História dos Francos (c. 591)

 

Aqui começa o Primeiro Prefácio

O culto das belas letras está em decadência e morre nas cidades da Gália. Enquanto as boas e as más ações se realizam, a barbárie dos povos se desencadeia, redobra o furor dos reis, as igrejas são atacadas pelos heréticos e protegidas pelos católicos, a fé do Cristo torna-se mais ardente entre muitos, mas indiferente entre outros, as igrejas enriquecem pelos devotos e são despojadas pelos infiéis, não podemos encontrar um único letrado bastante versado na arte da dialética para descrever tudo isso em prosa ou em versos métricos.

Freqüentemente muitos se lamentam, dizendo: “Maldita a nossa época, pois o estudo das letras está morto entre nós, e não encontramos no povo ninguém capaz de relatar por escrito os acontecimentos presentes”. Assim, como eu não cessava de escutar essas reflexões e outras semelhantes, disse a mim mesmo que, para que a lembrança do passado se conservasse, ela devia chegar ao conhecimento dos homens que estão por vir, mesmo sob uma forma grosseira. Eu não posso calar os conflitos dos medíocres nem a vida daqueles que vivem honestamente. Eu fui, sobretudo, estimulado, porque freqüentemente escutei dizer em meu círculo, para minha surpresa, que poucos compreendem um retórico a filosofar, mas muitos um rústico a falar. Quanto ao cálculo dos anos, eu decidi tomar o começo do mundo por ponto de partida do Livro Primeiro, ao qual indiquei abaixo os capítulos.

Começo (do quadro) dos capítulos do Livro Primeiro

I. Adão e Eva
II. Caim e Abel
III. Enoch, o justo
IV. O Dilúvio
V. Chus, inventor da idolatria
VI. Babilônia
VII. Abraão e Ninus
VIII. Isaac, Esaú, Jó e Jacó
IX. José no Egito
X. A travessia do Mar Vermelho
XI. O povo no deserto e Josué
XII. Cativeiro do povo de Israel e as gerações até Davi
XIII. Salomão e a construção do Templo
XIV. Divisão do Reino de Israel
XV. Cativeiro da Babilônia
XVI. Natividade do Cristo
XVII. Os diversos reinos das nações
XVIII. Em que época Lyon foi fundada
XIX. Presentes dos magos e morte dos bebês
XX. Milagres e paixão do Cristo
XXI. José que se esconde
XXII. Tiago, o apóstolo
XXIII. Dia da ressurreição do Senhor
XXIV. Ascensão do Senhor e morte violenta de Pilatos e de Herodes
XXV. Paixão dos apóstolos e Nero
XXVI. Tiago, Marcos e João, o evangelista
XXVII. Perseguição sob Trajano
XXVIII. Adriano; invenções dos heréticos; paixão de São Policarpo e de Justiniano
XXIX. São Potino, Irene e os outros mártires de lyoneses
XXX. Dos sete homens que foram enviados à Gália para pregar
XXXI. A Igreja de Bourges
XXXII. Crocus e o templo de Auvergne
XXXIII. Os mártires que foram supliciados em Auvergne
XXXIV. São Privado, mártir
XXXV. Cerin, bispo e mártir
XXXVI. Natividade de São Martinho e invenção da cruz
XXXVII. Jacques, bispo de Nisibis
XXXVIII. Morte de Antônio monge
XXXIX. Vinda de São Martinho
XL. A matrona Melanie
XLI. Morte violenta do imperador Valente
XLII. Reino de Teodoro
XLIII. Morte violenta do tirano Máximo
XLIV. Urbicus, bispo de Auvergne
XLV. São Hilídius, bispo
XLVI. Os bispos Nepotiano e Artemius
XLVII. Castidade de (dois) amantes
XLVIII. Morte de São Martinho

Fim do quadro dos capítulos do Livro I.

Em nome do Cristo, começo do Livro Primeiro das Histórias

Antes de descrever as lutas dos reis com as nações adversárias, dos mártires com os pagãos, das igrejas com os heréticos, eu desejo confessar minha fé, para que aquele que me leia não duvide que sou católico. Eu quis também, para aqueles que se desesperam com a aproximação do fim do mundo, indicar claramente o número de anos que escorre desde o começo do mundo, recolhendo nas crônicas e histórias um resumo dos fatos passados. Mas antes, eu suplico aos leitores que me desculpem se nas cartas e nas sílabas me acontece de transgredir as regras da arte da gramática, pois não as possuo plenamente.

Meu único cuidado é reter sem nenhuma alteração nem hesitação do coração aquilo que nos ordena acreditar na Igreja, pois sei que aquele que se tornou culpado de pecados pode obter o perdão de Deus pela pureza de sua fé.

Assim, eu acredito em Deus Pai Todo-Poderoso. Eu acredito em Jesus Cristo, seu filho único, Nosso Senhor nascido do Pai, que não foi engendrado, que sempre existiu com o Pai, não no tempo, mas antes do tempo, pois o Pai não poderia ser assim designado se ele não tivesse tido um Filho e este também não seria um filho se ele não tivesse um Pai. Quanto àqueles que dizem: “Foi um tempo onde não existia ainda”, eu os renego com execração e declaro que eles estão excluídos da Igreja. Eu acredito que o Cristo é o Verbo do Pai por quem todas as coisas foram criadas. Eu acredito que esse Verbo foi feito carne, que o mundo foi redimido por sua Paixão e acredito que foi Sua humanidade e não Sua divindade quem sofreu a Paixão. Eu acredito que Ele ressuscitou no terceiro dia, que libertou o homem que estava perdido, que subiu aos céus, que está sentado à direita do Pai e voltará e julgará os vivos e os mortos.

Eu acredito que o Espírito Santo procedeu do Pai e do Filho, que não lhes é inferior, que não é verdade que não tenha existido antes, mas que é igual a ambos, e que, sempre coeterno com o Pai e o Filho, é Deus, estando consubstancial em natureza com eles, igual a eles por sua todo-poderosa, sempiterna como eles em sua essência, que não foi jamais sem o Pai nem o Filho e que não é inferior nem ao Pai nem ao Filho. Eu acredito que essa Trindade Santa subsiste com Suas Pessoas distintas, que uma é a Pessoa do Pai, outra do Filho e outra do Espírito Santo. Eu confesso que nessa Trindade há apenas uma única Divindade, uma única Potência, uma única Essência. Eu acredito que a bem-aventurada Maria permaneceu virgem após sua concepção  como ela o era antes, e acredito fielmente em tudo o que foi instituído em Nicéia por 318 bispos.

Quanto ao fim do mundo, eu penso como aprendi dos antigos que antes virá o Anticristo. Pois o Anticristo instituirá antes a circuncisão pretendendo ser o Cristo, pois ele colocará no templo de Jerusalém sua estátua para que o adoremos como o Senhor o disse. Nós leremos: “Vós vereis a abominação da desolação se instalar no lugar santo”. Mas esse dia permanece ignorado de todos os homens. O Senhor mesmo declara, quando diz: “Ninguém sabe nada desse dia, nem dessa hora, nem mesmo os anjos dos céus, nem o Filho, salvo somente o Pai”. Sobre isso nós responderemos aos heréticos que nos atacam, pretendendo que o Filho é inferior ao Pai, pois Ele ignora esse dia. Que eles saibam, pois, que essa palavra Filho designa o povo cristão de quem Deus profetizou: “Eu serei para eles um pai, e eles serão para mim filhos”. Se a predição fosse aplicada ao Filho único, jamais Deus teria colocado os anjos antes Dele. Ele disse, com efeito: “Nem os anjos dos céus, nem o Filho, para mostrar que ele não falava do Filho único, mas do povo adotivo”. Nosso fim é o Cristo, ele mesmo, que nos dará a vida eterna com uma larga bem-aventurança, se nos convertermos a Ele.

Quanto à cronologia desse mundo, as Crônicas de Eusébio, bispo de Cesaréia, e de padre Jerônimo, expõem claramente, apresentando um cálculo de toda a série dos anos. Por sua vez, Horósio, que fez pesquisas muito diligentes, reuniu em um volume a cronologia completa, desde o começo do mundo até o seu tempo. Victorius , também fez a mesma coisa, assim como uma pesquisa sobre a data das solenidades da Páscoa. Seguindo os exemplos dos escritores pré-citados, nós nos propomos, se o Senhor condescender-nos e nos prestar Seu socorro, de calcular todo o conjunto dos anos, desde a criação do primeiro homem até o nosso tempo. Assim, nós chegaremos mais facilmente se começarmos pelo próprio Adão.

I. No começo, o Senhor formou o céu e a terra em seu Cristo, que é o princípio de todas as coisas, isto é, em Seu Filho, e, após a criação de todos os elementos do mundo inteiro, Aquele, pegando uma porção frágil de limo, fabricou um homem à Sua imagem e à Sua semelhança e soprou o sopro de vida sobre a face desse homem que se tornou assim uma alma vivente. Enquanto ele dormia, uma costela lhe foi retirada, uma mulher. Eva foi criada. Não é duvidoso que esse primeiro homem, Adão, prefigurou antes de pecar o Senhor redentor. O próprio Senhor, quando dormiu durante a Paixão, e de seu lado corria água e sangue, simbolizou a Igreja virgem e imaculada, redimida pelo sangue e purificada pela água, essa Igreja, que não tem mais esforço nem ferrugem, porque por seu esforço ela foi lavada nas águas por causa da ferrugem estendida sobre a cruz.

