História eclesiástica das gentes dos anglos. Livro I

Beda (673­-735) 
Tradução: Assunção MEDEIROS
Revisão: Ricardo da COSTA

Índice

Prefácio

Ao gloriosíssimo Rei Ceolvulp, Beda, servo e sacerdote de Cristo.

Livro I

I. Da situação da Bretanha e Irlanda e dos seus antigos habitantes.

II. Caio Júlio César, o primeiro romano que veio à Bretanha.

III. Cláudio, o segundo dos romanos que vieram à Bretanha, e que tornou as Ilhas Órcadas sujeitas ao Império Romano; e Vespasiano, enviado por ele, colocou a Ilha de Wight sob seu domínio.

IV. Lúcio, rei da Bretanha,deseja se tornar cristão e escreve ao papa Eleutério.

V. Como o imperador Severo dividiu e separou parte da Bretanha com uma fortificação.

VI. O reino de Diocleciano e como ele perseguiu os cristãos.

VII. A paixão de Santo Albano e de seus companheiros que, naquele tempo, derramaram seu sangue por Nosso Senhor [305 d.C.].

VIII. As perseguições cessam e a igreja na Bretanha goza de paz até o tempo da heresia ariana [307­337 d.C.].

IX. Como durante o reinado de Graciano, Maximus, após se tornar imperador na Bretanha, retornou à Gália com um poderoso exército [A.D. 383.].

X. Como, no reino de Arcádio, Pelágio, um bretão, desafiou insolentemente a Graça de Deus.

XI. Como, durante o reinado de Honório, Graciano e Constantino tornaram-se tiranos na Bretanha. A seguir, o assassinato do primeiro na Bretanha e do segundo na Gália.

XII. Os bretões, após terem sido arrasados pelos escotos e pictos, buscam o socorro dos romanos que, vindo uma segunda vez, constróem uma muralha em torno da ilha. Novamente invadidos pelos inimigos já mencionados, os bretões são levados a uma situação ainda mais angustiante.

XIII. No reino de Teodósio, o Jovem, Paládio foi enviado aos escotos que acreditavam em Cristo; os bretões imploram a assistência de Aécio, o cônsul, mas não conseguem obtê-la [446 d.C.].

XIV. Os bretões, compelidos pela fome, expulsam os bárbaros de seus territórios. Há abundância de milho, prazer, peste e a subversão da nação [426­447 d.C.].

XV. Os anglos, convidados para vir à Bretanha, a princípio obrigaram o inimigo a se afastar. Não muito depois, unem-se a eles e mostram suas armas a seus confederados [450­456 d.C.].

XVI. Os bretões obtiveram sua primeira vitória sobre os anglos sob o comando de Ambrósio, um romano.

XVII. Como Germânico, o bispo, após chegar à Bretanha com Lupus, acalmou a tempestade do mar e depois a dos pelagianos, por força divina [429 d.C.].

XVIII. O mesmo homem santo devolveu a visão à filha de um tribuno, foi até Santo Albano, recebeu algumas de suas relíquias e deixou outras dos abençoados apóstolos e outros mártires.

XIX. Como o mesmo homem santo, lá detido por uma indisposição, graças à suas preces apagou um incêndio iniciado nas casas, e foi curado de uma doença por uma visão [429 d.C.].

XX. Como os mesmos bispos pediram a assistência dos Céus aos bretões em uma batalha e retornaram para casa [429 d.C.].

XXI. A heresia pelagiana revivido, Germano retornou à Bretanha com Severo, curou um jovem aleijado e, condenado ou convertido os hereges, restaurou a saúde espiritual ao povo de Deus [447 d.C.].

XXII. Os bretões, livres por um tempo das invasões estrangeiras, se desgastaram com as guerras civis e se dedicaram a crimes mais hediondos.

XXIII. Como o papa Gregório enviou Agostinho com outros monges para pregar à nação inglesa e encorajou-os com uma carta de exortação a não cessar seu trabalho [596 d.C.].

XXIV. Como ele escreveu ao Bispo de Arles para entretê-los [596 d.C.].

XXV. Agostinho, na Bretanha, pregou na Ilha de Thanet ao Rei Etelberto e, após ter obtido uma licença, entrou no reino de Kent para lá pregar [597 d.C.].

XXVI. Santo Agostinho seguiu a doutrina e os modos de vida da igreja primitiva e estabeleceu sua sede episcopal na cidade real [A.D. 597].

XXVII. Santo Agostinho, feito bispo, envia mensagem ao papa Gregório para deixá-lo ciente do que foi feito e recebe resposta às suas dúvidas [597 d.C.].

XXVIII. O papa Gregório escreve ao bispo de Arles para que assista a Agostinho no trabalho de Deus [601 d.C.].

XXIX. O mesmo papa envia a Agostinho o pálio, uma epístola e diversos ministros da Palavra [601 d.C.].

XXX. Uma cópia da carta que o papa Gregório enviou ao abade Mélito, a caminho da Bretanha [601 d.C.].

XXXI. O papa Gregório, por carta, exorta Agostinho a não se glorificar de seus milagres [601 d.C.].

XXXII. O papa Gregório envia cartas e presentes ao rei Etelberto.

XXXIII. Agostinho recupera a igreja de nosso Salvador e constrói o mosteiro de São Pedro Apóstolo. Pedro é seu primeiro abade [602 d.C.].

XXXIV. Etelfrid, rei dos nortumbrianos, após derrotar os escotos, os expulsa dos territórios dos anglos [603 d.C.]

 

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Prefácio

Ao gloriosíssimo rei Ceovulp, Beda, servo e sacerdote de Cristo

Com toda a presteza enviei a História Eclesiástica das Gentes dos Anglos que publiquei recentemente a seu pedido, rei, com toda a presteza, para que o senhor a lesse e desse sua aprovação. Agora a envio novamente para ser transcrita e examinada mais completamente e com toda a ponderação. Não posso deixar de louvar a sinceridade e o zelo com os quais o senhor não apenas deu ouvidos às palavras da Sagrada Escritura, mas também laboriosamente cuidou de se familiarizar com as ações e os ditos de antigos homens de renome, especialmente de sua própria gente.

