O Sonho (1399) de Bernat Metge

E suas considerações filosófico-oníricas

ResumoO Sonho (Lo somni) de Bernat Metge (1340-1413) é uma das obras clássicas do século XV que, por suas considerações filosóficas e por seu caráter literário, ambos baseados na tradição greco-romana, prenunciam o Humanismo na Península Ibérica, a partir da coroa de Aragão. A proposta desse trabalho é apresentar a tradução que fizemos dessa obra, a primeira para a língua portuguesa (e diretamente do texto original, de 1399), e analisar a importância do tema dos Sonhos e do universo onírico para a Filosofia, já que o texto de Bernat tem íntima relação com A Consolação da Filosofia, de Boécio (c. 480-525). A seguir, pretendemos discorrer a respeito do cabedal filosófico no qual Bernat fundamenta suas considerações sobre a morte e a imortalidade da alma, de resto, temas igualmente clássicos da Filosofia desde o Fédon de Platão.

AbstractThe Dream (Lo somni) of Bernat Metge (1340-1413) is one of the classical works of the fifteenth century. Its philosophical considerations and literary characteristics, both based on the Greco-Roman tradition, foreshadow Humanism in the Iberian Peninsula, under the auspices of the Crown of Aragon. The purpose of this paper is to present our translation of the aforementioned work, the first to be made into Portuguese (directly from the original 1399 text, in ancient Catalan), and also analyze the importance of the theme of the Dreams and the oniric universe to Philosophy, since Bernat's text bears a close relationship to Boethius' Consolation of Philosophy. Further, we would like to elaborate on the philosophical knowledge from which Bernat draws its considerations on death and immortality of the soul, which have been, since Plato's Phaedo, regarded as classical themes in Philosophy.

Palavras-chave: Sonho – Alma – Morte – Bernat Metge – Século XIV.

Keywords: Dream – Soul – Death – Bernat Metge – XIV Century.

I. Preâmbulo

O cenário: na prisão, Bernat Metge (1340-1413) sonha. Angustiado por ter sofrido uma acusação injusta, nosso autor tem uma visão: surge-lhe seu benfeitor recentemente falecido, o rei João I de Aragão (1350-1396), acompanhado de Orfeu e Tirésias, importantes (embora secundários) personagens da mitologia grega.

Na cela, com o morto e os dois mitos, Bernat conversa. Os temas versam sobre a imortalidade da alma, a política (a crise da Igreja – o chamado Grande Cisma [1378-1417]) e as mulheres. A construção literário-filosófica de Lo somni tem uma linhagem ancestral de peso: Boécio (c. 480-525) já fizera o mesmo com sua Consolação da Filosofia – até o século XVII, um dos livros de filosofia mais lidos e traduzidos.1 Enquanto aguardava seu julgamento por traição (e posterior condenação), Boécio escreveu esse tratado filosófico, em forma de alegoria, no qual a própria Filosofia surge e, em meio a torturas, lhe conforta.

Por sua vez, não é demais recordar que os sonhos foram relegados pela filosofia contemporânea ao mundo das alucinações, dos desejos reprimidos. Terra dos desvarios psicológicos, mas também universo das representações poéticas. Freud (1856-1939) considerava os sonhos um mistério, uma charada, um enigma que só poderia ser desvendado caso se conseguisse substituir as imagens oníricas, aparentemente absurdas, por um texto, as figuras por palavras, para assim se ter acesso ao inconsciente. Para o médico austríaco, todo sonho é a realização de um desejo.2

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O Sonho (1932, pintura a óleo, 130 x 97 cm, coleção privada de Steven A. Cohen), de Pablo Picasso (1881-1973). O quadro retrata uma das mulheres do pintor, Marie-Thérèse Walter (1919-1977), então com vinte e quatro anos. A obra pertence ao período de Picasso de representações distorcidas, contornos simples e cores contrastantes. A alusão sexual é marcante (a sugestão do pênis ereto e retorcido na metade superior do rosto do modelo, além do seio esquerdo à mostra). Ao contrário do mundo filosófico clássico e medieval, a partir do Renascimento (sécs. XV-XVI) cada vez mais os sonhos foram circunscritos ao universo da Arte, da Poesia, do Erotismo, da Psicanálise (no dia 27 de março de 2013, a tela foi comprada por Steven A. Cohen por US$ 155 milhões. O Globo).