Pois, esses primeiros homens, que viveram felizes no meio das graças do Paraíso, seduzidos por uma astúcia de serpente, transgrediram os preceitos divinos e, expulsos de sua morada angelical, foram entregues aos sofrimentos do mundo.

II. Tendo conhecido seu companheiro, a mulher concebeu e deu a luz a dois filhos. Mas enquanto Deus acolheu favoravelmente o sacrifício de um dos dois, o outro se encheu de um ciúme ardente e, primeiro parricida, se dirigiu para retomar o sangue fraternal; ele atacou seu irmão, bateu-lhe, matou-lhe.

III. Desde então, a raça inteira está violentada para uma criminalidade execrável, à exceção de Enoch, o justo, que, andando nas vias de Deus, foi adotado por causa de sua honestidade pelo próprio Senhor, que o arrancou do meio do povo pecador. Nós lemos, com efeito, isto: “Enoch foi com Deus e desapareceu porque Deus o levou.”

IV. O Senhor, irritado com as iniqüidades do povo que não andava sob seus traços, provocou o dilúvio e destruiu todos os seres vivos da superfície da Terra que inundou esse dilúvio. Só Noé, que lhe era muito fielmente ligado, e que representava um exemplar de seu modelo divino, foi salvo numa arca com sua própria mulher e aqueles seus três filhos para que sua posteridade fosse continuada.

Aqui os heréticos nos criticam, nos perguntando por que a Escritura Santa disse que Deus se colocou em cólera. Que eles saibam, pois, que nosso Deus não se coloca em cólera como um homem. Ele fica descontente para nos amedrontar, nos persegue para nos chamar à ordem, se coloca em cólera para nos corrigir. Mas eu não hesito em pensar que esta espécie de arca simbolizava a mãe Igreja. Ela também, com efeito, vagava no meio das torrentes e dos rochedos deste século, nos acolhendo em seu seio maternal, seu piedoso abraço e sua proteção nos defendem contra os males que nos ameaçam.

De Adão até Noé nós contamos dez gerações: Adão, Set, Enos, Cainã, Malaleel, Jared, Enoch, Matusalém, Lamech, Noé. Durante essas dez gerações, 2.242 anos escorreram. Adão foi enterrado na terra dos Enacim, que foi antes nomeada Hebron, como indica claramente o Livro de Josué.

V.  Noé tinha antes do Dilúvio três filhos: Sem, Cham e Jafé. Povos saíram de Jafé assim como de Cham e de Sem e, como conta a história antiga, é por eles que o gênero humano se disseminou sob todos os céus. O filho primogênito de Cham foi Chus. Este foi o primeiro inventor da arte da magia e da idolatria que lhe ensinou o diabo. Primeiro ele elevou, à instigação do diabo, um ídolo destinado a ser adorado; ele mostrou também aos homens um pretendido milagre das estrelas e do fogo caindo do céu. Ele retornou junto aos persas e os persas o denominaram Zoroastro, isto é, a estrela viva. Preparados assim por ele para adorar o fogo, estes o adoram mesmo como um deus que um fogo divino teria consumido.

VI. Como os homens se multiplicando se dispersaram por toda a terra, eles descobriram ao sair do Oriente a planície verdejante de Sennaar, onde, edificando uma cidade, eles tentaram construir uma torre para tocar os céus. Mas Deus os confundiu, por sua vez, em sua vã pretensão e, em sua língua, dispersando o mundo sobre uma vasta extensão através de toda a terra, e o nome que se chamava a cidade era Babel, isto é, confusão, porque Deus aí teria confundido suas línguas. Babilônia foi edificada por Nemrod, o gigante, filho de Chus. Ela estava disposta, como conta a História de Orósio, em forma de quadrados, em uma planície admirável.

Suas muralhas, de pedra argilosa e de barro cozido, revestidas de betume, tinham cinqüenta cúbitos de largura, duzentos cúbitos de altura e 470 estádios de torno. Um estádio mede cinco arependis, havia vinte e cinco portas de cada lado, o que perfazia (um total de) cem portas. Os batentes dessas portas, de uma grandeza extraordinária, eram de bronze fundido. O mesmo historiógrafo conta bem outras coisas sobre essa cidade e acrescenta: “Apesar dessa magnificência de edifício, ele foi arruinado e demolido”.

VII. O filho primogênito de Noé foi Sem. Abraão é seu descendente na décima geração. Essas gerações são: Noé, Sem, Arphaxad, Salé, Héber, Falech, Rheu, Saruc, Tharé, que engendrou Abraão. Durante essas dez gerações, a saber, de Noé até Abraão, se conta 942 anos. Nesse tempo reinava Ninus, que edificou a cidade de Ninus, que se chama Nínive. O profeta Jonas avaliou o comprimento de seu perímetro em três jornadas de marcha. Foi no quadragésimo-terceiro ano de seu reinado que nasceu Abraão. Esse Abraão é o princípio de nossa fé. Ele recebeu as promessas.

O Cristo Nosso Senhor lhe revelou que nasceria e sofreria por nós operando uma mudança de vítima; ele próprio disse assim nos Evangelhos: “Abraão sobressaltou-se por ver meu dia; ele o viu, ele se rejubilou” . Esse holocausto foi oferecido sob o monte Calvário, onde o senhor foi crucificado, conta Sulpício Severo  em sua Crônica, e ainda a opinião corrente, na própria cidade de Jerusalém. Sob esse monte se estabeleceu a cruz santa, a qual o Redentor foi pregado e da qual seu sangue bem-aventurado correu.

Esse Abraão recebeu o sinal da circuncisão para mostrar que o que ele operou em seu corpo nós devemos suportar em nosso coração, como disse o profeta: “Circuncisai-vos para vosso Deus, e circuncidais o prepúcio de vosso coração, e não seguireis os deuses estrangeiros”. Depois, ainda: “Todos aqueles que não tiverem o coração circuncidado não entrarão em meu santuário”. Deus denominou Abraão o pai de numerosas nações após ter juntado uma sílaba a seu nome.

VIII. Quando esse último fez cem anos, engendrou Isaac. Depois, Isaac teve em sexagésimo ano dois filhos gêmeos de Rebeca. O primeiro foi Esaú ou Edom, isto é, o Camponês, que por glutonaria vendeu sua primogenitura. É o pai dos idumeus, dos quais saiu Jobab na quarta geração. Ele teve Esaú, Raguel, Zara, Jobab ou Jó. Esse último viveu 249 anos; ele estava no seu octogésimo-nono ano quando ele foi libertado de sua enfermidade. Após sua cura ele viveu 170 anos, todos os seus bens lhe foram restituídos em dobro e teve a alegria de ter tantos filhos quantos tinha perdido.

IX. O segundo foi Jacó. Jacó, o preferido de Deus, como ele disse pela boca do profeta: “Eu amei Jacó, mas odiei Esaú”. Depois de sua luta com o anjo, Jacó foi chamado Israel, e dele saíram os israelitas. Ele engendrou doze patriarcas: Rubens, Simão, Levi, Judá, Issachar, Zabulon, Dan, Naphatali, Gad, Asser. Depois eles engendraram José de Rachel quando ele estava no nonagésimo segundo ano de sua idade. Ele amou este último mais que seus outros filhos. Ele teve ainda dela Benjamin, o último de todos. Quando José tinha a idade de dezesseis anos, ele, que prefigurava o Redentor, teve sonhos que relatou a seus irmãos: parecia-lhe que ligava feixes de trigo e que seus irmãos adoravam o seu, e outra vez que o Sol e a Lua, assim como onze estrelas, avançavam diante dele. Essa coisa provocou junto a seus irmãos um grande ódio contra ele. Inflamados de ciúme, eles o venderam por trinta peças de prata aos ismaelitas, que iam ao Egito.

Na iminência de uma fome, no momento em que eles desciam ao Egito, eles foram reconhecidos por José, mas eles não reconheceram José. Finalmente, ele se fez conhecer a eles depois de tê-los submetido a numerosas provas, e quando trouxeram Benjamin, pois este último também nascera de Rachel, sua mãe. Depois desses acontecimentos, todos os israelitas desceram ao Egito, e por intermédio de José gozaram do favor do faraó. Quanto a Jacó, depois de ter abençoado seus filhos, morreu no Egito e foi enterrado por José no sepulcro de seu pai na terra de Canaã. Após a morte de José e do faraó, toda a raça foi reduzida à servidão. Ela foi libertada por Moisés depois das dez pragas do Egito, quando o faraó desapareceu no Mar Vermelho.