Pois se a história relata boas coisas de bons homens, o ouvinte atento é animado a imitar o que é bom; ou se menciona atos maus de pessoas malvadas, ainda assim o ouvinte religioso e piedoso rechaça o que é doloroso e perverso e fica ainda mais fortemente animado a fazer as coisas que sabe serem boas e dignas de Deus. História que o senhor, profundamente sensato, está desejoso que deva ser tornada completamente familiar tanto para o senhor quanto para aqueles sobre os quais a Divina Providência quis que o senhor governasse, devido ao seu grande cuidado com o bem estar geral destes.

Mas com o intuito de remover toda a ocasião de dúvida da veracidade do que escrevi, tanto para o senhor quanto para outros leitores ou ouvintes desta história, tomarei o cuidado de brevemente citar quais autores, em grande parte, construí a mesma. Minha principal autoridade e auxílio neste pequeno trabalho foi o douto e reverendo abade Albino, homem instruído em toda a sorte de conhecimento, educado na Igreja de Canterbury por veneráveis e cultos homens, como o arcebispo Teodoro, de abençoada memória, e o abade Adriano, e que transmitiu para mim, através de Notelmo, o piedoso sacerdote da Igreja de Londres, por escrito ou através da narração feita por este mesmo Notelmo, tudo o que pensou ser digno de memória feito na província de Kent ou nas áreas adjacentes pelos discípulos do abençoado papa Gregório, da forma que ele havia aprendido, seja nos documentos escritos, seja através das tradições de seus ancestrais.

O mesmo Notelmo, após ir à Roma e pesquisar nos arquivos da sagrada Igreja Romana com a permissão do atual papa Gregório, encontrou algumas epístolas do abençoado papa Gregório e de outros papas e, ao retornar para casa, com o conselho do já citado reverendíssimo padre Albino, trouxe-as para mim para serem inseridas em minha história.

Desta forma, do início deste volume até o tempo em que a nação inglesa recebeu a fé de Cristo, colecionamos os escritos de nossos predecessores e deles recolhemos boa parte do material de nossa história. Mas daquele tempo até hoje, o que se passou na Igreja de Canterbury, feito pelos discípulos de São Gregório ou por seus sucessores, e sob quais reis estes eventos se sucederam, foi transmitido para nós por Notelmo, fruto da labuta do mencionado abade Albino. Eles também me informaram, parcialmente, sob quais bispos e reis as províncias dos saxões do Oriente e do Ocidente,e dos anglos do Oriente, bem como os nortumbrianos, receberam a fé de Cristo.

Em resumo: estava muito animado em assumir este trabalho devido às persuasões de Albino. De forma similar, Daniel, reverendíssimo bispo dos saxões do Ocidente ainda vivo, me comunicou por escrito algumas coisas relacionadas à história eclesiástica daquela província, e daquela próxima a ela, a dos saxões do Sul, como também da ilha de Wight. Mas agora, pelo piedoso ministério de Cedd e Ceadda, a província dos mercianos foi trazida para a fé de Cristo, fé que eles não conheciam antes, e aquela dos saxões do Oriente foi recuperada da mesma forma, após havê-la expulsado. Além disso, o modo como aqueles padres viveram e morreram foi-nos ensinado pelos irmãos do mosteiro construído por eles e chamado de Lastingham.

Foi-nos elucidado quais transações eclesiásticas ocorreram na província dos anglos do Oriente em parte pelos escritos e tradição de nossos ancestrais e pelo reverendíssimo abade Ésio. Soubemos o que foi feito em prol da divulgação da fé e qual foi a sucessão sacerdotal na província de Lindsey pelas cartas do reverendíssimo prelado Cunebert ou pelo relato oral de outras pessoas de bom crédito. Não recebi de nenhum autor em particular o que foi feito na Igreja na província dos nortumbrianos, do tempo em que eles receberam a fé de Cristo até hoje, somente pelo fiel testemunho de inúmeras testemunhas que poderiam saber ou lembrar de algo, além do que já era de meu conhecimento. Tudo o que escrevi a respeito de nosso mais santo padre, o bispo Cutberto, seja neste volume ou em meu tratado sobre sua vida e feitos, em parte retirei e fielmente copiei do que encontrei escrito sobre ele pelos irmãos da igreja de Lindisfarne. Também tive o cuidado de acrescentar coisas que tive conhecimento pelo fiel testemunho dos que o conheceram. Humildemente peço ao leitor que se algo no que escrevemos que não tenha sido contado conforme a verdade, que não impute a mesma a mim, pois, como requer a regra da História, trabalho honestamente para registrar tudo o que colhi dos relatos para a instrução da posteridade.

Mais: imploro a todos os homens que ouvirão ou lerão esta história de nossa nação que, por minhas inúmeras enfermidades corporais e de espírito, ofereçam freqüentes súplicas ao Trono da Graça. Peço ainda que, em recompensa por este trabalho registrado, das diversas regiões e cidades cujos eventos eram mais dignos de nota e mais gratos aos ouvidos de seus habitantes, eu possa, como prêmio, ter o benefício de suas piedosas preces.

