A experiência de traduzir a novela Curial e Guelfa (séc.XV) para a língua portuguesa

Ricardo da COSTA

InSCRIPTA, Revista internacional de literatura
i cultura medieval i moderna
,
vol. 22 / núm. 22 / desembre 2023
 / pp. 640-662.
ISSN: 2340-4841
DOI: 10.7203/SCRIPTA.22.27848
 

Resumo: Richard Fletcher (1944-2005) estava certo: nada concentra tanto a mente de um historiador em um texto quanto a tarefa de traduzi-lo. A sublime compreensão histórica (erhabenen historischen Verständnis) abarca o tênue instante em que nos deparamos com as palavras no tempo, ponderamos sua inserção cronológica sociocultural e, cuidadosamente, as conduzimos para o presente e as recolocamos fora de sua época, tentando, da melhor maneira possível, preservar seus significados temporais subjacentes. Mas como realizar esse exercício da melhor maneira? O objetivo deste artigo é apresentar nossa proposta de tradução da novela de cavalaria quatrocentista (e Humanista) Curial e Guelfa e discutir algumas de nossas encruzilhadas, nossas opções, nossas tentativas de trazer à mente do leitor a cultura do passado e a manter viva nela, e ambientar sua reconstrução histórica no melhor espaço imaginário possível, isto é, aquele que respeita os paradoxos do tempo e as multifacetadas contradições inerentes à vida de seus personagens sociais

Abstract: Richard Fletcher (1944-2005) was right: nothing concentrates as much the historian’s mind than the task of translating a text. The sublime historical understanding (erhabenen historischen Verständnis) covers the tenuous moment that we face the words in time, pondering its chronological and socio-cultural insertion, and carefully bring them to the present and reposition them out of their time, trying as best as possible, to preserve their underlying temporal meanings. But how to exercise this in the best way? The purpose of this article is to present our proposal of translation of the humanist novel of chivalry from the fifteenth century Curial e Güelfa and discuss some of our crossroads, choices, and attempts to bring to the reader’s mind the culture of the past and keep it alive in his thoughts, and acclimatize his historical reconstruction in the best imaginary space as possible, i.e., the one that respects the paradoxes of time and the multifaceted contradictions inherent to the life of their social characters.

Palavras-chave: Tradução – Curial e Guelfa – Novela de Cavalaria – Literatura – Humanismo.

Keywords: Translation – Curial e Güelfa – Chivalry Novel – Literature – Humanism.

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Les diables fay brocar los aymadors per amor de lur donas (“Os diabos fazem os amantes esporearem [seus cavalos] por amor de suas damas”). Detalhe de Lo Breviari d’Amor (c. 1288-1292), do franciscano e occitano Matfre Ermengau (†1322). Public domain. Repare na incitação dos diabos, que, com longas trombetas, induzem os cavaleiros a ir ao encontro das damas na torre do castelo. A eclosão da poesia trovadoresca (sécs. XII-XIV) propiciou o desabrochar da literatura amorosa cortesã dos séculos seguintes e, consequentemente, de Curial e Guelfa.1

I. A opção teórico-metodológica

Em termos gerais, traduzir significa transpor determinado conteúdo de uma língua para outra, isto é, dizer a mesma coisa em outra cultura. O problema é que, muitas vezes, surgem inúmeros contratempos nessa operação metalinguística, especialmente quando se traduz um texto longínquo no tempo. O medievalista Umberto Eco (1932-2016) definiu muito bem esse problema: em uma tradução, dizer a mesma coisa, na verdade, é dizer quase a mesma coisa.2 Eco seguiu contemporaneamente os passos medievais de Dante Aliguieri (1265-1321) que, no século XIV, já alertara que qualquer composição perde sua doçura e harmonia ao ser traduzida para outra língua.3

Por sua vez, o teólogo e filósofo alemão Friedrich Schleiermacher (1768-1834) parece ter proporcionado a linha divisória teórico-metodológica padrão a ser escolhida pelo tradutor: ou nós 1) deixamos o escritor em paz e levamos o leitor ao seu encontro, ou, pelo contrário, 2) deixamos o leitor em paz e levamos ao seu encontro o escritor.4 Essa parece ser a mesma decisão que o historiador tem de tomar quando se defronta com os documentos de uma época para construir sua interpretação: ou “sai de si” e se transporta àquele tempo escolhido, diminuindo sua perspectiva e aumentando sua compreensão, ou “traz o tempo para si”, aumentando sua perspectiva, porém diminuindo sua capacidade compreensiva.