X. Como muitos falaram dessa travessia do mar, pareceu-me que devia inserir neste resumo alguns detalhes sobre o sítio deste reino e sobre a própria travessia. O Nilo corre através do Egito como vós o sabeis perfeitamente, e ele o irriga no seu curso, e é por isso que os egípcios são chamados também habitantes do Nilo. Numerosos visitantes desses lugares dizem que suas margens são agora cheias de monastérios sagrados. Sobre a margem desse rio está situada não a Babilônia que nós evocamos acima, mas a cidade de Babilônia, na qual José edificou, com uma arte admirável, silos em pedras de cantaria e em pedra não-talhada. Eles são muitos largos na base, mas estreitos no topo, de sorte que o trigo aí é introduzido por uma pequena abertura. Esses silos se vêem ainda hoje.

Foi desta cidade que o rei se dirigiu em perseguição aos hebreus com exércitos de carros e uma numerosa tropa a pé. O rio dito acima, que vem do Oriente, vai à direção do Ocidente para o mar Vermelho; mas à Ocidente, se destaca um lago ou um braço do Mar Vermelho. Ele corre em face de oeste em torno de cinqüenta milhas de comprimento e dezoito de largura. Na extremidade deste lago, a cidade de Clysma foi edificada não por causa da fertilidade do lugar, pois ele não é dos mais estéreis, mas pela comodidade de seu porto, aonde os navios que vinham da Índia aí paravam e de onde as mercadorias compradas são encaminhadas através de todo o Egito.

Os hebreus, que através do deserto se dirigiam em direção ao lago, chegavam até o dito mar e aí descobriram a água doce, eles aí acamparam. É nesse lugar, que está limitado por sua vez pelo deserto e o mar, que eles pararam como está escrito: “Faraó, sabendo que o mar e o deserto os tinham cercado e que eles não tinham solução para poder avançar, marchou em sua perseguição”. À aproximação dos egípcios, Moisés, que o povo tinha aclamado, jogou, sob a ordem da divindade, uma vara sob o mar, que se dividiu, e eles marcharam no seco e, protegidos de todos os lados, como disse a Escritura, por uma muralha de água chegaram direito, são e salvos, até a margem que está ao pé do monte Sinai, sob a condução de Moisés, enquanto os egípcios se afogaram.

Contou-se muitas coisas sobre essa travessia, como eu disse, mas nós nos reservamos a não reproduzir nesta página apenas os fatos que nós obtivemos de pessoas competentes e de uma maneira certa de homens que foram àqueles lugares. Eles contam também que os sulcos que foram feitos pelas rodas dos carros permanecerem até os nossos dias e que são discerníveis no fundo da água tanto quanto o olhar aí possa penetrar. A agitação do mar os esconde um pouco; mas logo que ele se acalma eles reaparecem de novo miraculosamente tais como eles eram.

Outros dizem que depois de terem feito um pequeno circuito através do mar, os hebreus teriam voltado à mesma margem de onde tinham partido. Outros ainda afirmam que a entrada no mar foi a mesma para todos, mas no dizer de alguns, cada tribo viu se abrir sua via própria; eles interpretaram abusivamente o testemunho dos Salmos: “Ele dividiu o Mar Vermelho em sendas”. Nós precisamos interpretar estas sendas num sentido espiritual e não ao pé da letra. Há, com efeito, neste século, que chamou ao figurado um mar, muitas “sendas”. Todos os homens não podem uniformemente, nem seguindo o mesmo caminho, chegar à vida eterna.

Uns, com efeito, a alcançam na primeira hora; são aqueles, que, nascidos de novo pelo batismo, podem perseverar sem ser maculados por todos os pecados da carne até o fim da vida presente. Outros a alcançaram na terceira hora; são aqueles que, em sua maioria, se converteram; outros à sexta; são aqueles que reprimem os ardores da luxúria. É, pois, a essas diferentes horas, como expôs o evangelista, que eles são conduzidos à obra da vinha do Senhor segundo sua fé pessoal. Tais são as sendas pelas quais se atravessa esse mar.

Quanto à assertiva segunda a qual os hebreus chegados até o mar e teriam retornado para ocupar a margem do lago, é uma alusão ao que o Senhor disse a Moisés: “No seu retorno, que eles acampem na região de Phiairoth, que é entre Magdal e o mar frente a Beelsephon”. Não é duvidoso que essa passagem do mar e a coluna de nuvens simbolizam nosso batismo, assim como disse o bem-aventurado apóstolo Paulo: “Eu não quero vos deixar ignorar, irmãos, que nossos pais foram todos sob uma nuvem que todos foram batizados sob a condução de Moisés no meio da nuvem e do mar”. Quanto à coluna de fogo, ela prefigurou o santo espírito. Da natividade de Abraão até a saída do Egito dos filhos de Israel e a passagem do Mar Vermelho, que teve lugar no octogésimo ano de Moisés, conta-se um número de quatrocentos e sessenta de dois anos.

XI. Em seguida, durante quarenta anos, os israelitas habitaram o deserto. Eles foram instruídos nas leis e foram alimentados de alimentos angélicos. Em seguida, depois de ter recebido a lei e atravessado o Jordão com Josué, eles obtiveram a terra prometida.

XII. Após sua morte, enquanto eles desprezaram os preceitos divinos foram freqüentemente submetidos ao jugo dos povos estrangeiros. Mas, convertendo-se, eles sofreram, e com o socorro de Deus eles foram libertados pelos braços dos homens fortes. Depois disso, eles pediram ao Senhor, por intermédio de Samuel, um rei como as outras nações; eles receberam primeiro Saul, depois David. Assim, de Abraão até David houve quatorze gerações: Abraão, Isaac, Jacó, Judá, Pharis, Esdrom, Aram, Aminadab, Naasson, Salma, Booz, Obeth, Jessé, David; Davi engendrou, por sua vez, de Betsabé a Salomão. Este último foi elevado ao trono pelo profeta Nathan, por seu irmão e por sua mãe.

XIII. Depois da morte de David, quando seu filho começou a reinar, o Senhor lhe apareceu e prometeu-lhe concordar com o que ele pedisse. Mas ele, desdenhando as riquezas terrestres, pediu, de preferência, a sabedoria. Isto agradou ao Senhor assim que o escutou: “Você não buscou os reinos do mundo, nem suas riquezas, mas você buscou a sabedoria; recebei-a, pois. Antes de você não houve ninguém que fosse tão sábio e após você não haverá.” É o que se provou em seguida no julgamento que ele pronunciou em um litígio entre duas mulheres a respeito de uma criança. Salomão edificou um templo admirável ao Senhor; empregou muito ouro e prata, bronze e ferro, de sorte que alguns diziam que jamais semelhante edifício tinha sido construído no mundo.

Da saída do Egito dos filhos de Israel até a construção do templo, que teve lugar durante o sétimo ano do reino de Salomão, contam-se quatrocentos e oitenta anos do testemunho da história dos reis.

XIIII. Depois da morte de Salomão o reino foi dividido em duas partes por causa da duração de Roboão. Duas tribos ficaram com Roboão; chamavam-nas Judá. A Jeroboão adveio dez tribos que foram denominadas Israel. Depois disso, eles (os judeus) caíram na idolatria e nem as prédicas dos profetas, nem seus próprios males, nem os desastres da pátria, nem a queda de seus reis, os corrigiram.

XV. Finalmente o Senhor, irritado, incitou contra eles Nabucodonosor, que os levou em cativeiro à Babilônia com tudo o que decorava o templo. Durante esse cativeiro, Daniel, profeta eminente, que, cercado de leões famintos, não tinha sofrido nenhum ferimento, e três crianças, que tinham escapado do meio das chamas vivas, partiram cativas. Foi também durante esse cativeiro que Ezequiel profetizou e nasceu o profeta Esdras.

Desde David até a destruição do templo e o cativeiro da Babilônia, houve catorze gerações: David, Salomão, Roboão, Abia, Asa, Josafá, Joram, Ozias, Joatham, Achaz, Ezequiel, Manassés, Amon e Josias. Durante essas catorze gerações conta-se um número de trezentos e noventa anos . E eles (os judeus) foram libertos desse cativeiro por Zorobabel, que restaurou, em seguida, o templo e a cidade. Esse cativeiro é, eu o penso, o símbolo do cativeiro na qual é conduzida a alma pecadora e onde ela será horrivelmente exilada, se Zorobabel, isto é, o Cristo, não libertá-la.

O próprio Senhor, com efeito, disse no Evangelho: “Quando o Filho vos tiver libertado, vós sereis livres.” Que se preparem então em nós um templo onde ele condescenderá habitar, um templo onde a fé luzirá como ouro, onde a eloqüência da predicação resplandecerá como a prata, onde todos os ornamentos desse templo visível brilham graças à pureza de nossos sentimentos. Que à nossa boa-vontade ele condescenda consentir um efeito salutar, pois “se não é ele que terá edificado a morada, é em vão que trabalharão aqueles que a quiseram edificar”. Diz-se que esse cativeiro durou setenta anos.