Livro I

I - Da situação da Bretanha, da Irlanda e de seus antigos habitantes

A Bretanha, ilha no oceano, em outros tempos chamada de Albion, está situada entre o Norte e o Ocidente, e avista, apesar fazê-lo de uma considerável distância, as costas da Germânia, da Gália e da Espanha, que formam a maior parte da Europa. Estende-se por 800 milhas de comprimento em direção norte, e por 200 milhas de largura, exceto onde diversos promontórios aumentam sua largura e pelos quais sua extensão se torna de 3675 milhas. Ao sul, pela praia mais próxima da Gália belga, a primeira localidade na Bretanha que se abre às vistas é a cidade de Porto Rutubi, nome corrompido pelos ingleses para Reptacestir. A distância de lá, pelo do mar, até Gessoriacum, a mais próxima praia dos morini, é de cinqüenta milhas, ou como alguns escritores dizem, 450 furlongs. Na parte posterior da ilha, em que ela se abre para o oceano infinito, temos as ilhas chamadas Órcadas.

A Bretanha tem excelentes grãos e árvores e está bem adaptada para a alimentação do gado e das bestas de carga. Ela também produz vinho em alguns lugares e tem muitos pássaros de diversos tipos, do mar e da terra. Também se destaca pelos rios, abundantes de peixes, e por suas muitas nascentes. Tem a maior abundância de salmão e enguias; focas, golfinhos e baleias são muitas vezes pescadas, além de toda sorte de mariscos, como mexilhões. Muitas vezes há excelentes pérolas de todas as cores, vermelhas, roxas, violetas e verdes, mas principalmente brancas. Há também grande abundância de mariscos-da-pedra, dos quais é feita uma tintura escarlate, cor muito bela e que nunca esmaece com o calor do sol ou com a água da chuva, mas quanto mais antiga a tintura, mais bela a cor.

A ilha tem sal e nascentes de águas quentes. Destas, fluem rios que abastecem os banhos, próprios e organizados conforme as idades e sexos. A água, como diz São Basil, recebe a qualidade do calor quando passa por certos metais, e se torna não apenas quente, mas fervente. A Bretanha também tem muitos veios de metal precioso, como o cobre, o ferro, o chumbo e a prata. Tem abundância de excelente azeviche, que é preto, brilhante e faiscante diante do fogo e, quando aquecido, espanta as serpentes e, pela fricção, mantém o que é aplicado a ele, como o âmbar. A ilha foi anteriormente embelezada com vinte e oito nobres cidades, além de inumeráveis castelos, todos fortemente cercados com muralhas, torres, portões e trancas.

Por estar situada quase abaixo do Pólo Norte, as noites são claras no Verão, tanto que, à meia-noite, os que as contemplam ficam em dúvida se o lusco-fusco do entardecer continua ou se é o do amanhecer. O Sol, à noite, retorna para debaixo da terra, pelo caminho das regiões do Norte não muito distante dele. Por esta razão, os dias são longos durante o Verão e, em oposição, as noites o são no Inverno, pois o Sol nesta época se refugia nas regiões do sul. Portanto, as noites têm a duração de 18 horas e são extraordinariamente curtas no Verão. Os dias, no Inverno, têm apenas seis horas equinociais. Enquanto isso, na Armênia, na Macedônia, na Itália e nos outros países da mesma latitude, o dia ou noite mais longos se estendem por quinze horas, e os mais curtos por nove.

Esta ilha, no presente, conforme o número de livros nos quais a Lei Divina foi escrita, contém cinco nações: os anglos, os bretões, os escotos, os pictos e os latinos. Cada uma, em seu dialeto peculiar, cultiva o sublime estudo da Verdade Divina. O idioma latino se tornou, devido ao estudo das Escrituras, comum a todos os povos.

Inicialmente, esta ilha não tinha outros habitantes além dos bretões, de quem deriva seu nome, e estes, após adentrarem a Bretanha vindos da Armórica, como já relatado, tomaram posse das áreas ao sul. Após isso, se tornaram senhores da maior parte da ilha, quando a nação dos pictos, da Cítia, como relatado, tomou o caminho do mar em poucos grandes barcos, levados pelos ventos para além das praias da Bretanha. Chegaram então à costa norte da Irlanda, onde encontraram a nação dos escotos e imploraram permissão para se estabelecer junto a eles, sem sucesso. A Irlanda é a maior ilha próxima à Bretanha e fica a leste dela. Mas, por ser menos extensa que a Bretanha para o Norte, se estende muito mais ao sul, em oposição à parte norte da Espanha, apesar do espaçoso mar entre elas.

Os pictos, como foi dito, ao chegarem pelo mar a esta ilha, desejavam ter uma parte dela doada para se estabelecer. Os escotos responderam que a ilha não poderia conter a ambos, mas disseram: “Podemos oferecer um bom conselho sobre o que fazer. Sabemos que existe outra ilha, não distante da nossa, na direção do Oriente, pois muitas vezes a vislumbramos à distância, quando os dias estão claros. Se vocês forem até lá, conseguirão se estabelecer, ou, se sofrerem oposição, terão nossa ajuda.”

Desta forma, navegando até a Bretanha, os pictos começaram a habitar a parte norte da mesma, pois os bretões tinham a posse da parte sul. Ora, os pictos não tinham esposas. Assim, pediram-nas aos escotos, que não consentiriam cedê-las em quaisquer outros termos, a não ser que, quando surgisse alguma dificuldade, eles deveriam escolher um rei da linhagem das mulheres ao invés da dos homens. Este costume, como é bem sabido, tem sido observado entre os pictos até hoje.

No decorrer do tempo, além dos bretões e pictos, a Bretanha recebeu uma terceira nação, os escotos. Ao migrarem da Irlanda sob seu líder, Reuda, por meios justos ou pela força das armas, asseguraram os povoados dos pictos até hoje. Do nome do seu comandante são até hoje chamados de Dalreudins pois, em sua língua, Dal significa “uma parte”.