Ao contrário, a Filosofia Clássica – entendida aqui em seu sentido amplo, que abrange tanto a Medieval quanto a Renascentista3 – deu aos sonhos um notável espaço em suas considerações filosóficas. Seu uso por parte de Bernat Metge como recurso literário-alegórico nada mais é do que uma invocação à tradição filosófica tradicional para enriquecer a tessitura dramático-existencial de sua obra.

Para podermos abordá-la de modo confiável, procedi à sua tradução, a partir do texto original, escrito em catalão antigo. O trabalho foi um convite do Projeto Internacional IVITRA (Institut Virtual Internacional de Traducció) da Universitat d’Alacant (Espanha).4  Para isso, utilizei como base a edição do texto (e tradução) feita pela Profa. Júlia Butiñá (UNED-Madrid), quem nos acompanhou durante todo o trabalho de tradução.5

O método utilizado foi o filológico. A tradução filológica se caracteriza por sua fidelidade ao original, sem detrimento da qualidade literária, e é acompanhada por notas e comentários (filológicos, históricos ou culturais), quando o tradutor explica suas escolhas e apresenta ao leitor o contexto da época e as referências linguísticas e literárias presentes no original. Trata-se de uma tradução-erudição, pois considera o texto um objeto de estudo e é dirigido a um público especializado.6 O objetivo é o aprofundamento da capacidade compreensiva: deixar os mortos em paz e ir ao cemitério. Obsessivo trabalho de necrófilo.7

II. O universo onírico e a Filosofia

Os sonhos encontram-se nos fundamentos da própria criação do homem. E é a Filosofia quem o diz. Para Platão (c. 428-348 a. C.), o corpo humano participa, por sua cabeça esférica, de todos os movimentos existentes no Cosmos. Nesse “habitáculo do que temos de mais divino e sagrado”, quando os olhos, “portadores de luz”, se fecham, retêm a potência do fogo. É essa retenção da energia da chama que provoca o sono. Quando o repouso é profundo, o sono que se apossa de nós é quase desacompanhado de sonhos; mas caso permaneçam movimentos mais impetuosos, dependendo de sua natureza e das regiões em que se manifestem, eles suscitam no nosso íntimo outras tantas imagens, que nos lembramos quando acordamos para o mundo exterior (Timeu, 45e).8

Assim, mesmo no necessário descanso, nosso íntimo (Freud chamaria inconsciente) produz imagens, visões da mesma natureza que a alma elabora quando está acordada. Creio que na expressão imagens se encontra a chave interpretativa da passagem platônica: os sonhos têm imagens do mundo exterior. Como afirmou Platão, imagens da mesma natureza. Em outras palavras, o sonho é tão real quanto a vigília. Para o filósofo grego, essa similitude das sensações do sonho e da vigília é uma maravilha, e como o tempo do sono é igual ao tempo em que estamos acordados, Platão defende as opiniões dos dois momentos com a mesma energia (Teeteto, 158b-d).9

Ademais, os sonhos devem ser igualmente submetidos à razão, isto é, à parte da alma na qual reside a reflexão: o homem só deve se entregar ao sono após ter alimentado seu raciocínio com belos pensamentos e especulações, para que assim possa adormecer em paz. Caso contrário, segundo o filósofo grego, os sonhos manifestarão os desejos mais ilegítimos e animalescos, livres da poda da razão, como, por exemplo, o incesto com a própria mãe, assassinatos e quaisquer outras coisas despudoradas (República, IX, 571c-572b).10

Portanto, desde os seus primórdios, a Filosofia considerou os sonhos como um elemento importante da constituição psíquica humana. Por isso, Aristóteles (c. 384-322 a. C.), para refutá-los, isto é, para colocá-los em seu devido locus reflexivo (para ele, as explicações fisiológicas), dedicou nada menos que três obras ao tema em sua Parva Naturalia (conjunto de sete escritos sobre o corpo e a alma): Do Sono e da Vigília (De Somno et Vigilia), Dos Sonhos (De Insomniis) e Da Interpretação dos Sonhos (De Divinatione per Somnum)!

