A Batalha de Poitiers (732) por um cronista árabe anônimo

(...)

Os muçulmanos golpearam os seus inimigos e atravessaram o rio Garonne, assolando o país e levando inúmeros cativos. Aquele exército passou por todos os lugares como uma tempestade devastadora. A prosperidade tornou esses guerreiros insaciáveis.

Ao cruzarem o rio, Abderrahman arruinou o condado. O conde refugiou-se em sua fortaleza, mas os muçulmanos avançaram contra ele e, entrando à força no castelo, mataram o conde. Para tudo cediam suas cimitarras, que eram ladrões de vidas.

Todas as regiões do reino dos francos temiam aquele exército terrível, assim, os francos recorreram a seu rei Caldus [Carlos Martel]1 e lhes contaram sobre a destruição feita pelos cavaleiros muçulmanos, e como subjugaram, ao atravessarem, toda a terra de Narbonne, Toulouse e Bordeaux. Eles também relataram a morte do conde. Então o rei alegrou-os, declarando que iria ajudá-los...

O rei montou em seu cavalo, e levou um exército que não pode ser contado, e dirigiu-se contra os muçulmanos. Ele os encontrou na grande cidade de Tours.

Abderrahman e outros cavaleiros prudentes viram a desordem das tropas muçulmanas, que estavam pesadas devido aos espólios de guerra; mas eles não se aventuraram a desagradar os soldados ordenando que eles abandonassem tudo, com exceção de suas armas e cavalos de guerra. Abderrahman confiou no valor dos seus soldados e na boa sorte que estava lhe acompanhando. Mas a falta de disciplina é sempre fatal aos exércitos.

Assim, Abderrahman2 e suas hostes atacaram Tours para ainda adquirir mais espólio. Eles lutaram contra esta cidade tão ferozmente que a fúria e a crueldade dos muçulmanos para com os seus habitantes da cidade eram como a fúria e crueldade de tigres raivosos. Eles assaltaram a cidade quase diante dos olhos do exército que veio salvá-la. Era manifesto que Deus iria castigar tais excessos; e a sorte logo virou-se contra os muçulmanos.

Próximo ao rio Owar [Loire], os dois grandes exércitos, de duas línguas e de dois credos, estavam em ordem, um frente ao outro. Os corações de Abderrahman, de seus capitães e de seus homens estavam cheios de ira e orgulho, e eles foram os que primeiro começaram a lutar.3 Os cavaleiros muçulmanos dirigiram-se com ferocidade contra os batalhões dos francos, que resistiram virilmente. Muitos caíram mortos de ambos os lados, até o pôr do sol.

A noite separou os dois exércitos: mas ao amanhecer os muçulmanos voltaram à batalha. Os cavaleiros logo chegaram, sem muito esforço, no centro do batalhão cristão. Mas muitos os muçulmanos estavam temerosos pela segurança do espólio que tinham armazenado em suas barracas. Um falso grito surgiu nas suas fileiras, alertando que alguns dentre os inimigos estavam saqueando o acampamento; o que levou vários esquadrões da cavalaria muçulmana a voltarem atrás para proteger suas barracas.

Porém, parecia que eles estavam fugindo dos cristãos e todo o exército muçulmano ficou preocupado. E enquanto Abderrahman se esforçava para controlar o tumulto e conduzir os seus homens novamente para a luta, guerreiros francos o cercaram e ele foi perfurado por muitas lanças, de forma que morreu. Então todo o exército muçulmano evadiu-se ante o inimigo e muitos morreram na fuga (...)4

Notas

  • 1. Carlos Martel (686-741) foi mordomo do Palácio da Austrásia (715-741)
  • 2. Abu Said Abd ar-Rahman ibn Abd Allah al-Gafiqi, Wali (governador) de al-Andaluz
  • 3. Aqui o cronista anônimo faz um grande elogio aos seus, pois a iniciativa do combate era um ato muito considerado em batalha na Idade Média, tanto por muçulmanos quanto por cristãos.
  • 4. Traduzido e adaptado de CREASY, Edward. Fifteen Decisive Battles of the World. New York, E. P. Dutton & Co., s/d, p. 168-169.