A Irlanda, em tamanho, pela qualidade e pela serenidade de seu clima, em muito ultrapassa a Bretanha, pois quase nunca a neve se acumula por mais de três dias. Nenhum homem acumula feno durante o Verão para a provisão do Inverno ou constrói estábulos para suas bestas de carga. Não se encontram répteis naquele lugar: nenhuma serpente pode lá viver. Apesar de muitas vezes transportadas até lá da Bretanha, assim que o navio se aproxima da praia, com o odor do ar elas morrem. Em contrapartida, quase tudo na ilha é bom contra veneno. Em suma, soubemos que, quando pessoas eram mordidas por serpentes, raspas de folhas trazidas da Irlanda eram colocadas em água e dadas para beber a elas. Imediatamente elas expulsam o veneno que se espalhava e acalmam o inchaço. A ilha é plena de leite, de mel, e não faltam vinhas, peixes, pássaros, e é notável para gamos e cabras. Com propriedade, ao migrarem do país dos escotos, como já foi dito, adicionaram uma terceira nação à Bretanha, com os bretões e os pictos.

Há um grande golfo de mar que dividia a nação dos pictos da dos bretões. Tal golfo, a partir do Ocidente, invade profundamente a terra onde até os dias de hoje fica Aicluith, forte cidade dos bretões. Os escotos se estabeleceram lá a partir do lado norte desta baía.

II - Caio Júlio César, o primeiro romano que veio à Bretanha

A Bretanha jamais fora visitada pelos romanos. Era totalmente desconhecida antes do tempo de Caio Júlio César, que, em 693, após a construção de Roma, sexagésimo ano antes da Encarnação de Nosso Senhor, era cônsul, juntamente com Lucius Bibulus. Após esse tempo, enquanto fazia a guerra contra germanos e gauleses, separados apenas pelo rio Reno, entrou na província dos morini, onde se encontra a mais próxima e curta passagem para a Bretanha. Ali, após providenciar cerca de oitenta navios de carga e navios com remos, navegou até a Bretanha, onde, inicialmente tratado com dureza em batalha e após uma violenta tempestade, perdeu uma parte considerável de sua frota, um não menor número de soldados e quase todos os seus cavalos.

Após retornar à Gália, ele colocou suas legiões em abrigos de inverno e deu ordens para a construção de seiscentos barcos dos dois tipos. Com estes, novamente fez a passagem para a Bretanha no início da Primavera, mas, enquanto marchava com um grande exército ao encontro do inimigo, os navios, ancorados, foram jogados uns contra os outros ou em direção da areia e naufragados por uma tempestade. Quarenta deles sucumbiram e o resto foi, com muita dificuldade, consertado.

No primeiro ataque, a cavalaria de César foi derrotada pelos bretões. Labienus, o tribuno, foi morto. Num segundo encontro, com grande dano para seus homens, ele fez os bretões baterem em retirada. De lá prosseguiu para o rio Tâmisa, onde uma imensa quantidade de inimigos se posicionara na margem mais distante do rio, sob o comando de  Cassibelaun, e fizera paliçada na margem e em quase todo o passo debaixo d’água com estacas pontiagudas. Restos dessas estacas ainda podem ser vistos. Têm, aparentemente, a espessura da coxa de um homem.

Recobertas com chumbo, elas permanecem fixas e imóveis no fundo do rio. Essa barragem foi evitada pelos romanos e, como os bárbaros foram incapazes de enfrentar o choque das legiões, se esconderam na floresta, de onde atormentavam dolorosamente os romanos com repetidos ataques. Entrementes, a forte cidade de Trinovantum, com seu comandante Androgeus, se rendeu a César, o que proporcionou a ele quarenta reféns. Muitas outras cidades seguiram seu exemplo e fizeram tratados com os romanos.

Com a assistência dessas cidades e com muita dificuldade César finalmente tomou a cidade de Cassibelaun, situada entre dois pântanos, fortificada pelas florestas adjacentes e plenamente fornecida com tudo o que era necessário. Depois, César retornou à Gália, mas mal havia colocado suas legiões em abrigos de inverno quando foi repentinamente assediado e perturbado com guerras e tumultos levantados contra ele por todos os lados.

III - Cláudio, o segundo dos romanos que vieram à Bretanha, e que tornou as Ilhas Órcadas sujeitas ao Império Romano; e Vespasiano, enviado por ele, colocou a Ilha de Wight sob seu domínio

No ano de Roma de 798, Cláudio, quarto imperador desde Augusto, tinha o desejo de provar-se como um benéfico príncipe para a República. Assim, energicamente se inclinou para a guerra e a conquista e organizou uma expedição à Bretanha que parecia estar excitada a ponto de uma rebelião pela recusa dos romanos de entregar alguns desertores. Ele foi o único, antes ou depois de Júlio César, que ousou por os pés na ilha. Entretanto, em poucos dias e sem qualquer luta ou derramamento de sangue, a maior parte da ilha se rendeu e caiu em suas mãos. Ele também adicionou ao Império Romano as ilhas Órcadas, que estão no oceano além da Bretanha. Então, após retornar a Roma, no sexto mês após sua partida, deu a seu filho o título de Britânico. Concluiu essa guerra no quarto ano de seu império, quadragésimo sexto da Encarnação de Nosso Senhor. Nesse ano ocorreu uma severíssima escassez de comida na Síria, que nos Atos dos Apóstolos é relatada como tendo sido prevista pelo profeta Agabus.

Vespasiano, imperador após Nero, enviado pelo mesmo Cláudio à Bretanha, anexou ao domínio romano a Ilha de Wight, que é próxima à Bretanha ao sul e tem aproximadamente trinta milhas de comprimento do Oriente ao Ocidente, doze de Norte a Sul, a seis milhas de distância da costa sul da Bretanha na sua extremidade Oriente, e apenas três milhas na extremidade ocidental. Nero sucedeu a Cláudio no Império e não tentou coisa alguma em assuntos marciais. Portanto, entre outros inúmeros prejuízos trazidos ao estado romano, ele quase perdeu a Bretanha pois, sob seu governo, duas mui nobres cidades foram tomadas e destruídas.