Como em minhas opções historiográficas (e filosóficas e literárias) sempre considerei o aprofundamento da capacidade compreensiva o verdadeiro exercício do historiador, nas traduções de textos medievais catalães que realizei – de Jaime I (1208-1276) e Ramon Llull (1232-1316) a Bernat Metge (c. 1350-1413) e Ausiàs March (c. 1397-1459) – sempre preferi a primeira opção de Schleiermacher: deixar o escritor em paz e levar o leitor ao seu encontro, ou, para me expressar em termos historiográficos (e um tanto melancolicamente), deixar os mortos em paz e ir ao cemitério. Pessoalmente. Isso porque, no fundo, considero que todo historiador é um necrófilo par excellence.

Além de se abrir para a experiência de outrem, ato espiritual de submissão, postura moral de hospitalidade, receptividade, espaço mental de acolhida do que lhe é estrangeiro, verdadeira educação universal do espírito, é preciso que realmente compreendamos. Wilhelm von Humboldt (1767-1835) asseverou que somos capazes dessa compreensão (Verstehen) porque compartilhamos nossa Humanidade, ideal baseado no trinômio (platônico-aristotélico e espiritualmente cristão) Verdade, Bondade e Beleza.5 Ou seja, transcendência – ideal clássico sintetizado em um aforisma de Santo Agostinho (354-430): “Sem amizade, não se pode realmente conhecer ninguém”.6 Simpatia essa sem eliminar o espírito crítico, naturalmente7, esforço mental que mais concentra a mente de um historiador.8

Essas foram as opções teórico-metodológicas que escolhi para traduzir a novela de cavalaria quatrocentista Curial e Guelfa, a convite da Universitat d’Alacant (no projeto internacional de tradução IVITRA) – tradução que contou com o luxuosíssimo auxílio das correções, comentários e sugestões dos professores Antoni Ferrando i Francès (Universitat de València), editor do texto quatrocentista, Vicent Martines Peres (Universitat d’Alacant), diretor do Projeto IVITRA, Julia Butiñá (UNED) e Maria Ángeles Fuster Ortuño (Universitat d’Alacant), estas últimas tradutoras de Curial e Guelfa para o espanhol –: levar o leitor ao encontro do autor de Curial e Guelfa, Enyego d’Àvalos (c.1414-1484), diplomata e camarlengo real (oficial da corte dos reis de Aragão encarregado da guarda pessoal do soberano, do serviço de quarto).9

Mais: hermeneuticamente, compreender suas palavras, a mim alheias, por mais estranhas que elas sejam ao leitor contemporâneo, já que este vive no século XXI e está imerso na cultura do âmbito lusófono contemporâneo, enquanto seu autor viveu no século XV e estava inserido no mundo cavaleiresco ibérico-catalão, banhado pelo Humanismo proveniente das terras italianas, aspecto que Julia Butiñá Jiménez analisou com profundidade.10

Ademais, não é precisamente essa incômoda porém agradabilíssima estranheza histórica o sentimento costumeiro do verdadeiro historiador? Em comum, ambas as culturas ibéricas – a portuguesa e a catalã – têm suas raízes na tradição românica, pois são filhas do latim. Além disso, por sorte, a língua portuguesa tem muitas afinidades expressivas com o catalão, particularmente o português do mesmo período, o que, sem dúvida, permitiu manter na tradução uma linguagem muito próxima do original.11 Por esse motivo, e pelas mesmas alusões à mitologia grega, sempre que possível eu relacionei nas notas explicativas ao fim da novela as partes de Os Lusíadas (1556)12 de Camões (c.1524-1580) que tinham pontos em comum com Curial e Guelfa, além de obras artísticas (em especial a Pintura) cujos temas mitológicos fossem os mesmos.

De qualquer modo, quero aqui destacar três encruzilhadas nas quais me encontrei durante a tradução, quando tive de tomar decisões linguísticas que afetaram o resultado de minha tradução (e aproximaram, penso eu, o texto traduzido das intenções do texto original, do pensamento de seu autor): 1) os sentimentos dos personagens, 2) suas expressões proverbiais (algumas tipicamente medievais) e 3) as citações mitológicas recorrentes ao longo da novela.