Assim como assassinou todos os deuses do Olimpo de uma só tacada (com o Deus que é pensamento puro de si mesmo, em sua Metafísica [Livro XII, 1072b20])11, Aristóteles desvalorizou radicalmente os sonhos. Mas, nesse aspecto, o Estagirita não criou escola: em sua maior parte, a Idade Média cristã foi platônica, especialmente em suas considerações oníricas.

No mundo filosófico medieval, os sonhos foram muito considerados. Isso em parte se explica porque, no período de transição entre os dois universos históricos (grosso modo, entre os séculos IV e VII), muitos autores se debruçaram sobre o tema – Tertuliano (c. 160-220), Agostinho (354-430), Sulpício Severo (c. 363-425), Gregório Magno (c. 540-604), mas sobretudo Macróbio e seu Comentário ao Sonho de Cipião (séc. V).12

III. O Sonho e a Consolação da Filosofia

O dilema que angustia ambos os tratados é o mesmo: qual o sentido da vida e das decisões morais em um mundo dominado pelo mal e pelos perversos que detêm o poder (perversi resident celso [solio] Philosophiae consolatio, I.4.29)? Em Boécio, é a própria Filosofia que, ao surgir na prisão na qual se encontra o filósofo, estoicamente, admoesta-o a recuperar o que perdeu: o conhecimento de si mesmo (I.16.17). Em Lo somni, o rei João I de Aragão é quem faz as honras da Filosofia para Bernat. Ele é quem consola Bernat com a visão do post mortem: sem a transcendência, não há justiça.

Todos os dias vês que muitos homens de vida correta sofrem pobreza, doenças, perdas e grandes perseguições, nas quais morrem, e muitos homens de má vida prosperam o quanto querem e nunca sofrem adversidades. Se a alma morresse com o corpo, Deus seria muito injusto, pois não retribuiria a cada um aquilo que merece.

E como é necessário que a justiça de Deus seja exercida, convém que a alma racional viva depois da morte corporal e que, em algum momento, ela receba o prêmio ou remuneração que merece. Se ela não recebe enquanto vive o corpo, é necessário que receba após a morte, ou terias que concordar que Deus é injusto, o que é impossível e distante da opinião comum dos homens. Desejas dizer algo a esse respeito ou o que se passa em teu coração? (I, V.20)

Platão já havia se pronunciado a respeito: os justos serão recompensados, pois, após a morte irão para cima, para o Céu, à direita, e os injustos nessa vida irão para baixo, à esquerda, quando pagarão por seus crimes (A República, X, 614c-d). No entanto, embora tanto a Filosofia (em Boécio) quanto o rei João (em Bernat) sejam apresentados como terapeutas – ideia de base estoica – o conceito de Deus é um pouco distinto. Enquanto na Consolação da Filosofia a palavra Deus também significa a racionalidade do curso natural das coisas, em Bernat Metge trata-se, naturalmente do Deus cristão (Boécio, mesmo católico, na Consolação, fez com que a Filosofia discutisse as questões existenciais com argumentos racionais, sem qualquer base de autoridade).

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A morte de Sócrates (1787), de Jacques-Louis David (1748-1825). Óleo sobre tela, 129,5 cm x 196,2 cm, Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque. Após discorrer sobre a imortalidade da alma, já devidamente preparado para a morte, Sócrates está a ponto de beber a cicuta, oferecida pelo envergonhado carcereiro (de túnica vermelha). Enquanto estende a mão direita para receber o veneno, com a esquerda Sócrates aponta para cima, para o Céu, e mostra aos seus discípulos onde espera que as almas dos justos sejam recompensadas após a morte corporal. Na prisão, após ter as pernas soltas dos grilhões, o filósofo consola seus pesarosos devotos. Alguns se desesperam. Com a mão na perna esquerda do filósofo, Críton mira a atitude resoluta de Sócrates; na cabeceira da cama, resignado, cabisbaixo, está Platão (uma das várias licenças poéticas de David, já que Platão não estava presente, tampouco era um ancião). De fato, a prisão como um ambiente propício às mais elevadas considerações filosóficas é um locus literário muito recorrente na história do pensamento ocidental.13