IV - Lucius, rei da Bretanha, deseja se tornar cristão e escreve ao papa Eleutério

No ano 156 da Encarnação de Nosso Senhor, Marco Antônio Vero, décimo-quarto desde Augusto, tornou-se imperador com seu irmão Aurélio Cômodo. No tempo destes, Eleutério, homem santo, presidia a igreja romana. Lucius, rei dos bretões, enviou uma carta a ele e pediu para se tornar cristão sob seu comando. Ele logo obteve seu piedoso pedido e os bretões mantiveram sua fé, recebida incorrupta e íntegra, em paz e tranqüilidade, até a época do imperador Diocleciano.

V - Como o imperador Severo dividiu e separou parte da Bretanha do resto com uma fortificação

No ano da Graça de 189, Severo, africano nascido em Leptis, província de Trípoli, recebeu a púrpura imperial. Foi o décimo-sexto desde Augusto e reinou dezessete anos. Naturalmente rígido, após se engajar em inúmeras guerras, governou o Estado com vigor, ainda que com bastante discórdia. Saído vitorioso das terríveis guerras civis que ocorreram em seu tempo, foi chamado à Bretanha pela revolta de quase todas as tribos confederadas.

Após muitas e perigosas batalhas, achou por bem dividir parte da ilha que ele havia recuperado dos outros povos não conquistados, não com uma muralha, como imaginam alguns, mas com uma fortificação. Pois uma muralha é feita de pedras, mas uma fortificação, com a qual os campos são fortificados para repelir os assaltos dos inimigos, é feita de tijolos de leiva, cortados da terra, e levantados acima do chão como uma parede e com um fosso de onde os tijolos de leiva são retirados com fortes varas de madeira fixadas no seu topo.

Dessa forma, Severo construiu um grande fosso e uma poderosa fortificação, engrandecida com diversas torres, do mar ao mar. Logo depois caiu doente, morreu em York e deixou dois filhos, Bassiano e Geta. Geta morreu, julgado inimigo público, mas Bassiano obteve o império, com o nome de Antonino.

VI - O reino de Diocleciano e como ele perseguiu os cristãos

No ano da Encarnação de Nosso Senhor de 286, Diocleciano, trigésimo-terceiro desde  Augusto e escolhido imperador pelo exército, reinou vinte anos e tornou Maximiano, chamado de Herculius, seu colega no império. Em seu tempo, certo Carausius, de baixíssima origem, mas um soldado habilidoso e capaz, indicado para guardar os litorais então infestados pelos francos e saxões, agiu mais para o prejuízo que para a vantagem do Estado. Por não ter devolvido aos seus donos a pilhagem recuperada dos ladrões, mantendo-a toda para si, suspeitou-se que fizera intencionalmente isso por negligência, já que deixou o inimigo infestar as fronteiras. Ao saber que uma ordem havia sido enviada por Maximiano para que fosse executado, tomou para si os mantos imperiais e a posse da Bretanha e, após ter, com galhardia, mantido sua posse pelo espaço de sete anos, foi finalmente executado por traição de um associado seu, Alectus. O usurpador, após tomar a ilha de Carausius, manteve sua posse por três anos, quando então foi exterminado por Asclepiodotus, capitão da guarda pretoriana que, após fazer isso, ao fim de dez anos, restaurou a Bretanha ao Império Romano.

Entrementes, Diocleciano no Oriente e Maximiano Herculius no Ocidente ordenaram que as igrejas fossem destruídas e que os cristãos fossem assassinados. Esta perseguição era a décima desde o reinado de Nero, e foi mais duradoura e sangrenta de todas as que a precederam, pois deu-se ininterruptamente por um período de dez anos, com a queima de igrejas, a marginalização de pessoas inocentes e o abate dos mártires. Após certo tempo, ela também chegou à Bretanha, e muitas pessoas, com a constância dos mártires, morreram por professar sua fé.

VII - A paixão de Santo Albano e de seus companheiros que, naquele tempo, derramaram seu sangue por Nosso Senhor

Naquele tempo sofreu santo Albano, de quem o padre Fortunato, em seu Louvor às Virgens, menciona os abençoados mártires que chegaram ao Senhor de todas as partes do mundo, diz: “Na ilha da Bretanha nasceu o santificado Albano. Este Albano, ainda pagão, no tempo em que as crueldades de príncipes malvados assolavam os cristãos, ofereceu hospitalidade em sua casa a um certo homem do clero que fugia de seus perseguidores. Ele observou que este homem estava em estado de prece contínua, em vigília, noite e dia. Então, repentinamente, a Graça Divina brilhou sobre ele, pois passou a imitar o exemplo de fé e a pia atitude posta à sua frente.

Assim, gradualmente instruído pelas salutares admoestações deste padre, ele lançou longe a escuridão da idolatria e tornou-se cristão, com toda a sinceridade de seu coração. Estando o já mencionado padre hospedado por alguns dias com ele, chegou aos ouvidos do malvado príncipe que este santo confessor de Cristo, cuja hora do martírio ainda não havia chegado, estava escondido na casa de Albano. Foi então que enviou alguns soldados para fazer uma rigorosa busca. Ao chegarem à casa do mártir, santo Albano imediatamente se apresentou aos soldados ao invés do seu convidado e mestre, no hábito ou no comprido casaco que aquele usava, e foi levado amarrado perante o juiz.

Este juiz, no momento em que Albano foi trazido à sua frente, estava em pé, em frente ao altar, e oferecia sacrifícios aos demônios. Quando viu Albano, enraivecendo-se muito pelo fato dele, de vontade própria, ter colocado a si mesmo nas mãos dos soldados e incorrido em tamanho perigo no lugar de seu convidado, ordenou que fosse arrastado às imagens dos demônios, diante das quais estava, e disse: “Por teres escolhido esconder uma pessoa rebelde e sacrílega ao invés de entregá-la aos soldados, para que seu desprezo pelos deuses encontre o merecido castigo por tal blasfêmia, sofrerás a punição reservada a ele, caso não abandones a crença da tua religião”.