II. Os sentimentos genuínos

Uma das coisas que mais salta aos olhos quando se traduz uma obra do calibre literário de Curial e Guelfa, escrita no Alvorecer da Modernidade – para utilizar a bela expressão de um livro de História de Portugal coordenado por Joaquim Romero Magalhães (1942-2018)13 –, é a forma com que os personagens costumeiramente manifestam seus sentimentos: de um modo intenso, comovido e profundo. Após o devido polimento textual para, na medida do possível, deixar a tradução no mesmo patamar estilístico do texto original – para que o leitor tenha uma proximidade sensitiva algo próxima do leitor do século XV – fica-se com a nítida impressão de que nós, contemporâneos, ficamos mais insensíveis, rudes, embrutecidos que fomos tanto pela sociedade de massa nascida com a expansão mundial da industrialização do século XIX com o avanço global dos impérios europeus14 quanto pelas tradições interpretativas histórico-materialistas que atualmente ainda influenciam a compreensão do Passado, mesmo com a interminável crise da História que vivemos.15

Ao ler a novela é impossível não deixar de lembrar do primeiro capítulo do clássico de Johan Huizinga (1872-1945), O Outono da Idade Média16: tudo que as pessoas viviam no século XV era revestido de um sensível teor imediato e absoluto que, no mundo atual, só se observa nos extremos arroubos infantis de felicidade e de dor. Aliás, esse foi o primeiro momento legítimo de hesitação em minha tradução: deveria eu manter essa intensidade emotiva das manifestações gentis entre os homens de então, associada a uma delicadeza quase erótica aos olhos atuais?

Meu amigo e revisor desse trabalho, Armando Alexandre dos Santos, chamou-me a atenção para essa estranheza logo no início da novela, quando o protagonista, Curial, ainda bem jovem, se apresenta à casa do marquês de Montferrat que, embevecido, lhe pergunta:

“– De qui est?”.

Lo minyó respòs: “– Senyor, vostre són”.

Lo marquès se aturà e mirà’l, e, bé que fos en tendra edat constituït, no menys li viu los ulls molt resplandents e tanta bellesa en la sua cara que natura més no podia donar; per què respòs tantost: “– E a mi plau que meu sies”.

E, regirant-se als seus, dix: “– Per ma fe, anch no viu tan gentil criatura ne que tant me plagués”.

E replicà: “– E tu serás meu puys que a mi t’est donat, e ho series encara que a altre donat te fosses” (I.1).

***

“– De quem és?”.

O menino respondeu: “– Senhor, eu sou vosso”.

O marquês se deteve, olhou-o e, embora fosse de tenra idade, não deixou de perceber os olhos muito resplandecentes e tamanha beleza em seu rosto que a Natureza mais não podia lhe dar, e rapidamente respondeu: “– A mim me agrada que meu sejas”.

E, voltando-se aos seus, disse: “– Pela minha fé, nunca vi tão gentil criatura que me agradasse tanto!”.

E acrescentou: “– Tu serás meu, pois a mim te entregaste, mas serias meu mesmo que tivesses te entregado a outro”.

O que nessa passagem pode sugerir ao leitor moderno um diálogo de teor claramente homoerótico, nada mais é do que a expressão tardia, pois quatrocentista, do amor entre homens da relação feudo-vassálica medieval, a “fraternidade”, a “amizade”, como bem expressou o medievalista Georges Duby (1919-1996) em inúmeras oportunidades.17

O que o tradutor deve fazer nesses casos de estranhamento temporal de um texto de época? Respondo, sem hesitar: preservar o mais fielmente possível as formas de expressão da comunicação entre as pessoas que o Passado nos legou. Porque, caso mantenhamos as formas literárias puras intactas em seu sabor, fortes em sua perplexidade, intensas em suas expressões, a leitura de uma novela como Curial e Guelfa pode resgatar ao historiador as expressões linguísticas do passado que o tradutor transmite com seu trabalho. Em outras palavras: ao ressuscitarmos os mortos com nossa tradução, os “ouvimos” falar ao pé do ouvido, e saboreamos o tecido mais profundo das consciências passadas: sua linguagem.

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Hommage de Ban Paris, BnF, Français 105, folio 171v (public domain). Na cerimônia de vassalagem, o osculum (beijo) selava o compromisso feudal de um homem pertencer a outro, alusão feita em Curial e Guelfa por parte do marquês de Montferrat. A respeito do juramento feudal, a Crônica de Hainaut (c.1171-1195) é o documento medieval mais citado pelos historiadores.