Nesse aspecto, em contrapartida, Bernat fundamenta sua questão no filósofo Ramon Llull (1232-1316), como se percebe nessa passagem do Livro da Alma Racional (1296):

Deus é justo, e Sua justiça requer que a alma seja imortal para que possa existir um sujeito permanente que julgue para a eviternidade a boa e a má alma. Caso a alma fosse mortal, em sua mortalidade a justiça de Deus atentaria contra Si mesma, uma vez que atentaria contra o que requer Seu juízo. Mas como a justiça de Deus não pode injuriar a Si mesma, convém que a alma seja imortal (Livro I, III, 5).

O pano de fundo transcendental fundamenta a defesa da inconsistência da felicidade terrena. Na Consolação, a Filosofia se pergunta: porque os mortais procuram uma felicidade fora de si, nos bens exteriores? (II.4.22) Eles não oferecem a verdadeira felicidade. Por isso, as desgraças são melhores que a sorte, pois educam. A sorte ilude. Por sua vez, Bernat, cético, duvida que algo exista após a morte: só crê no que vê; no resto, “não se preocupa”. Por isso sofre. Por isso pede ao rei que explique o que é o espírito e o faça compreender sua imortalidade (I, III.7).

A partir desse ponto as duas obras se separam. Enquanto na Consolação Boécio faz com que a Filosofia discorra sobre o Amor (princípio cosmológico por excelência), o Bem e a Eternidade, Bernat Metge apresenta (no Livro I) vários argumentos sobre a imortalidade da alma e a morte como passagem. Inicia com uma exposição dos filósofos gregos, prossegue com argumentos extraídos de Cassiodoro (490-581), Macróbio e Isidoro de Sevilha (560-636). Por exemplo: 1) Toda coisa que tem substância não pode dá-la a outros. Por isso, por tê-la recebido só para si, convém que a tenha de Deus, pois, caso contrário, seria criadora, e 2) sua substância é própria, pois só ela tem paixões (amor, ódio, desejo, etc.) (I, IV.11), que são a fonte da impetuosidade de seu movimento.

Nesse último ponto, Lo somni dialoga com o Comentário ao Sonho de Cipião. Invisível, a alma é princípio primeiro, fonte do movimento que não tem início nem fim. Atestam isso seus pensamentos, alegrias, esperanças e temores. São eles que nos arrastam em direção aos desejos. Por isso, caso sejam governados pela razão, são saudáveis (II, 25). O rei João I atesta sua natureza filosófica platônico-ciceroniana: a alma “...é vivificadora de seu corpo, porque, assim que ele lhe é concedido, ama seu cárcere com grande amor, e o ama porque não pode ser livre”, clara alusão ao Fédon (82d).14

O movimento autônomo da alma é trazido à baila na argumentação do rei:

Ela é racional: não me parece que alguém duvide ao vê-la tratar das coisas divinas, saber as humanas, aprender muitas artes e nobres disciplinas e, com a sua razão, superar a todos os animais. É-lhe dado compreender suas cogitações e, com a língua, exprimi-las. Ela, colocada no corpo, vê muitas coisas e se estende por quase todo o corpo e do corpo não se separa. Move-se e, em si mesma, como se percorresse um grande espaço, discorre e se lhe apresenta o que com suas cogitações vê.

Dotada de razão, encontra diversas figuras de letras e as utiliza em diversas artes e disciplinas; amuralha cidades, melhora com seu trabalho os frutos da terra; discorre sobre as terras e o mar; percorre grandes montanhas; fabrica portos para a utilidade dos navegantes e orna a terra com belos edifícios. Quem pode, pois, duvidar de sua razão quando, iluminada pelo seu Criador, faz com que sejam vistas coisas tão maravilhosas feitas com arte?15  Imortal é, ademais, a alma racional, e não penso que possas duvidar disso”16 (I, IV.11).

O movimento da alma é sublime porque criador e independente – assim como seu próprio Criador. Contudo, em Lo somni, o “personagem Bernat” é colocado como contraponto à argumentação filosófica do rei morto. É um cético.