Mas santo Albano, voluntariamente se declarado cristão aos perseguidores da fé, não estava amedrontado pelas ameaças do príncipe. Pelo contrário, vestiu a armadura da guerra espiritual e publicamente declarou que não obedeceria aquela ordem. Então disse o juiz: “De que família ou raça és?” Respondeu Albano: “No que concerne a ti, de onde fui gerado? Caso desejes saber a verdade a respeito de minha religião, que seja dado a conhecer que sou agora cristão, preso pelas obrigações cristãs.” “Pergunto seu nome,” disse o juiz: “Diga-o imediatamente.” Ele replicou: “Sou chamado de Albano por meus pais, e venero e adoro o verdadeiro Deus vivo, que criou todas as coisas.” O juiz, inflamado pela ira, disse: “Se desejas usufruir da felicidade da vida eterna, não hesites em oferecer sacrifício aos grandes deuses”. Albano retrucou: “De nada adiantam estes sacrifícios que ofereces aos demônios. Eles não podem atender os pedidos e desejos dos que enviam suas súplicas. Pelo contrário, quem oferecer sacrifício a estas imagens, receberá as infinitas dores do Inferno como recompensa”.

Ao ouvir estas palavras, extremamente irado, o juiz ordenou que este santo confessor de Deus fosse chicoteado pelos algozes. Acreditou que, pelas tiras do chicote, poderia abalar a constância daquele coração sobre o qual as palavras não prevaleceram. Muito cruelmente torturado, suportou a tortura pacientemente, ou alegremente, por Nosso Senhor. Quando o juiz percebeu que ele não seria conquistado por torturas ou afastado do exercício da religião cristã, ordenou que fosse morto. Levado até sua execução, ele chegou a um rio que corria entre a muralha da cidade e a arena onde seria executado com uma correnteza muito forte.

Neste lugar, ele viu uma multidão de pessoas de ambos os sexos e de diversas idades e condições sociais que  ali estavam, congregadas pelo instinto divino, para assistir o abençoado confessor e mártir. Tinham de tal forma tomado a ponte sobre o rio que ele não podia passar para o outro lado naquela noite. Quase todos tinham saído, de modo que o juiz permaneceu na cidade, sem acompanhantes. Santo Albano, tomado por um ardente e devoto desejo de chegar rapidamente ao martírio, aproximou-se do riacho e, após levantar seus olhos para o céu, o canal imediatamente secou. Ele percebeu que a água havia partido e feito um caminho para que passasse. O executor, que deveria causar sua morte, observou isso e, movido por inspiração divina, correu ao seu encontro no seu local da execução. Lançou longe a espada que carregava desembainhada, caiu a seus pés e rogou sofrer com o mártir que havia recebido ordem de executar, ou, se possível, em seu lugar.

Enquanto este, de perseguidor se tornava companheiro de fé, e os outros algozes hesitavam em tomar a espada caída no chão, o reverendo confessor, acompanhado pela multidão, subiu a uma colina, a aproximadamente 500 passos do lugar e adornada, ou melhor, vestida com todos os tipos de flores, com seus lados nem perpendiculares, nem em forma de penhasco, mas com uma suave inclinação que terminava em uma belíssima planície merecedora por sua bela aparência de ser o cenário dos sofrimentos de um mártir. Em seu topo, santo Albano orou para que Deus lhe desse água, e imediatamente uma fonte viva brotou diante de seus pés, com seu curso confinado, para que todos os homens percebessem que o rio também havia secado pela da presença do mártir. Nem era provável que o mártir, que ainda não havia deixado que permanecesse água no rio, quisesse alguma no topo da colina, a não ser que achasse tal coisa apropriada à ocasião.

O rio, executado seu sagrado serviço, retornou ao seu curso natural e deixou testemunho de sua obediência. Neste lugar a cabeça do tão corajoso mártir foi cortada, e ali ele recebeu a coroa da vida que Deus prometeu àqueles que O amam. Mas aquele que deu o maldoso golpe não foi permitido regozijar a morte do falecido, pois seus olhos caíram ao chão junto com a cabeça do abençoado mártir.

Naquele mesmo instante o soldado que através da admoestação divina recusou dar o golpe mortal no santo confessor foi decapitado. Está claro que apesar de não ter sido regenerado pelo batismo ele foi limpo belo banho em seu próprio sangue, e tornou-se merecedor de entrar no reino dos céus. Então o juiz, assombrado com a nova de tantos milagres do céu, ordenou que cessasse imediatamente a perseguição, começando a honrar a morte dos santos, através da qual ele antes achara que estes pudessem ser afastados da fé cristã. O abençoado Albano sofreu a morte no vigésimo segundo dia de junho, próximo à cidade de Verulano, hoje chamada pelas gentes dos anglos de Verlamacestir, ou Varlingacestir, onde depois, quando foram restaurados os tempos de paz cristã, uma igreja de maravilhoso artesanato e apropriada ao seu martírio foi erigida. Neste lugar não cessa até hoje a cura de pessoas doentes, e a freqüente sucessão de maravilhas.

Ao mesmo tempo sofreram Aarão e Júlio, cidadãos de Chester, e muitos outros de ambos os sexos em diversas localidades, que, após terem suportado tormentos vários, e terem seus membros arrancados de uma maneira nunca antes vista, entregaram suas almas para o alto, para gozar na cidade celeste a recompensa dos sofrimentos pelos quais tinham passado.

VIII - As perseguições cessam e a Igreja na Bretanha goza de paz até o tempo da heresia ariana [307­337 d. C.]