XVI. Tendo retornado graças a Zorobabel, como nós o dissemos, logo eles murmuraram contra Deus, logo eles se jogaram aos pés dos ídolos e imitaram as abominações que praticavam os gentios. Pois, enquanto desprezavam os profetas de Deus, eles foram entregues aos gentios, colocados sob o jugo, massacrados até que o próprio Senhor, prometido pela voz dos patriarcas e dos profetas, desceu no seio da Virgem Maria por intermédio do Espírito Santo, condescendendo nascer para a redenção tanto desta nação quanto de todas as nações.

Desde a transmigração até a natividade do Cristo, houve catorze gerações: Jechonias, Salathiel, Zorobabel, Abiúde, Eliacim, Azor, Sadoc, Joachim, Eliud, Eleazarde, Mathan, Jacó, José, esposo de Maria, de quem Nosso Senhor Jesus Cristo nasceu, e da qual José conta como a décima quarta.

XVII. Para não ter o ar de conhecer que existe somente o povo hebreu, lembremos os outros reinos e em que tempo da história dos israelitas eles existiram: no tempo de Abraão, Ninus reinava sobre os assírios, Europa sobre Sycione ; em relação aos egípcios, era o décimo sexto governo que em sua língua eles chamavam dinastia. No tempo de Moisés, junto aos Argians, reinava Tropas, seu sétimo rei; na Ática, Cécrops, o primeiro rei ; junto aos egípcios Cencris, o décimo segundo, aquele que foi afogado no Mar Vermelho; junto aos assírios, Agatad, o décimo sexto; junto aos Sicionianos, Marate.

No tempo de Salomão, quando ele reinava sobre Israel, entre os latinos reinava o quinto rei, Sylvios; entre os lacedemônios, Festus; em Corinto, o segundo rei, Óxion; entre os egípcios, os tebanos reinavam desde 126; entre os assírios reinava Eutrope; entre os atenienses, o décimo rei, Agasate.

No tempo em que Amon reinava sobre Judá, quando o povo partiu em cativeiro para a Babilônia, Argeu reinava sobre os macedônios, Gygès sobre os lídios, Vafrés sobre os egípcios; na Babilônia era Nabucodonosor, que os trouxera em cativeiro, entre os romanos, o sexto rei, Servius.

XVIII. Depois desses personagens, Júlio César foi o primeiro imperador que obteve o poder monárquico sobre todo o império. O segundo foi Otávio, sobrinho de Júlio César, que chamamos Augusto. É dele que o mês de agosto tirou seu nome. É durante o décimo nono ano de seu reino que Lyon foi fundada nas Gálias, como nós descobrimos de uma maneira muito certa. Essa cidade foi em seguida ilustrada e muito belamente qualificada com o sangue dos mártires.

XIX. No quadragésimo terceiro ano do reino de Augusto, Nosso Senhor Jesus Cristo nasceu pela carne, como nós o dissemos, da Virgem Maria em Belém, fortaleza de David. Vendo do lado do Oriente uma grande estrela, magos vieram com presentes e modestamente adoraram a criança, oferecendo seus presentes. Herodes, ciumento de sua realeza e se esforçando para perseguir o Cristo Deus, colocou as crianças à morte. Ele próprio também foi atingido em seguida pela justiça divina.

XX. Pois enquanto o Senhor nosso Deus, Jesus Cristo, pregava a penitência, distribuindo a graça do batismo, prometendo o reino celeste a todas as nações, operando prodígios e milagres entre as populações, transformando água em vinho, fazendo desaparecer as febres, dando a luz aos cegos, devolvendo a vida aos homens enterrados, libertando os possuídos dos espíritos imundos, curando os leprosos que tinham vergonha de sua pele miserável, e, enquanto realizava ainda muitos outros milagres, mostrando às populações da maneira mais manifesta que ele era seu Deus, a cólera se acendeu entre os judeus, seu ciúme se desencadeou e seu espírito, alimentado do sangue dos profetas, trabalhou criminosamente preparando a morte do Justo.

Também para que fossem cumpridos os oráculos dos velhos profetas, ele foi traído por um discípulo, condenado pelos pontífices, ridicularizado pelos judeus, crucificado com criminosos e depois de ter entregue a alma, guardado pelos soldados. Essas coisas acontecidas, as trevas se espalharam pelo mundo inteiro e muitos que tinham se convertido gemendo confessaram-se a Jesus, filho de Deus.

XXI. Prendeu-se também José que, após o ter embalsamado, o tinha enterrado em seu próprio sepulcro. José foi fechado em uma cela e guardado pelos príncipes dos próprios padres que tinham, como o relatam os atos de Pilatos endereçados ao imperador Tibério, mais de animosidade contra ele que contra o próprio Senhor. Ele também estava guardado pelos próprios padres enquanto que este o foi por soldados. Mas quando o Senhor ressuscitou enquanto os guardas estavam alarmados por uma visão angélica e não se encontravam na tumba, as paredes da cela na qual José estava detido suspenderam-se no ar durante a noite e ele foi libertado da prisão por um anjo que o descobriu, depois os muros foram colocados no lugar. Como os pontífices culpavam os guardas eles reclamavam com insistência o corpo santo, os soldados disseram-lhe: “Devolvei-vos vós mesmos José, nós devolveremos o Cristo; mas, dizendo a verdade, vós não sois mais capazes de devolver o benfeitor de Deus que nós o filho de Deus”. Os tendo assim confundidos, os soldados foram liberados sob essa desculpa.

XXII. Relata-se que quando o apóstolo Tiago viu o Senhor já morto sobre a Cruz, teria atestado e jurado que não comeria pão até contemplar o Senhor ressuscitado. Também quando no terceiro dia o Senhor voltou após ter vencido triunfalmente o Tártaro, ele se mostrou a Tiago e disse: “Levantai Tiago, come, porque eu ressuscitei dentre os mortos”. Esse personagem Tiago, “O Justo” se chama o “irmão do Senhor” porque era filho de José, que o tinha engendrado de outra mulher.

XXIII. Nós acreditamos que o domingo da ressurreição teve lugar no primeiro dia (da semana) e não no sétimo, como muitos pensam. É o dia da ressureição do Nosso Senhor Jesus Cristo que nós chamamos precisamente domingo, por causa da santa ressurreição. Foi o primeiro dia que viu a luz no começo do mundo, e foi o primeiro que mereceu contemplar o Senhor ressuscitando da tumba.

Desde o cativeiro de Jerusalém e a destruição do Templo até a Paixão do Nosso Senhor Jesus Cristo, isto é, até o décimo sétimo ano de Tibério, conta-se 668 anos.

XXIV. O Senhor ressuscitado se entreteve durante quarenta dias com seus discípulos do reino de Deus. Diante seus olhares Ele foi levado numa nuvem e subiu aos céus onde está sentado gloriosamente à direita do Pai. Quanto a Pilatos, ele enviou seus atos a Tibério César e fez um resumo tanto dos milagres do Cristo quanto de sua paixão e de sua ressurreição. Esses atos nos são hoje conservados. Disso fez Tibério um resumo aos senadores, mas o Senado os rejeitou com indignação porque eles não lhe tinham sido endereçados em primeiro lugar. É daí que os primeiros germes do ódio contra os cristãos se multiplicaram.

Entretanto, Pilatos não permaneceu impune por sua maldade criminosa, o assassinato que cometeu contra Nosso Senhor Jesus Cristo: ele se matou com as próprias mãos. Muitos acreditam que ele foi maniqueísta, baseando-se nessa frase que se lê no Evangelho: “Vários vieram dentre os galileus, para lhe anunciar que Pilatos tinha misturado seu sangue àquele de seus sacrifícios”. Da mesma maneira, o rei Herodes, enraivecido contra os apóstolos do Senhor, foi atingido pela vontade divina por todos os seus crimes. Intumescido e cheio de vermes, ele pediu uma faca para curar seu mal e achou a liberdade golpeando-se com sua própria mão.

XXV. O bem-aventurado apóstolo Pedro chegou a Roma sob o imperador Cláudio, o quarto desde Augusto. Ali ele pregou e provou por numerosos milagres, da maneira mais evidente, que o Cristo é o Filho de Deus.

Foi desde essa época que começou a existir cristãos na cidade de Roma. Pois, como o nome do Cristo se espalhava cada vez mais através das populações, o ciúme da antiga serpente se levantou contra Ele e em todas as entranhas o imperador Nero, este debochado, vão e soberbo. Esse súcubo se entregava aos homens ao mesmo tempo em que os desejava; ele, que violou sua mãe da maneira mais imunda, suas irmãs e todas as mulheres de sua corte, atingiu o ápice de sua malícia atacando primeiro o culto do Cristo e desencadeando uma perseguição contra os crentes.

Ele tinha ao seu lado Simon, o mágico, homem cheio de crueldade e antigo mestre em toda a arte da magia. Esse personagem tinha sido expulso pelos apóstolos do Senhor, Pedro e Paulo. Furioso porque eles pregavam o Cristo filho de Deus e desdenhavam a adoração dos ídolos, Nero fez Pedro perecer sobre a cruz e Paulo pela espada. Mas ele próprio, que buscava fugir de uma revolta dirigida contra ele, se matou com suas próprias mãos a quatro milhas da cidade.

