir minha vida de Macrina com o que já foi dito.