– Como? – disse ele – Não está suficientemente demonstrado comigo, que vivo sem corpo?

– Pela minha fé, senhor, vós me tendes como ignorante se pensais que eu creio firmemente que sejais alma ou espírito (I, IV.12).

Assim, João I prossegue. Nada há na Natureza que recorde as coisas passadas, preveja as vindouras e abrace as presentes, só a alma racional. O fio do argumento filosófico é sustentado por citações de Tomás de Aquino (1225-1274) e Cícero (106-43 a. C.). Mas Bernat persiste em sua dúvida. João então altera seu discurso e passa a citar as autoridades que se debruçaram sobre o tema. Primeiro a Bíblia, a seguir os antigos. E se detêm em Cícero, mais uma vez, citando-o textualmente – as Tusculanae Disputationes (Diálogos em Tusculum), série de livros com o tema da contemplação do mundo como base.

Preciso me deter por um instante nessa célebre obra de Cícero, escrita por volta de 45 a.C. Dividida em cinco livros (partes), seus temas versam sobre o desprezo da morte, a dor e as aflições da mente, suas paixões, a virtude e a vida feliz. A passagem abaixo de Lo somni se baseia no Livro I das Tusculanas, parte que trata justamente da morte.

Um grande argumento de que a própria Natureza considera importante a imortalidade da alma é que todos se preocupam com as coisas que acontecerão após a morte. O homem sempre planta árvores das quais não espera jamais obter fruto; o sábio ordena leis e estatutos. O que tu pensas que significa a procriação de crianças, a propagação do nome, a adoção de filhos, a diligência em fazer testamentos, a edificação de sepulcros, senão também na cogitação das coisas que acontecem após a morte? Não existe melhor natureza na linhagem dos homens do que a dos que imaginam que nasceram para ajudar, defender e conservar os outros.

Não posso crer que tantos homens se tivessem entregado à morte pela coisa pública se pensassem que seu nome findaria com sua vida, nem que alguém, sem uma grande esperança da imortalidade, expusesse seu corpo à morte pela pátria. Nem sei como se aproxima do pensamento dos homens um prognóstico ou adivinhação dos séculos posteriores, ainda mais nas grandes faculdades e nobres corações. Se suprimimos isso, quem seria tão louco a ponto de viver em sofrimentos e enormes perigos, assim como fazem os príncipes terrenos? E o que me dizes dos poetas e dos sutis mecânicos? Não desejam ser enobrecidos após a morte? E os filósofos? Nos livros que escrevem não colocam seus nomes para obterem glória? Certamente a maioria deles assim o faz (I, IV.25).

Embora não defina o conceito, Bernat Metge se vale da noção aristotélica de Natureza para iniciar sua argumentação.17 Para Aristóteles, a Natureza, em seu sentido originário e fundamental, é a substância das coisas que possuem o princípio do movimento, em si mesmas e graças à sua essência: “Com efeito, a matéria só é dita natureza porque é capaz de receber esse princípio, e a geração e o crescimento só porque são movimentos que derivam desse mesmo princípio” (Metafísica, Livro V, 1015a, 15).18 Mais tarde, Cícero se valeu desse argumento, que chamarei de perenidade da ideia. Por exemplo em De natura deorum (Sobre a natureza dos deuses, escrito em 45 a. C.):

A própria natureza imprimiu a noção dos deuses nas almas de todos. Que povo ou que tribo de homens existe que não tenha, sem ensino, alguma concepção dos deuses? A essa concepção, Epicuro chamou de prólepsis, isto é, uma pré-concepção mental de uma coisa, uma certa informação mental pré-concebida, sem a qual nada poderia ser entendido, investigado ou discutido (I, 43).19

Compreensão básica, ideia universal, a prolepse é um conceito compreendido por todos. Por exemplo, a palavra homem: todos têm uma ideia preconcebida de que é um homem. Cícero recupera o conceito de Epicuro (341-270 a. C.), e Bernat Metge dele se vale para ressaltar a preocupação universal com a imortalidade da alma. Todos se preocupam ou já se preocuparam com essa questão. Isso, para os antigos, era matéria válida em uma argumentação racional. Chamávamos positivamente de senso comum – preocupação secular da Filosofia e subvertida pelo menos a partir de Giambattista Vico (1668-1744).