XXVI. Tiago, irmão do Senhor, e Marcos, o Evangelista, receberam então a coroa de um martírio glorioso pelo nome de Cristo; mas o primeiro de todos que entrou nesse caminho foi o mártir levita Etienne. Após o assassinato do apóstolo Tiago, uma grande calamidade se abateu sobre os judeus. Com efeito, quando da ascensão de Vespasiano, o templo foi incendiado e 600.000 judeus pereceram nessa guerra, pela espada e pela fome. Quanto à Domiciano, ele foi o segundo depois de Nero a exercer a repressão com rigor contra os judeus. Ele confinou o apóstolo João ao exílio na ilha de Patmos, e cometeu diversas crueldades contra as populações. Depois de sua morte, o bem-aventurado apóstolo evangelista João voltou do exílio. Quando ele ficou velho e cheio de dias, após uma vida perfeita a serviço de Deus, ele se deitou vivo em um sepulcro. Relata-se que ele não experimentou a morte até que o Senhor viesse de novo para julgar; é ele mesmo quem diz nos evangelhos  nesses termos: “Eu quero que ele permaneça até que Eu volte”.

XXVII. O terceiro após Nero, Trajano, desencadeou uma perseguição contra os cristãos. É sobre ele que o bem-aventurado Clemente, que foi o terceiro bispo da Igreja Romana, sofreu o martírio, que São Simeão, bispo de Jerusalém, filho de Cleofas, foi, diz-se, crucificado pelo nome do Cristo e que Inácio, bispo de Antioquia, foi conduzido à Roma e entregue às feras. Tudo isso se cumpriu no tempo de Trajano.

XXVIII. Depois dele, Hélios Adriano foi imperador. Foi por Hélios Adriano, sucessor de Domiciano, que Jerusalém foi denominada aelia, porque foi ele quem a restaurou. Depois dessas paixões dos santos, não foi suficiente ao partido adverso ter excitado as nações incrédulas contra os adoradores do Cristo; foi necessário ainda desencadear cismas entre os próprios cristãos. Provocou heresias, e a fé católica dividida e interpretada de uma maneira e de outra. Com efeito, sob o reino de Antonino, surgiu o erro absurdo dos marcionitas e dos valentinianos, e Justino, o filósofo, após ter escrito obras sobre a igreja católica, recebeu a coroa do martírio pelo nome do Cristo.

Na Ásia, onde se desencadeou uma perseguição, o bem-aventurado Policarpo, discípulo de João, apóstolo e evangelista, foi consagrado ao Senhor pelo fogo no octogésimo-primeiro ano de sua idade com um puríssimo holocausto. Nas Gálias muitos foram coroados de pérolas celestes em nome do Cristo graças a seus martírios. As narrativas de suas paixões são conservadas fielmente entre nós até os nossos dias.

XXIX. Entre esses mártires havia o primeiro bispo da igreja de Lyon, Pothin, e cheio de dias  sofreu e suportou diversos suplícios em nome do Cristo. Pois o bem-aventurado Irineu, sucessor desse mártir, que tinha sido enviado a esta vila pelo bem-aventurado Policarpo, se distinguiu por suas admiráveis virtudes. Em um curto espaço de tempo converteu inteiramente, sobretudo pela predicação, a cidade ao cristianismo. Mas quando veio a perseguição, o diabo perpetrou, pela mão de um tirano, matanças e uma tão grande multidão de cristãos aí foi degolada por ter confessado o nome do Senhor que através dos lugares escorreu o sangue cristão. Nós não podemos recolher seu nome (do tirano), nem seus nomes (dos cristãos), pois o Senhor os registrou no livro da vida. Infligindo ao bem-aventurado Irineu diversos suplícios em sua presença, o carrasco o consagrou ao Senhor Cristo pelo martírio. Depois dele quarenta e oito mártires foram também supliciados, entre eles nós lemos que o primeiro foi Véctios Epagathus.

XXX. Sob Dece, imperador, numerosos conflitos se desencadearam contra o nome cristão, e houve tantos massacres de cristãos que é impossível numerá-los. Babylas, bispo de Antioquia, com três crianças, a saber, Urbano, Prilidan e Epolon; Xisto, bispo da igreja romana, e Laurent, arcediago, assim como Hipólito, pereceram martírios por terem confessado o nome do Senhor. Valentiniano e Novatien, que eram então os principais chefes dos heréticos, atacaram a nossa fé sob a pressão do inimigo.

Nesse tempo, sete homens, que tinham sido ordenados bispos, foram enviados para pregar nas Gálias, como conta a história da paixão do santo mártir Saturnino. Ele disse: “Sob Dece e Grat, cônsules, assim como uma fiel lembrança disso é conservada, a cidade de Toulouse recebeu São Saturnino, seu primeiro e eminente bispo”. Vejamos, pois, aqueles que foram enviados: junto aos turanginos o bispo Gatien, entre os arlesianos o bispo Trophine, em Narbonna o bispo Paulo, em Toulouse o bispo Saturnino, entre os parisienses o bispo Denis, na Auvergne o bispo Austremoine; junto aos limusinos, Martial foi designado como bispo. Um deles, o bem-aventurado Denis, bispo de Paris, depois de ter sofrido diversos suplícios em nome do Cristo, terminou a vida presente golpeado pela espada.

Quanto à Saturnino, quando estava seguro de sofrer o martírio, disse a dois de seus padres: “Veja que eu já estou imolado, e o momento de minha desaparição é iminente. Eu vos peço não abandonar-me completamente enquanto meu fim não tiver sido completo como ele deve ser”. Enquanto que, após sua prisão, ele foi conduzido ao capitólio, aqueles o abandonaram e ele ficou estendido sozinho. Quando se viu abandonado por eles, conta-se que ele fez essa súplica: “Senhor Jesus Cristo, escute-me do alto de teu santo céu. Que jamais essa igreja mereça o destino de ter um pontífice escolhido entre seus habitantes”. Pois nós sabemos o que se passou até agora nessa cidade. Quanto a ele, foi amarrado atrás de um touro furioso e precipitado do alto do capitólio. Assim ele terminou sua vida.

Gatien, Trophine e Austremoine, assim como Paulo e Marcial, que viveram na maior santidade depois de terem conquistado a Igreja dos povos e difundido em todos os lugares a fé do Cristo, faleceram numa bem-aventurada contrição. Assim deixando a terra, uns pela via do martírio, outros por contrição, esses homens foram igualmente reunidos no mundo celeste.

XXXI. Um de seus discípulos, encontrando-se na cidade de Bourges, anunciou aos habitantes aquele que dá a salvação a todos, o Cristo Senhor. Entre estes, somente alguns eram crentes; ordenados clérigos, eles se iniciaram na prática do canto e aprenderam como se constrói uma igreja e como se devem celebrar as solenidades em honra do Deus Todo-Poderoso; mas, ainda tendo somente poucos recursos para construir, eles buscaram a casa de um habitante para dela fazer uma igreja. Os senadores e outros personagens mais afortunados do lugar estavam então ligados aos cultos pagãos; quanto aos crentes, eles pertenciam aos meios pobres, conforme a palavra do Senhor, onde ele culpa os judeus nesses termos: “Os prostituídos e os publicanos vos precederão no Reino de Deus”.

Aqueles, pois, não tendo obtido a casa deste a quem eles tinham pedido, foram encontrar um certo Leocádius, eminente senador das Gálias, que pertencia à família de Véctius Epagathus, o qual tinha sofrido o martírio em Lyon em nome do Cristo, como nós lembramos acima. Quando eles lhe expuseram sua petição, ao mesmo tempo em que sua fé, esse homem respondeu: “Se a casa que eu tenho na cidade de Bourges devesse ser digna dessa obra, eu não recusaria emprestá-la”.

Escutando estas palavras, eles se prosternaram aos seus pés e, tendo-lhe oferecido 300 peças de ouro com um prato de prata, lhe disseram que essa casa era digna que aí se celebrassem os mistérios. Aceitando deles três peças de ouro a título de agradecimento, ele lhes abandonou generosamente o resto, e como ainda estava engajado nos erros da idolatria, se fez cristão e fez de sua casa uma igreja. É agora a primeira igreja da vila de Bourges. Ela foi admiravelmente restaurada e ornada das relíquias do primeiro mártir Etienne.

XXXII. Valeriano e Galiano foram os vigésimos sétimos a governar o Império Romano; eles desencadearam em seu tempo uma grande perseguição contra os cristãos. Foi então que Cornélio ilustrou Roma com seu sangue bem-aventurado e Cipriano Cartago. Em seu tempo também Chrocus, rei dos alamanos, tendo erguido um exército, invadiu as Gálias. Conta-se que esse Chrocus era de uma grande arrogância. Após ter cometido um número de maldades supostamente pelo conselho de uma mãe má, ele mobilizou, como nós dissemos, a nação dos alamanos, invadiu todas as Gálias e demoliu de cima abaixo todos os monumentos que tinham sido construídos desde a Antigüidade.