Quando cessou a tempestade de perseguições, os fiéis cristãos que durante o tempo do perigo haviam se escondido em florestas, desertos e cavernas secretas, apareceram em público, reconstruíram as igrejas que haviam sido lançadas ao chão, fundaram, erigiram e terminaram os templos dos santos mártires. Desta forma, demonstraram suas insígnias de vitória em todos os lugares. Eles ainda organizaram festivais e celebraram seus ritos sagrados com corações e bocas limpas. Esta paz teve continuidade nas igrejas da Bretanha até o tempo da fúria ariana, a qual tendo corrompido todo o resto do mundo com o veneno de suas flechas, infectou também esta ilha, apesar de estar tão removida do compasso do mundo. Quando a peste foi desta forma trazida do outro lado do mar, abriram-se as comportas, e toda a sorte de veneno e heresia imediatamente correu para a ilha, e ali foram recebidos por seus habitantes, sempre amigos de algo novo, e nunca se agarrando firmemente a coisa alguma.

Neste tempo, Constâncio, que, enquanto Diocleciano era vivo governou a Gália e a Espanha, um homem de extraordinária mansidão e cortesia, morreu na Bretanha. Este homem deixou um filho de nome Constantino, nascido de sua concubina Helena, como imperador dos galeses. Eutrópio escreve que Constantino, tendo se tornado imperador na Bretanha, sucedeu seu pai no trono. No seu tempo a heresia ariana se iniciou, e apesar de ter sido detectada e condenada no Concílio de Nicéia, ainda assim infectou não somente todas as igrejas do continente, mas mesmo aquelas das ilhas, com doutrinas pestilentas e fatais.

IX - Como durante o reinado de Graciano, Maximus, tendo se tornado imperador na Bretanha, retornou à Gália com um poderoso exército [383 d. C.]

No ano 377 da Encarnação de Nosso Senhor Jesus Cristo, Graciano, quadragésimo desde Augusto, teve o controle do império após a morte de Valente, apesar de ter reinado desde muito antes com seu tio Valente e seu irmão Valentiniano. Considerando o estado do Império, constantemente atormentado e quase à ruína, ele procurou por alguém com habilidades que pudessem remediar os males existentes. Sua escolha caiu em Teodósio, um espanhol. A este ele revestiu com o púrpura dos mantos reais em Sirmium, e o fez imperador da Trácia e das províncias do Oriente. Neste tempo, Maximus, um homem de valor e probidade e merecedor das honras de Augusto se não tivesse através da usurpação e da tirania quebrado o juramento de fidelidade que havia feito, foi declarado imperador pelo exército e passou para a Gália.

De lá, através de traição, matou o Imperador Graciano, que estava consternado por esta repentina invasão e tentava escapar para a Itália. Seu irmão, Valentiniano, expulso da Itália, fugiu para o Oriente, onde foi recebido por Teodósio com afeição paterna, logo restaurando o Império. Maximus o tirano, sitiado em Aquiléia, foi neste lugar preso e executado.

X - Como, no reino de Arcádio, Pelágio, um bretão, desafiou insolentemente a Graça de Deus

No ano do Senhor de 394, Arcádio, filho de Teodósio, quadragésimo terceiro desde Augusto, assumindo o Império com seu irmão Honório, teve o controle deste por treze anos. Em seu tempo, Pelágio, um bretão, espalhou por todos os cantos a infecção de sua pérfida doutrina contra a assistência da Graça Divina, sendo auxiliado nisto pelo seu comparsa Juliano, da Campânia, cuja ira havia sido despertada pela perda de seu episcopado, do qual ele havia sido privado por santo Agostinho. Os outros patriarcas ortodoxos, tendo citado muitos milhares de autoridades católicas contra eles, ainda assim não corrigiram sua loucura, ao contrário, sua insensatez foi assaz aumentada pela contradição, e eles se recusaram abraçar a verdade, fato que Próspero, o Retórico, expressou belamente neste verso heróico:

“Um escriba vil, cheio de infernal veneno mesquinho,
Ousou escrever contra o grande Agostinho;
Serpente presunçosa! Vindo de qual ninho noturno
Ousas arrastar-te pela terra e observar um ser humano?
Tu fostes alimentado pelas planícies bretãs cercadas de mar,
Ou então, em teu seio, o enxofre Vesuviano está a reinar.”

XI - Como, durante o reinado de Honório, Graciano e Constantino tornaram-se tiranos na Bretanha. A seguir, ocorre o assassinato do primeiro na Bretanha e do segundo na Gália

No ano de 407, Honório, filho mais jovem de Teodósio e quadragésimo quarto imperador desde Augusto, dois anos antes da invasão de Roma por Alarico, rei dos Godos – quando as nações dos Alanos, Suevos, Vândalos, e muitas outras com essas arrasaram toda a Gália, atravessando o Reno – fez com que Graciano Municipal fosse marcado como um tirano e morto. Em seu lugar foi escolhido Constantino como imperador, um dos soldados mais cruéis, apenas pelo seu nome e sem nenhum valor que o recomendasse. Assim que tomou para si o comando, atravessou a fronteira da França. Ali, sendo muitas vezes incomodado por bárbaros com seus tratados falsos, causou muito dano ao Império. Então, o conde Constâncio, pelo comando de Honório, marchou através da Gália com um exército, cercou Constantino e o matou na cidade de Arles. Seu filho Constante, que criou César com um monge, foi também executado por Gerôncio, seu próprio conde, em Vienne.

Roma foi tomada pelos Godos no ano de 1164, desde sua fundação. Então os romanos cessaram de reinar na Bretanha, quase 470 anos após Caio Júlio César ter desembarcado na ilha. Eles residiam dentro da fortificação que, como mencionamos, Severo construiu, dividindo a ilha na sua parte sul, como dão testemunho até hoje as cidades, templos, pontes e estradas pavimentadas construídas lá; mas eles tinham o direito de domínio em todas as partes da Bretanha, e também sobre as ilhas além dela.