De fato, a Filosofia tradicional tinha a preocupação de desenvolver e praticar o senso comum, pois este era considerado o melhor exemplo do legitimamente humano, como se percebe nessa passagem de uma carta de Sêneca (4 a.C. - 65 d. C.): “A primeira coisa que a filosofia nos garante é o senso comum, a humanidade, o espírito de comunidade, coisas de cuja prática nos afastará uma vida demasiado diferente” (Epístolas, 5, 4).20 Ao contrário, Vico afirmou que o senso comum era um juízo sem qualquer reflexão.21

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Detalhe do Tapete da Criação (Tapís de la creació, c. 1096-1101), bordado, 358 x 450 cm, Museu da Catedral de Girona. O conceito filosófico-aristotélico de Natureza se mescla, em Lo somni, com a Natureza-mundo físico cristão, concepção simbólica da realidade muito presente na Idade Média. Mescla do conhecimento da ciência grega contido no Comentário ao Sonho de Cipião, nas Núpcias de Mercúrio e a Filologia (de Marciano Capela, séc. V) e na tradução comentada da primeira parte do Timeu de Platão (até 53c) feita por Calcídio (séc. IV), os estudos medievais sobre a Natureza circunscreviam-se à mesma como símbolo, livro escrito por Deus. Como disse São Boaventura (1221-1274), o mundo sensível é um indício, e sua leitura está reservada aos espíritos mais elevadamente contemplativos, não aos filósofos naturalistas, pois estes conhecem a natureza em si, não como indício. No Bordado de Girona, a cena da Natureza perfeita edênica mostra os animais que cercam Adão (no detalhe, apenas sua mão direita), que está, por sua vez, a buscar outro homem entre eles (Gn 2, 20).22

Em Bernat Metge, há a preservação da Filosofia tradicional. Ainda imerso no senso comum clássico, embora distante da recusa do político típica de estóicos como Sêneca, Lo somni recupera a força da ideia da imortalidade da alma e a recompensa post mortem típica do Sonho de Cipião de Cícero, ou melhor, do Comentário ao Sonho de Cipião, pois a Idade Média não conheceu o texto de Cícero (só encontrado no século XIX, em um palimpsesto).23

Do mesmo modo, o argumento, agora um tanto retoricamente, se dirige aos escritores, filósofos e poetas, além dos trabalhadores manuais (os das então chamadas artes mecânicas). Para que escrever aos pósteros senão pela busca da glória, se não há nada após a morte corporal? O rei João conclui seu raciocínio:

Portanto, se o consentimento de todos é a voz da Natureza, e cada um concorda ter alguma coisa que lhes pertença após sua morte, também nós devemos consentir nisso. Todos os homens opinam que Deus existe, e O conhecem naturalmente. Semelhante opinião e conhecimento pertencem à imortalidade da alma. Portanto, creiamos que assim é e não nos distanciemos do senso comum (I, IV.26).

A seguir, João enumera os filósofos e políticos que enfrentaram a morte com a honra devida à Filosofia: Caio Lélio (cônsul em 190 a. C.), Catão (95-46 a. C.), além, é claro, do próprio Sócrates (c. 469-399 a. C.):

– Sócrates – disse ele – depois que foi condenado à morte por não crer na pluralidade de deuses, no último dia de sua vida disse muitas belas razões que provavam a imortalidade da alma. Enquanto tinha na mão o veneno que deveria beber, disse que não lhe parecia que iria morrer, mas sim que subiria ao Céu, pois havia dois caminhos nos quais eram preparadas as almas que saíam dos corpos: um era o da privação do Conselho dos deuses, e isso acontecia porque aquele corpo havia vivido viciadamente, violado a coisa pública e cometido muitas fraudes; outro era o do retorno aos deuses, de onde vieram, e isso ocorria quando o corpo havia vivido de modo casto e distante dos vícios, e assim se assemelhava à vida dos deuses (I, IV.29). (ver imagem 2)

A passagem acima está claramente fundamentada no último capítulo da República de Platão, que contém o chamado mito de Er, conto escatológico já aludido aqui e que o filósofo utiliza para concluir sua obra.

