Um Homem Clássico

Ricardo da COSTA

InRevista Internacional d’Humanitats 19,
mai-ago 2010, CEMOrOc-Feusp /
Univ. Autònoma de Barcelona, pp. 07-08.

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Pere Villalba na Reial Acadèmia de Bones Lletres de Barcelona. Foto: La Vanguardia.

Era uma tarde de domingo, outono de 2005. Eu estava em Sant Cugat del Vallès, belíssima cidadezinha catalã próxima a Barcelona, hospedado na casa de uma agradável e gentil senhora de meia-idade de nome Núria, ex-camponesa da região, hoje uma ativa tenista nos finais de semana e que acolhe estudantes em sua casa.

Eu então estudava as Artes Liberais na visão do filósofo medieval Ramon Llull (1232 1316) em um pós-doutorado na Universitat Internacional de Catalunya (UIC), e o professor Pere Villalba havia me convidado para ir à sua casa, a algumas quadras atrás da Igreja, e experimentar a sua paella catalã. Ele mesmo a faria.1

Ele também convidou seu irmão e um amigo, e a tarde transcorreu maravilhosamente, ao sabor da História e da Filosofia, do Catalanismo e da Guerra Civil Espanhola, da Música clássica, de Ramon Llull e de Cícero.

O século XX e o mundo antigo e medieval. Paella, vinho, e uma maravilhosa sobremesa local chamada brazo de gitano que, segundo Pere, era o verdadeiro néctar dos deuses do Olimpo (e, por isso, deveria ser repartida igualmente entre todos os convivas, para que seu sabor fosse sorvido por todos, sem regalias).

Nessa valiosa oportunidade ofertada a mim pela Divina Providência, eu pude ter um contato mais próximo com Pere Villalba, esse eruditíssimo e nobre gentleman catalão, professor universitário e pesquisador, classicista (ciceroniano), pianista, lulista, arqueólogo, latinista, historiador, enólogo, filósofo e acadêmico imortal (numerário 23) da Reial Acadèmia de Bones Lletres de Barcelona – e ainda por cima um cozinheiro de mão cheia!

Pere, em sua assombrosa atividade intelectual, além da tarde de domingo, proporcionou-me inestimáveis horas naquele outono de 2005; horas que se passavam como se fossem apenas minutos. Assim, naquele domingo eu cheguei mais cedo, pois queria saborear o máximo possível de sua companhia. Ele ainda estava escolhendo o vinho e preparando a paella. Conversamos um bocado na cozinha.

Descobridor recente dos clássicos, eu estava deslumbrado (e um pouco intrigado) com uma carta de São Bernardo de Claraval (1090-1153) a um sobrinho, na qual o monge pedia perdão pelo rigor com que tinha tratado o rapaz, e pedia que retornasse ao convento (já que havia fugido).

A carta era, é, de uma beleza inacreditável, e eu tentava pormenorizadamente perscrutar as diferentes possibilidades de interpretação daquele documento medieval. Pere estava de costas, cozinhando. Eu então perguntei se ele podia me ajudar, e, sentado à mesa da cozinha, li um trecho da carta enquanto ele arrumava a paella cozinhando na imensa panela:

“Não pretendo discutir, mas dirimir a discussão. Fugir da perseguição não é culpa do fugitivo, mas do perseguidor. Não o contradigo. Omito os fatos, não discuto as culpas, não retrato as causas, não recordo as injúrias. Isso só serve para instigar as discórdias, não para mitigá-las. Somente quero falar o que mais me afeta. Sofro muito porque não te tenho ao meu lado, porque não te vejo, pois vivo sem ti e, para mim, morrer por ti é viver, e viver sem ti é morrer”.

Quando terminei de ler esse trecho, ele virou-se para mim, sem largar a panela, com o olhar contemplativo e sereno, e exclamou: “Belíssimo! Isso é um maravilhoso exemplo de quanto o amor clássico e da cultura romana perduraram Idade Média adentro, protegidos nos claustros dos mosteiros da Igreja!”.

Eu perguntei: “O amor clássico?”. “Sim”, ele disse, “o sentido verdadeiro da amizade, que é o dar sem esperar nada em troca, regozijar-se com o sucesso do amigo, mas, sobretudo, sofrer o mesmo que sofre o amigo. Amá-lo verdadeiramente. Masculinidade com sensibili dade, companheirismo com amabilidade. E acima de tudo, com um pedido de perdão, gesto raro no brutalizado homem de hoje. Ademais, está escrito com a beleza da Retórica clássica. Perceba o ritmo, Ricardo, como o texto caminha suave e ondula majestosamente com a nuance do sentimento. Não são palavras vazias, ditas só para se obter algo de alguém. Vêm do coração; ele está realmente sentindo o que escreve!”.

Esse é Pere Villalba: um homem capaz de ensinar a interpretar os clássicos enquanto cozinha, hábil o suficiente para conversar sobre as Olimpíadas gregas com se estivesse falando de um assunto ocorrido ontem, dotado de tamanha sensibilidade que faz com que nos esqueçamos das agruras do presente e devaneemos com ele nas brumas da História e do pensamento dos homens no tempo.

Sou um homem privilegiado. Conheci Pere Villalba.

 

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Amb motiu del setè centenari de la mort de Ramon Llull (1232-1316), un dels màxims exponents de la cultura i el pensament a Europa, l’Institut d’Estudis Catalans (IEC) i la Fundació Elsa Peretti publicaran l’estudi Ramon Llull. Vida i obres, de Pere Villalba, col·laborador del Raimundus Lullus Institut. Es tracta d’una obra de síntesi d’alta divulgació, resultat d’anys de recerca, que té l’objectiu de fer més accessibles els darrers cent cinquanta anys d’investigació global sobre la persona, el pensament i les obres de l’intel·lectual mallorquí. L’estudi consistirà en tres volums de més de mil pàgines cadascun. El primer volum es va presentar el 15 de setembre de 2015 a la Sala Prat de la Riba de l’IEC. Foto.

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