XII - Os bretões, tendo sido arrasados pelos escotos e pictos, buscam o socorro dos romanos que, vindo uma segunda vez, constróem uma muralha em torno da ilha. Mas sendo novamente invadidos pelos inimigos já mencionados, os bretões são levados a uma situação ainda mais angustiante que antes

Desde aquele tempo, a parte sul da Bretanha, destituída de soldados armados, de armazéns de material de guerra e de toda a sua juventude, que tinha sido levada dali pela dureza dos tiranos para nunca mais retornar, foi totalmente exposta à rapina, sendo totalmente ignorante a respeito do uso de armas. Dessa forma, eles sofreram muitos anos sob duas nações estrangeiras bastante selvagens, os escotos do Ocidente e os pictos do norte. Chamamos estas nações de estrangeiras não por estarem situadas fora da Bretanha, mas porque eram distantes daquela parte da ilha possuída pelos bretões; dois braços de mar ficavam entre elas, um dos quais penetra profundamente por dentro da Bretanha, do oceano oriental, e o outro do ocidental, apesar de não chegarem a tocar um ao outro. O braço oriental tem no meio dele a cidade de Giudi. O oriental tem nele, ou melhor, no seu lado direito, a cidade de Alcluith, que em sua língua significa “Rocha Cluith”, pois fica próxima ao rio deste nome.

Devido ao levante destas nações, os bretões enviaram mensageiros a Roma com cartas escritas de forma lamentosa, implorando por socorro e prometendo submissão perpétua, desde que o inimigo iminente fosse afastado. Uma legião armada foi enviada imediatamente e, chegando na ilha e atacando o inimigo, matou uma multidão destes, expulsou o restante dos territórios de seus aliados, e os tendo salvo de seus cruéis opressores, os aconselharam a construir uma muralha entre os dois mares, atravessando a ilha, para que esta os protegesse e mantivesse o inimigo à distância. Dessa forma, eles retornaram para suas casas em grande triunfo. Os habitantes da ilha, ao levantarem a muralha – não de pedra, como tinham sido aconselhados, pois possuíam artesão capaz de tal tarefa, mas de barro – tornaram-na inútil.

Entretanto, eles a estenderam por muitas milhas entre as duas baías ou braços de mar, os quais já mencionamos, a fim de que, onde a defesa por água não existisse, eles pudessem usar a fortificação para defender suas fronteiras dos levantes inimigos.

Deste trabalho que foi erigido, ou seja, de uma fortificação de largura e altura extraordinárias, existem traços evidentes que podem ser vistos até hoje. Ela inicia a aproximadamente duas milhas de distância do mosteiro de Abercurnig, no Ocidente, em um lugar chamado no idioma picto de Peanfahel, mas no idioma dos anglos de Penneltun, e corre na direção oeste, terminando próxima à cidade de Alcluith.

Mas os antigos inimigos, quando perceberam que os soldados romanos haviam partido, voltaram imediatamente por mar, invadiram as fronteiras, pisotearam e percorreram todos os lugares como homens moendo milho maduro, dominando quem se opunha a eles. Então, mensageiros foram novamente enviados a Roma, implorando ajuda, para que sua desesperada nação não fosse completamente extirpada, e para que o nome de uma província romana, por tanto tempo valorizada por eles, fosse derrubado pelas crueldades de estrangeiros bárbaros e se tornasse completamente desprezível.

Conseqüentemente, uma legião foi novamente enviada, e chegando inesperadamente no outono, causou grande devastação ao inimigo, fazendo com que todos aqueles que pudessem escapar fugissem para além-mar; onde antes carregavam prazerosamente seus espólios sem oposição alguma. Então os romanos disseram aos bretões que no futuro eles não poderiam levar a cabo tão custosas expedições por sua causa. Aconselharam-nos, ao invés disto, a manejar suas armas como homens, e a tomar para si a responsabilidade de enfrentar seus inimigos, que não eram poderosos demais para eles, a não ser que fossem detidos pela covardia.

Assim, pensando que poderiam ser de alguma ajuda a seus aliados, que estavam sendo forçados a abandonar, eles construíram uma forte muralha de pedra de costa a costa, em uma linha reta entre as cidades que tinham sido construídas ali por medo do inimigo, não muito distante da trincheira de Severo. Esta muralha famosa, que ainda pode ser vista, foi construída com esforços públicos e privados, e os bretões também deram sua ajuda. Tem oito pés de largura, doze pés de altura, em uma linha reta de leste a oeste, como as pessoas ainda podem ver.

Tendo terminado esta muralha, deram ao desencantado povo um bom conselho como exemplo, fornecendo-lhes armas. Além disso, construíram torres na costa sul, com uma distância apropriada uma da outra, onde estavam seus navios, porque ali também ocorreram levantes bárbaros, e então se despediram de seus amigos, para nunca mais retornar.

Após sua partida, escotos e pictos, compreendendo que os romanos haviam declarado que não voltariam mais, voltaram rapidamente, e, tornando-se mais confiantes que antes, ocuparam toda a parte norte mais distante da ilha, até a muralha. Então, uma trêmula guarda foi posta na muralha, onde eles sofriam dia e noite, cobertos de medo. No outro lado, os inimigos os atacavam com ganchos, através dos quais os covardes defensores eram derrubados da muralha e lançados ao chão.

Finalmente, o bretões, abandonando sua muralha e suas cidades, fugiram e se dispersaram. O inimigo os perseguiu, e a matança foi maior que em qualquer ocasião anterior, pois os miseráveis nativos foram despedaçados por seus inimigos como ovelhas são despedaçadas por feras. Desta forma, sendo expulsos de suas casas e destituídos de suas posses, eles escaparam da morte por inanição, roubando e pilhando uns aos outros, adicionando seus problemas domésticos às calamidades causadas pelos estrangeiros até que todo o território ficou destituído de comida, com exceção daquela que podia ser caçada.