João I prossegue em sua exortação filosófica para mostrar ao cético Bernat a imortalidade da alma e a necessidade de se preparar para a morte. Corrige seus erros lógicos e encerra a primeira parte de seu diálogo com o tema da substancialidade (ou não) da alma dos animais – assunto caro a Aristóteles.

Conclusão

Lo somni preserva em seu Livro I a mais pura tradição filosófica ocidental: a verdadeira Filosofia é a meditação da morte, como bem afirmara Platão (“Embora os homens não o percebam, é possível que todos os que se dedicam verdadeiramente à Filosofia a nada mais aspirem do que a morrer e estarem mortos”, Fédon, 64a).24 Somado a isso, a recuperação do cárcere como espaço meditativo e receptivo do mundo onírico faz com que a ambientação do diálogo filosófico ganhe um inusitado colorido literário.

A alternância das distintas posições existenciais dos personagens, em especial a postura transcendente do recém-falecido rei João I antagônica ao ceticismo incrédulo do alter ego da obra, faz com que o leitor oscile agradavelmente ao acompanhar os argumentos, belamente expostos, juntamente com a sequência erudita de teses de diferentes pensadores, poetas e políticos que abordaram o tema. A leitura do texto exige erudição, mas, passado o primeiro esforço de compreensão do entrelaçamento de obras – fusão totalizante analisada por Júlia Butiñyà25 – o sentimento final da leitura é extremamente reflexivo e suave, aspecto com o qual concluo esse pequeno trabalho.

E se desejas considerar as palavras que Cícero disse em suas Tusculanas (as quais, se não me engano, já ouviste), entenderás que ele quer dizer que somente Deus Nosso Senhor se move por Si mesmo, como fonte e princípio de todo o movimento, e que ninguém pode negar que tal natureza foi dada à alma racional. Necessariamente, portanto, convém que admitas que as almas dos animais perecem com seu corpo.

– Senhor – disse eu – sinto-me não só intensamente iluminado, mas integralmente consolado com o que me haveis dito. Se à vossa excelsitude não desagradar, eu desejaria me certificar de algumas outras coisas convosco.

– Diz o que desejas, mas que sejas breve, porque eu não poderei permanecer aqui por muito tempo (I, IV.65).