Vindo à Auvergne, ele incendiou, destruiu e demoliu o templo que se chama na língua gaulesa, Vasso-Galate. Esse templo tinha sido feito e restaurado admiravelmente. Sua parede era dupla. Era formado internamente por pequenos blocos de pedra e, no exterior, por pedras de cantaria (taille). Esse muro tinha uma espessura de 30 pés. Quanto ao interior, era decorado de mármore e de mosaico. O piso também era de mármore; por cima tinha um teto de chumbo.

XXXIII. Perto dessa cidade, Liminius e Antoliano, mártires, descansam. Foi lá que Cássios e Victorino, associados no amor do Cristo por uma afeição fraternal, ganharam igualmente o reino dos céus vertendo seu próprio sangue. Com efeito, uma tradição antiga conta que Victorino tinha iniciado como servidor do padre do templo pré-citado. Freqüentemente em um burgo que se chama o burgo dos cristãos para perseguir os cristãos, ele encontrou Cássios, que era cristão. Tocado por suas pregações e seus milagres, ele acreditou no Cristo. Deixou as grosserias da idolatria e, santificado pelo batismo, adquiriu um grande nome ao operar milagres. Pouco depois, associados sobre a terra, como nós o dissemos, pelo martírio, (todos os dois) ganharam igualmente o reino celeste.

XXXIV. Quando os alamanos se lançaram sobre a Gália, São Privat, bispo da cidade de Javols, foi descoberto numa gruta da montanha de Mende, onde se entregava aos jejuns e à prece enquanto a população era aprisionada na fortaleza do castelo de Grèzes. Enquanto ele não consentiu, como um bom pastor, em entregar suas ovelhas ao lobo, foi forçado a sacrificá-las aos demônios. Maldizendo essa vilania, ao mesmo tempo em que se recusou a cometê-la, ele foi espancado a golpes de bastão até que o tiveram por morto. Depois dessa tortura, ele entregou a alma no fim de poucos dias. Quanto a Chrocus, prenderam-no em Arles, cidade das Gálias, e fizeram-no sofrer diversos suplícios, pois ele pereceu de um golpe de espada, expiando como merecia os suplícios que tinha infligido aos santos de Deus.

XXXV. Sob Diocleciano, que foi o trigésimo-terceiro a governar o império romano, uma grave perseguição foi desencadeada contra os cristãos durante quatro anos. Matou-se mesmo uma vez no muito santo dia de Páscoa uma grande multidão de cristãos, porque eles praticavam o culto do verdadeiro Deus. Nesse tempo, Quirinus, bispo da igreja de Sissek , sofreu um glorioso martírio em nome do Cristo. Depois de ter amarrado ao pescoço uma pedra de calcário, a ferocidade dos pagãos o precipitou no abismo de um rio. Quando ele caiu no abismo, permaneceu longo tempo sob as águas, sustentado por um milagre divino. Essas águas não engoliram o homem sob o qual o peso do pecado não exercia pressão.

A multidão do povo à volta, admirando esse fato, se precipitou para livrar o bispo, a despeito do furor dos gentios. Vendo isso, ele não suportou ser subtraído ao martírio, mas com olhos levantados ao céu, gritou: “Senhor Jesus, você que está sentado gloriosamente à direita do Pai, não permita que me afastem desse estado, mas, recolhendo minha alma, condescenda-me reunir-me a teus mártires no repouso eterno.” Depois dessas palavras ele entregou sua alma. Seu corpo foi recolhido por cristãos e enterrado com veneração.

XXXVI. Constantino, o trigésimo-quarto a ocupar o império dos romanos, reinou com felicidade durante trinta anos. Durante o décimo-primeiro ano de seu reino, quando depois da morte de Diocleciano a paz tinha sido devolvida às igrejas, o mui bem-aventurado prelado Martinho nasceu em Sabaria, cidade da Panônia, de pais gentios, porém não de baixa condição. Durante o vigésimo ano de seu reinado, o dito Constantino aprisionou Crispus, seu filho, e assassinou Fausta, sua mulher, em um banho quente, porque todos os dois quiseram traí-lo, ele, o imperador.

Em seu tempo o venerável bosque da Cruz do Senhor foi descoberto graças aos esforços de sua mãe Helena, sob a indicação de Judá, um hebreu que depois do batismo recebeu o nome de Quiriacus. Foi até esta época que o historiógrafo Eusébio prosseguiu sua Crônica. A partir do vigésimo-primeiro ano do reinado deste imperador, Jerônimo fez adições. Ele indicou que o padre Juvencas colocasse os Evangelhos em versos sob o pedido do dito imperador.

XXXVII. Foi sob o reinado de Constâncio que viveu Tiago de Nisibis. Cedendo à suas preces, as orelhas da divina clemência afastaram muitos perigos de sua cidade. Cita-se também Maximino, bispo de Trèves, que se distinguiu por sua grande santidade.

XXXVIII. Durante o décimo nono ano do reinado de Constantino, o Jovem, Antônio, morreu no seu centésimo quinto ano. Mas essa morte é datada por Jerônimo, que somente lhe deu cem anos, do décimo nono ano do reinado de Constâncio, e não com escreveu Gregório daquele de Constantino, o Jovem. O mui bem-aventurado Hilário, bispo de Poitiers foi enviado ao exílio por instigação dos heréticos; aí ele escreveu livros em favor da fé católica que enviou a Constâncio; este, tendo-lhe agraciado no curso do quarto ano do seu exílio, permitiu-lhe retornar à sua casa.

XXXIX. Então, aparecia também nossa luz e novos raios luminosos aclararam a Gália; foi o tempo no qual o mui bem-aventurado Martinho começou a pregar nas Gálias. Manifestando às populações por numerosos milagres que o Cristo, filho de Deus, é o verdadeiro Deus, ele fez recuar a incredulidade dos gentios. Igualmente, destruiu templos, sufocou a heresia, edificou igrejas e, ao mesmo tempo, ilustrou-se por outros numerosos milagres, devolvendo a vida a três mortos para aperfeiçoar seus títulos de glória. Durante o quarto ano (dos reinados) de Valentiniano e de Valente, São Hilário de Poitiers, cheio de santidade e de fé, reputado por seus numerosos milagres, emigrou aos céus; ele também, nós lemos, ressuscitou dos mortos.

XL. Melânia, nobre matrona e habitante da cidade de Roma, partiu para Jerusalém por devoção, deixando Urbano, seu filho, em Roma. Ele se mostrou tão cheio de bondade e de santidade a todos que foi denominado thècle pelos habitantes.

XLI. Depois da morte de Valentiniano, Valente, seu sucessor no império inteiro, obrigou os monges ao serviço militar e ordenou espancar os refratários a golpes de vara. Em seguida, os romanos fizeram uma encarniçada guerra na Trácia. A carnificina foi tal que os romanos, privados da ajuda dos cavalos, tiveram que fugir a pé. Enquanto eram massacrados pelos godos em uma grande matança, Valente, que ferido por uma flecha, fugia, se refugiou em uma pequena cabana diante da ameaça dos inimigos, mas a cabana, tendo sido incendiada em cima dele, privou-o da sepultura desejada. Foi assim que a vingança divina, merecida pela efusão do sangue dos santos, se manifestou finalmente. Nessa parte para Jerônimo, e a partir dessa época, foi Orósio padre que escreveu a seqüência.

XLII. Quando o imperador Graciano viu que a república estava desorganizada, fez de Teodósio seu colega no império. Esse Teodósio colocou toda a sua esperança e sua confiança na misericórdia de Deus. Ele manteve na obediência numerosas nações menos pela espada do que pelos cuidados e preces, consolidando a república e entrando na cidade de Constantinopla como vencedor.

XLIII. Maximiniano, que tinha conseguido uma vitória por sua tirania esmagando os bretões, foi estabelecido imperador por seus soldados. Ele estabeleceu sua sede na cidade de Trèves e, após ter adormecido, traiçoeiramente o imperador Graciano o matou. O bem-aventurado Martinho, que era já bispo, veio encontrar esse Maximiniano. No lugar de Graciano, Teodósio, aquele que tinha colocado toda a sua esperança em Deus, tomou todo o império nas mãos. Em seguida, confiando nas inspirações divinas, despojou Maximiniano do império e o matou.

XLIV. Em Auvergne, após Austremoine, bispo e pregador, o primeiro bispo foi Urbicus, de família senatorial, que se convertera. Ele tinha uma esposa que, segundo o costume eclesiástico, tinha renunciado a todo o comércio com o bispo, e vivia religiosamente. Eles se ocupavam, todos os dois, à prece, à caridade e às boas obras. Enquanto eles se comportavam assim, a perversidade do inimigo, que era sempre ciumenta da santidade, se levantou junto à mulher. Inflamada de concupiscência por seu marido, ele fez dela uma nova Eva.

