Poema V

 

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Iluminura 137 do Codex Manesse.

I.

Farei um verso, pois tenho um sonho.1
Vou-me e estou ao Sol.
Há damas com maus propósitos,
e sei dizer quais:
são aquelas que o amor do cavaleiro
levam a mal.2

II.
Não comete pecado mortal a dama
que ama o cavaleiro leal;
mas se ela ama o monge ou o clérigo,
fá-lo sem razão:
pela Justiça deveria ser queimada
com um tição.

III.
Para a Alvérnia, perto do Leimosin,
fui totalmente só, apenas com uma capa.
Encontrei a mulher de Dom Guarin
e a de Dom Bernardo.
Saudaram-me muito agradavelmente,
por São Leonardo.3

IV.
Uma disse-me em seu latim:
“Deus vos salve, Dom peregrino!
Parece-me de bela cepa,
é minha opinião,
embora vejamos ir pelo mundo muita
gente louca”.

V.
Agora direis o que eu respondi:
não lhe disse nem que sim, nem que não,
nem que ferro, nem que madeira,
mas somente
“Babariol, babariol,
babarian”.4

VI.
“Irmã”, disse Dona Agnes à Dona Ermesina,5
“Encontramos o que queríamos!”
“Irmã, pelo amor de Deus, alberguemo-lo,
pois ele é totalmente mudo,
e por ele nosso propósito
não será conhecido”.

VII.
Uma me tomou sob seu manto
e me colocou em seu quarto, perto da lareira.
Saibais que a mim foi bonito e belo,
o fogo foi bom,
e me esquentei à vontade
junto a grossos carvões.

VIII.
Para comer me deram frango,
e saibais que foram mais de dois.
Ali não havia cozinheiro nem ajudante,
somente nós três.
O pão era branco, o vinho era bom,
e a pimenta da grossa.6

IX. 
“Irmã, se este homem é engenhoso,
e deixa de falar por nossa causa,
tragamos nosso gato ruivo
logo,
que ele logo falará,
se mente em algo”.

X.
Dona Inês foi buscar o odioso.
Ele era muito grande e com longos bigodes.7
E eu, quando o vi entre nós,
espantei-me tanto
que por pouco não perdi o valor
e a coragem.

XI.
Após termos bebido e comido,
eu me desnudei à sua vontade.
Por trás me colocaram o gato,
mau e traiçoeiro.
Uma o arrastou, das costas
até os calcanhares.

XII.
Pelo rabo, de improviso,
ela tirou o gato, e ele me arranhou,
chagas ele me causou, mais de cem,
daquela vez.
Mas eu não teria me movido,
mesmo que alguém me matasse.

XIII.
“Irmã”, disse Dona Agnes à Dona Ermesina,
“Claro está que ele é mudo”.
“Irmã, preparemo-nos para o banho
e para o descanso”.
Por oito dias, talvez mais, eu estive
naquele forno.

XIV.
Tanto as fodi, tal como ouvireis,
cento e oitenta e oito vezes.
Por pouco não rompi minhas correias
e meu arnês.8
E não vos posso dizer o mal-estar
tão grande que me tomou.

XV.
Monet, tu irás pela manhã,
levando meu verso na bolsa.
Leva-o direito às mulheres de Dom Guarin
e de Dom Bernardo,
E diga que, por meu amor,
matem aquele gato.9

Notas

  • 1. Tradução feita a partir da edição Guillermo IX. Duque de Aquitania y Jaufré Rudel. Canciones completas (edicion bilingue preparada por Luis Alberto de Cuenca y Miguel Angel Elvira). Madrid: Editora Nacional, 1978, p. 42-49.
  • 2. “A intrusão dos eclesiásticos nas questões conjugais ateou o rancor dos maridos. Guilherme da Aquitânia passa por ser o autor dos mais antigos poemas occitânicos. Pretende-se erigi-lo em primeiro cantor do amor cortês. A canção X da edição Jeanroy troça dessas mulheres que, apegando-se aos padres e monges, 'levam a mal o amor dos cavaleiros'. Elas cometem pecado mortal. Convém, tal como às esposas fornicadoras, queimá-las. Segue-se a metáfora do tição cuja conotação erótica é evidente. Trata-se, bem entendido, de uma canção jocosa, para homens. Não a encaro como um prelúdio a esses debates de cortesia onde se oporão, cem anos mais tarde, o clérigo e o cavaleiro, mas como a expressão mais viva da animosidade marital contra os tais directores de consciência que contestavam o poder dos esposos e cultivavam a frigidez feminina. É o único eco direto que disso nos chega. No momento em que me encontro, no dealbar do século XII, a voz dos servidores de Deus cobre tudo.” – DUBY, Georges. O Cavaleiro, a Mulher e o Padre. O casamento na França feudal. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1988, p. 116.
  • 3. O São Leonardo que se refere o poema é, provavelmente, São Leonardo de Noblac (séc. V), um dos santos mais populares da Europa Central. A lenda conta que ele nasceu no tempo de Clóvis e que, ao invés das armas, ele preferiu colocar-se sob a proteção de São Remígio. Tornou-se um eremita e, mais tarde, conseguiu do rei Clóvis, que fosse edificado um mosteiro em um terreno que ele conseguisse percorrer montado em um burro.
  • 4. “Babariol, babariol, Babarian”, provavelmente o som emitido por um mudo, embora alguns autores pensem se tratar de termos de origem árabe (cf., por exemplo, I. Frank, "Babariol-babarian dans Guillaume IX", Romania, LXXIII, 1952, p. 227-234, e E. Lévi-Provençal, "Les vers arabes de la chanson V de Guillaume d'Aquitaine", Arabica, 1, 1954, p. 208-211.
  • 5. Guilherme nomeia as duas fogosas damas com os nomes de duas tias suas: Agnes, imperatriz dos alemães, e Ermesina, uma monja culta que manteve uma correspondência com o monge "anti-filósofo" Pedro Damião (1007-1032), o que nos mostra o elevado grau de sarcasmo do poeta contra a hipocrisia do poder e, mais particularmente, contra a religião cristã.
  • 6. A alusão à pimenta, naturalmente, evoca o ardor do sexo, e serve como um prelúdio ao que irá acontecer depois.
  • 7. O odioso gato tem longos bigodes: mais uma alusão sexual.
  • 8. O amor cortês sempre faz referências aos feitos de armas. Aqui, no caso, o armamento do cavaleiro é uma deselegante e rude metáfora ao pênis do poeta.
  • 9. O poema termina de maneira bastante irônica, pois sugere que as duas irmãs saberão que o peregrino não era mudo!