Notas

  • 1. BOÉCIO. A consolação da filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
  • 2. FREUD, Sigmund. A Interpretação dos Sonhos. Edição Comemorativa 100 anos. Rio de Janeiro: Imago, 2001.
  • 3. COSTA, Ricardo da. Los clásicos que hacen clásicos: la importancia de los clásicos y de la tradición clásica en la configuración del canon cultural medieval. Costa Rica: Cuadernos de Historia Universal UCR - UNA. Tomo I, vol. II, Extra Serie de la Revista de Historia, Heredia, 2013.
  • 4. Sitewww.ivitra.ua.es
  • 5. BERNAT METGE. Lo somni / El sueño (edición, traducción, introducción y notas de Julia Butiñá). Madrid: Centro de Lingüística Aplicada Atenea, 2007, da qual aproveitei as notas explicativas.
         Nossa tradução foi publicada: BERNAT METGE. Lo Somni / O Sonho (ed., trad. e notas de Ricardo da Costa). Madrid: Centro de Lingüística Aplicada ATENEA, 2015.
  • 6. FUSTER ORTUÑO, Maria Ángeles. Curial e Güelfa multilingüe. Universitat d’Alacant: Tesi doctoral sota la direcció del Prof. Dr. Vicent Martines Peres, 2009, p. 94.
  • 7. COSTA, Ricardo da. “As relações entre a Literatura e a História: a novela de cavalaria Curial e Guelfa”. In: BUTIÑÁ & CORTIJO (eds.). Literatura, Llengua i Cultura de la Corona d'Aragó, volume 1, 2012, p. 92.
  • 8. PLATÃO. Diálogos (Timeu – Crítias – O Segundo Alcibíades – Hípias Menor) (tradução do grego de Carlos Alberto Nunes). Belém: Editora da UFPA, 2001, p. 84.
  • 9. PLATÃO. Teeteto. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010, p. 217.
  • 10. PLATÃO. A República (trad. e notas de Maria Helena da Rocha Pereira). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996, p. 411-412.
  • 11. ARISTÓTELES. Metafísica (ensaio introdutório, texto grego com tradução e comentário de Giovanni Reale). São Paulo: Edições Loyola, 2005, vol. II, p. 563.
  • 12. MACROBIO. Comentarios al Sueño de Escipión (edición y traducción de Jordi Raventós). Madrid: Ediciones Siruela, 2005.
  • 13. A morte de Sócrates (1787) é mais um drama de cores discretas, uma representação de martírio que reúne discurso e silêncio em perfeito equilíbrio dramático. Mesmo agonizante, Sócrates continua falando (pois o veneno demora a fazer efeito), mas Platão, sentado ao pé da cama, sofre em silenciosa e amarga resignação.” – SCHAMA, Simon. O poder da arte. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 208. 
  • 14. PLATÃO. Diálogos (Protágoras – Górgias - Fedão) (tradução do grego de Carlos Alberto Nunes). Belém: Editora da UFPA, 2002, p. 288.
  • 15. CASSIODORO, De anima, IV, 82-85, 91-99, 104 e 105-114. Cf. CÍCERO, Cato maior, XXI, 78.
  • 16. CASSIODORO, De anima, IV, 115.
  • 17. “La prólepsis, en cambio, integra el catálogo de los criterios de verdad que establece el canon: ‘Y Epicuro dice en el Canon que los criterios de la verdad (kritérai tês alétheias) son las sensaciones, las prenociones y las afecciones; y los epicúreos las aprehensiones imaginales del pensamento’ (31). Y, específicamente a propósito de las prenociones: ‘Ellos [los epicúreos] consideran la anticipación como aprehensión (katálepsin), recta opinión (dóxan orthén), contenido mental (énnoian) o intelección universal (katholikèn noésin) depositada en nosotros, es decir, como memoria de lo que se ha manifestado muchas veces desde fuera, por ejemplo: ‘eso es un hombre’; pues, al mismo tiempo que la palabra ‘hombre’ es pronunciada, su figura (typos) es pensada también por medio de la anticipación, según los antecedentes de la sensación.” – “Epicuro: Carta a Meneceo (noticia, traducción y notas de Pablo Oyarzún R.)”. In: ONOMAZEIN 4 (1999): 403-425, nota 11, p. 4-5.
  • 18. ARISTÓTELES. Metafísicaop. cit., vol. II, p. 201.
  • 19. Dez provas da existência de Deus (seleção de Plínio Junqueira Smith). São Paulo: Alameda, 2006, p. 61.
  • 20. LÚCIO ANEU SÉNECA, Cartas a Lucílio. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004, p. 11.
  • 21. “O senso comum é um juízo despido de qualquer reflexão.” – VICO. A Ciência Nova (trad., pref. e notas de Marco Lucchesi). Rio de Janeiro: Editora Record, 1999, Livro I, II. “Dos elementos”, XII, p. 95. 
  • 22. CASTIÑEIRAS, Manuel. El tapiz de la creación. Catedral de Girona, s/d, p. 90; GREGORY, Tullio. “Natureza”. In: LE GOFF, Jacques & SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário Temático do Ocidente Medieval II. Bauru, SP: EDUSC; São Paulo, SP: Imprensa Oficial do Estado, 2002, p. 263-277.
  • 23. COSTA, Ricardo da. “Sonho de Cipião de Marco Túlio Cícero” Prólogo de Carlos Nougué / Apresentação, tradução e notas de Ricardo da Costa. In: LAUAND, Luiz Jean (coord.). Revista NOTANDUM, n. 22, Ano XIII, jan-abr 2010, p. 37-50. Editora Mandruvá - Univ. do Porto.
  • 24. PLATÃO. Diálogos (Protágoras – Górgias - Fedão), op. cit., p. 258.
  • 25. BUTIÑYÀ, Julia. En los orígenes del Humanismo: Bernat Metge. Madrid: Universidad Nacional de Educación a Distancia, 2002. Para o nosso caso, as páginas 175-281.

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