Inflamada pela paixão, envolvida pelas trevas do pecado, essa mulher retornou à casa da igreja através das trevas da noite. Tendo encontrado tudo cerrado, ela se pôs a bater às portas da casa eclesiástica e dizer: “Até quando dormirás tu, bispo? Porque tu desdenhas tua companheira? Porque com as orelhas tampadas, recusas tu escutar os preceitos de Paulo? Ele escreveu, com efeito: “Volte em direção a outro, afim de que Satã não vos tente”. Veja que eu voltei para ti e não foi a um vaso estrangeiro, mas ao meu próprio vaso que retornei.”

Enquanto ela insistia em fazer esses discursos e outros semelhantes, os escrúpulos do bispo acabaram abrandando-se. E ele a fez penetrar em sua cama e, após ter dormido com ela, a expulsou. Voltando em seguida a si, desolado do pecado que perpetrou, ele entrou em um monastério de sua diocese para fazer penitência, e quando aí expiou nos gemidos e nas lágrimas o erro que tinha cometido, voltou à cidade. Quando o curso de sua vida se completou, ele deixou esse mundo. Pois uma filha nasceu dessa união; ela permaneceu na religião. O dito bispo, assim como sua esposa e filha, foram enterrados numa cripta em Chantoin, ao longo da calçada pública. Em seu lugar foi colocado o bispo Legonus.

XLV. Quando este último morreu, São Ilidius o sucedeu; era um homem de santidade iminente e de uma virtude notável, que se distinguia de tal maneira por sua santidade que sua reputação penetrou até nos países estrangeiros. Isso fez com que o chamassem para curar do espírito imundo a filha do imperador de Trèves, o que nós relatamos no livro que escrevemos sobre sua vida. Ele viveu, como conta a tradição, até muito velho, cheio de dias e de boas obras. Quando ele percorreu com felicidade até o fim o caminho dessa vida, emigrou até junto do Cristo e foi enterrado em uma cripta nos arredores dessa cidade. Ele tinha um arcediago que levava o nome de Juste. Esse homem passou o curso de sua vida nas boas obras, e divide o túmulo de seu mestre. Logo depois da morte do bem-aventurado confessor Ilidius, seu glorioso sepulcro foi teatro de tão numerosos milagres que é impossível lhes descrever inteiramente e de deles reter a lembrança. E ele teve como sucessor São Nepociano.

XLVI. São Nepociano foi o quarto bispo de Auvergne. De Trèves, enviou-se embaixadores à Espanha, do qual um certo Artêmios, de uma sabedoria e de uma beleza admiráveis, foi na flor da idade. Ele foi tomado por uma febre violenta. Enquanto os outros iam adiante, ele foi deixado doente em Clermont d‘Auvergne. Pois nessa época, ele foi acorrentado em Trèves pelas amarras do casamento. Ele foi visitado e untado de óleo santo por São Nepociano, e por um dom do senhor, a saúde lhe foi devolvida. Como ele tinha recebido do mesmo santo a palavra da predicação, esquecendo tanto sua esposa terrestre quanto suas riquezas pessoais, ele se uniu à Igreja e tornou-se clérigo, distinguindo-se de tal maneira por sua santidade que foi chamado a suceder ao bem-aventurado Nepociano para dirigir as ovelhas do rebanho do Senhor.

XLVII. Na mesma época, Injurieux, um dos senadores de Auvergne que tinha grandes riquezas, pediu em casamento uma moça de condição semelhante, e tendo sido dada uma soma em dinheiro, ele fixou o dia do casamento. Todos os dois eram filhos únicos de seus pais. Quando o dia chegou depois da celebração da solenidade das núpcias, eles foram colocados em uma mesma cama, segundo o costume. Mas a moça, gravemente contristada e voltada em direção à parede, chorava amargamente: “Por que, disse então o rapaz, tu estás embaraçada? Explique a mim, eu te peço.”

Como ela mantinha silêncio, ele acrescentou: “Eu te imploro por Jesus Cristo, filha de Deus, que me exponha sabiamente o que causou tua dor.” Então ela, voltando-se em direção a ele, respondeu: “Mesmo que eu chore todos os dias de minha vida, jamais minhas lágrimas serão suficientes para poder lavar a dor tão imensa de meu coração. Eu tinha decidido, com efeito, preservar para o Cristo meu fraco corpo de todo o contato masculino: minha maldição! Eu estou tão abandonada por Ele que não pude cumprir o que desejava, e o que eu tinha conservado desde o começo de minha vida perdi neste último dia que não deveria ter visto. Vejo-me abandonada pelo Cristo mortal, que me prometia por dote o Paraíso; a sorte me associou a um homem mortal, e no lugar de rosas que não florescem, são pedaços de rosas dessecadas que não somente não me embelezam, mas me enfeiam. Enquanto eu devia cobrir a roupa da pureza sob o rio do cordeiro que corre por quatro braços, a roupa que eu corto é-me um fardo, e não uma honra. Mas porque prolongar longamente este discurso? Infortunada que sou, eu, a quem a sorte devia merecer os céus, estou hoje mergulhada no abismo. Oh, se tudo isso devia me acontecer, porque o dia de minha vida que marcou o começo de minha vida não foi também o fim? Oh, que então eu somente atravessasse a porta da morte antes de ser alimentada do leite! Oh, os sugadores de minhas amas de leite deveriam ter me distribuído para os funerais! Os objetos terrestres me fazem horror, porque eu contemplo as mãos do Redentor transpassadas pela vida do mundo. Eu também não olho os diademas nos quais brilham as soberbas pedras preciosas, pois é a coroa de espinho que eu admiro mentalmente. Eu desdenho tuas vastas terras que se estendem ao longo e ao largo porque aspiro as graças do paraíso. Teus terraços me fazem horror, pois contemplo o Senhor residindo sobre os astros.”

Estes propósitos, acompanhados de lágrimas abundantes, tocaram de piedade o rapaz, que respondeu: “Nós fomos as únicas crianças de pais muito nobres de Auvergne. Eles quiseram nos unir para perpetrar sua descendência com medo que, quando nós desaparecêssemos do mundo, um herdeiro estranho recolhesse a sucessão.” A isto ela replicou: “O mundo não é nada, as riquezas não são nada, a pompa desse século não é nada, mesmo a vida da qual gozamos não é nada. Mas a vida que é preciso procurar é aquela que não está nem confinada, nem terminada pela morte, aquela que nenhuma doença mata, e a qual nenhum poente coloca fim; é a vida na qual permanecemos em uma beatitude eterna, onde se vive em uma luz que não se apaga e na qual, o que é melhor de tudo, se goza da presença do próprio Senhor para continuamente contemplá-Lo, somos elevados à condição dos anjos e gozamos de uma alegria inalterável.”

A essas palavras, ele replicou: “Tuas palavras muito doces fizeram brilhar em meus olhos a vida eterna como uma grande estrela; se tu queres renunciar à concupiscência carnal, eu participarei da tua resolução.” Ela lhe respondeu: “É difícil ao sexo masculino fazer esse sacrifício às mulheres. Entretanto, se tu o fazes de maneira que nós permaneçamos sem nos corrompermos no século, eu te reservarei uma parte do dote que me foi prometido por meu esposo, o Senhor Jesus Cristo, a quem fiz o voto de ser Sua serva e Sua esposa.” Armado do estandarte da cruz, ele disse então: “Eu farei o que tu me exortas.” Tendo dado as mãos, eles dormiram e doravante se deitaram durante muitos anos em uma mesma cama, mas conservando uma castidade digna de elogios, o que foi colocado em evidência mais tarde quando de suas mortes.

Com efeito, logo depois de ter terminado sua prova, a jovem emigrou ao pé do Cristo e depois do ofício fúnebre o marido a depositou em um sepulcro, e declarou: “Eu te rendo graças, Senhor Jesus Cristo, Senhor Eterno Nosso Deus porque eu restituí à Tua piedade esse tesouro maculado tal qual o recebi de Ti quando me foi confiado.” A essas palavras ela replicou sorrindo: “Porque tu falas quando não te perguntam?”. Depois disso, ela foi enterrada, e ele a seguiu pouco tempo depois. Como os dois sepulcros tinham sido colocados ao longo de muros diferentes, um milagre estranho que testemunhou sua castidade se produziu. Com efeito, uma manhã, enquanto as pessoas se encontravam nos lugares, eles encontraram lado a lado os sepulcros que tinham sido deixados a uma grande distância um do outro, sem dúvida para que esses dois seres que o céu reuniria não tivessem seus corpos separados no monumento onde estavam enterrados. Os habitantes da localidade continuaram até os nossos dias a lhes denominar “os dois amantes”. Nós fizemos menção deles no Livro dos Milagres.

XLVIII. Durante o segundo ano do reinado de Arcádius e de Honórius, São Martinho, bispo de Tours, cheio de milagres da santidade, grande benfeitor dos fracos, morreu no quadragésimo vigésimo primeiro ano de sua idade e no vigésimo sexto de seu episcopado em Candes, vila de sua diocese, para emigrar com felicidade junto do Cristo. Ele morreu à meia-noite, um domingo, sob os consulados de Atticus e de César. Durante sua morte muitos escutaram cantos no céu, que nós contamos mais longamente no Livro Primeiro de seus milagres. Pois, como o santo de Deus tinha começado a ficar doente em Candes, como nós dissemos, as populações do Poitou e do Tourane aí se encontraram para assistir a sua passagem. Quando ele morreu, uma grande altercação surgiu entre as duas populações.

Com efeito, os poitevinos diziam: “É nosso monge. Ele tornou-se abade entre nós. Nós reclamamos aquele que nos foi confiado. Que vos contentais de ter gozado de sua eloqüência enquanto ele foi bispo nesse mundo; vós tomais parte à sua mesa, vós fordes cheios de suas bênçãos, mas vós haveis gozado de seus milagres. Que todas essas coisas vos contentem, pois, e que nos seja permitido levar seu cadáver inanimado.”

A isso os touranginos responderam: “Se vós pretendeis que os milagres feitos entre nós devam nos contentar, sabeis que ele os operou mais quando ele se encontrava entre vós que aqui mesmo, pois deixando de lado o maior número, ele ressuscitou dois mortos entre vós e um somente entre nós. Como ele mesmo dizia freqüentemente, sua virtude miraculosa foi maior antes de seu episcopado que depois de seu episcopado. É, pois necessário, que o que ele não acabou entre nós durante sua vida, o acabe após sua morte. Ele vos foi retirado e nos foi dado por Deus. Além disso, se se respeita um costume instituído de grande utilidade, é na cidade onde ele foi ordenado que segundo a ordem de Deus ele terá seu sepulcro. Na verdade, se vós pretendeis reivindicar um privilégio para vosso monastério, sabeis que seu primeiro monastério se encontrava entre os milaneses.”

Enquanto eles discutiam, o sol se punha e a noite tombava; as portas foram fechadas com um cadeado e o corpo, colocado no meio, foi guardado pelas duas populações, pois poderia acontecer que à manhã ele fosse retirado à força pelos poitevinos. Mas o Deus todo poderoso não queria que a cidade de Tours fosse frustrada de seu próprio patriarca. Pois finalmente, aproximando-se da meia-noite, todo o bando dos poitevinos cedeu ao sono e não restou ninguém do efetivo para velar. Quando os touranginos os viram dormindo, pegaram o fardo do corpo muito santo; uns o jogaram pela janela, outros o recolheram de fora.

Ele foi colocado sob um barco e, com toda a população, desceu o rio Vienne. Chegando ao leito do Loire, dirigiu-se em direção à cidade de Tours, dando grandes ações de graça acompanhadas de cantos. Acordados pelas vozes, os poitevinos, que não tinham mais o tesouro que guardavam, voltaram confusos para suas casas. Se alguém pergunta por que desde a passagem do bispo Gatien até a de São Martinho houve apenas um único bispo, a saber, Litorius, que se saiba que por causa da oposição dos pagãos à cidade de Tours permaneceu longamente privada por longo tempo da bênção episcopal. Com efeito, os cristãos desse tempo celebravam o ofício divino clandestinamente e em lugares secretos, pois quando os pagãos descobriam cristãos, estes eram oprimidos por golpes ou degolados.

Desde a paixão do Senhor até a morte de São Martinho conta-se 412 anos.

Fim do Primeiro Livro contendo os 5.596 anos que decorreram da origem do mundo até a morte do bispo São Martinho.

 

 

Livro II
Aqui começam os capítulos do Livro Segundo

I. Episcopado de Brice
II. Os vândalos e a perseguição dos cristãos entre eles
III. Cyrole, bispo dos heréticos e os santos mártires
IV. A perseguição desencadeada sob o reino de Atanarico
V. O bispo Aravatius e os hunos
VI. A basílica Saint-Etienne da vila de Metz
VII. A mulher de Aetius
VIII. O que os historiadores escreveram a respeito de Aetius
IX. O que eles contam dos francos
X. O que os profetas do Senhor descrevem a respeito dos ídolos dos gentios
XI. O imperador Avitus
XII. O rei Childerico e Egidius
XIII. Episcopado de Venerand e de Rústico em Auvergne
XIV. O episcopado de Eustáquio de Tours e de Perpétuo e a basílica de Saint-Martin
XV. A basílica de Saint-Symphorien
XVI. Namatius, bispo, e a igreja de Auvergne
XVII. Sua esposa e a basílica de Saint-Etienne
XVIII. Como Childerico veio a Orléans e Odoacro a Angers
XIX. Guerra dos saxões contra os romanos
XX. Victorius duque
XXI. Eparchius bispo
XXII. Sidônio bispo
XXIII. Santidade de Sidônio bispo e a repressão pela vingança divina das injustiças que eles sofreram
XXIV. Fome em Borgonha e Ecidius
XXV. Eurico perseguidor
XXVI. Morte de Santo Perpétuo e o episcopado de Volosien e de Vérus
XXVII. Como Clóvis conquistou o reino
XXVIII. Como Clóvis desposou Clotilde
XXIX. Seu filho primogênito, que foi batizado, morre em sua roupa de criança 
XXX. Guerra contra os alamanos
XXXI. Batismo de Clóvis
XXXII. Guerra contra Gondebaud
XXXIII. Morte violenta de Godesisile
XXXIV. Como Gondebaud quis ser convertido
XXXV. Como Clóvis e Alarico se encontraram
XXXVI. O bispo Quintien
XXXVII. Guerra contra Alarico
XXXVIII. Patriciado do rei Clóvis
XXXIX. O bispo Licinius
XL. Morte violenta de Sigeberto, o velho, e de seu filho
XLI. Morte violenta de Chararico e de seu filho
XLII. Morte violenta de Ragnacaire e de seus irmãos
XLIII. Morte de Clóvis.

Começo do Livro Segundo

Como nós seguimos a ordem do tempo, nós relataremos em uma desordem completa tanto os milagres dos santos quanto os massacres dos povos. Eu não penso, com efeito, que se ache absurdo que nós relatemos a vida feliz dos santos no meio das calamidades dos miseráveis, pois não é a fantasia do escritor, mas a sucessão cronológica que o impôs.

Um leitor atento, de resto, que faz uma enquete dirigente, descobre na história dos reis de Israel que Phinée, o sacrílego, pereceu no tempo de Samuel, o justo, e que sob o reino de Davi, dito o homem da mão forte, sucumbiu Golias, o filisteu. Que se lembre também, que no tempo de Elias, o iminente profeta que parava as chuvas quando queria ou as fazia correr sob terras áridas quando desejava, ele, que com sua prece enriqueceu uma pobre viúva, houve massacres de povos, que a fome e a seca desolaram uma terra miserável. Que se lembre dos males que Jerusalém suportou no tempo de Ezequias, de quem Deus prolongou a vida por quinze anos. E também sob o profeta Eliseu, que ressuscitou dos mortos e que fez, no meio das populações muitos milagres, que massacres e misérias oprimiram esse mesmo povo dos israelitas.

Assim também, Eusébio, Severo, Jerônimo, assim como Orósio, inseriram em suas crônicas às vezes narrativas de guerras de reis e de milagres de mártires. É assim que nós mesmos compusemos, pois, nosso escrito, para que o inventário dos séculos e o cálculo dos anos até o nosso tempo sejam mais fáceis de serem descobertos em sua totalidade. Encontrando-nos onde estamos, no meio de histórias dos autores pré-citados, vamos tratar, com o socorro de Deus, dos acontecimentos que ocorreram posteriormente.

I. Após a morte do bem-aventurado Martinho, o bispo da cidade de Tours, homem iminente e incomparável nos milagres dos quais nós consagramos grandes volumes, Brice sucedeu-lhe no episcopado. Ora, esse Brice, quando estava nos primeiros anos de sua juventude, preparava freqüentemente armadilhas ao santo que estava ainda vivo, porque esse último lhe reprovava sempre por seguir seus caprichos. Foi assim que, num certo dia, quando um doente veio pedir um remédio aà São Martinho, ele encontrou Brice na praça, que era ainda diácono, e ele disse-lhe simplesmente: “Veja! Eu espero o bem-aventurado homem e eu não sei onde ele está nem o que pode fazer.” Brice respondeu-lhe: “Se é esse delirante que você procura, olhe lá; veja-o que, segundo seu hábito, contempla o céu como um demente.” Após o encontro ter acontecido, quando o pobre obteve seu pedido, o bem-aventurado apostrofou o diácono Brice: “Eu te pareço, Brice, um delirante?”

Como, escutando essas palavras, Brice, confuso, negava que tivesse tido esse propósito, o santo homem replicou: “Minhas orelhas não estavam aplicadas contra a tua boca quando você falava assim de longe? Na verdade, eu te disse: obtive de Deus que depois de mim tu acedesse à dignidade pontifical, mas saiba que durante teu episcopado você terá que suportar muitas adversidades.”

 

 

Notas

  • 1. Base da tradução: GRÉGOIRE DE TOURS. Histoire des Francs. Paris: Les Belles Lettres, 1999.