III. As expressões proverbiais

Há alguns anos participei de um projeto de pesquisa intitulado “A paremiologia medievalO Livro dos Mil Provérbios (1302) de Ramon Llull (1232-1316)” com o Prof. Dr. Álvaro Alfredo Bragança (UFRJ) e a Profa. Dra. Adriana Zierer (UEMA). O resultado da investigação foi a tradução e publicação daquela obra proverbial do filósofo catalão para o público brasileiro (Lúlio 2007) – antes dela, os leitores de língua portuguesa já conheciam, também por minhas traduções, O Livro da Ordem de Cavalaria, O Livro dos Anjos e o Livro das Bestas. Naquela ocasião, percebi a importância plástica da função viva dos provérbios medievais, por sua concisão, suas propriedades semânticas e sua capacidade de, sinteticamente, expressar a tradição cultural de sua época.

Em Curial e Guelfa há várias manifestações proverbiais, algumas com seu correlato em nossa língua. Por exemplo, quando o alter ego do autor da novela, o personagem Melchior de Pandó, aconselha Curial a se despedir e partir da companhia do imperador do Sacro-Império (cap. I.26), pois “...hostes e peix a três dies puden”, isto é, “...depois de três dias, os hóspedes e os peixes fedem”, curiosamente um provérbio exatamente igual, tanto no castelhano quanto no português, o que sugere sua completa difusão pela Península Ibérica. Nesse caso, não houve qualquer problema em manter o dito na tradução, o que já não ocorreu quando determinado provérbio presente no texto não chegou até a cultura do destinatário da tradução, a portuguesa.

Desse segundo caso é o dito “procurar nó em junco” que na novela está ao lado de outro provérbio:

La fama de les paraules obrí les ales e, ab yvarçós cors, [f.108] anà a l’hostal del duch de Bretanya, lo qual, ab lo dit Sanglier e ab altres cavallers, a manera de aquelles qui cerquen pèl en l’ou e nuu en lo jonch, cercaven via com porien desfavorir Curial, en manera que d’ells no.s fes alguna menció.

***

A fama daquelas palavras ganhou asas e, como em um curso precipitado [f.108], chegou à casa do duque da Bretanha, o qual, com o dito Javali e outros cavaleiros, como quem procura pelos em ovos e nó em junco, tentavam encontrar uma maneira de desfavorecer a Curial sem que deles se fizesse menção (os grifos são meus).

A expressão “procurar nó em junco” é latina – Nodum in scirpo quaeris, encontrada em Menaechmi (247), do comediógrafo Plauto (c. 254-184 a.C.), e em Andria (941), do dramaturgo Terêncio (c. 195-159 a.C.) – e significa o mesmo que “procurar pelo em ovo”, ou então “procurar chifre em cabeça de cavalo”18, ou seja, procurar problemas onde eles não existem. A interessante repetição da ideia em dois provérbios juntos na frase por parte de Enyego d’Àvalos enfatiza, de modo gracioso e literariamente rítmico, a maldade dos cavaleiros em detratar Curial, o protagonista.

IV. A mitologia greco-romana

Uma das características mais interessantes de Curial e Guelfa é a profusão de deuses mitológicos e personagens da tradição literária greco-romana presentes ao longo da narrativa. Trata-se de um sincretismo literário total com o Cristianismo por vezes bastante inusitado e surpreendente – mesmo levando-se em conta essa peculiaridade da literatura humanista europeia de então, inclusive a hispânica.19 Isso obriga necessariamente o leitor a conhecer minimamente a cultura antiga, para assim conseguir relacionar seu conteúdo adquirido em sua educação com a maneira com que Enyego d’Àvalos a inseriu no texto, e assim compreender melhor a erudição e a densidade dramática da obra.

Trata-se de um traço literário da novela que me obrigou a manter na tradução sua gradativa erudição textual, pois, à medida que deuses e personagens literários participavam cada vez mais do enredo na narrativa e interferiam no destino dos protagonistas, Curial e Guelfa crescia em sofisticação literária. Manter essa tensão criativa fez-me procurar sempre as palavras mais elegantes e corteses de nossa língua.

IV.1. A Fortuna

Um bom exemplo dessa sofisticação ocorre nos Proêmios de cada Livro da obra. Logo no início, d’Àvalos faz uma alusão à deusa Fortuna (Fors) – passagem claramente baseada nas Epistolae familiares (Rerum familiarum libri, [1325-1371], IV, 12, 29) do poeta e humanista italiano Francesco Petrarca (1304-1374)20:

[O,] quant és gran lo perill, quantes són les sol·licituts e les congoxes a aquells qui ·s treballen en amor! Car, posat que alguns amats de la fortuna, aprés de infinits infortunis, sien arribats al port per ells desijat, tants emperò són aquells qui rahonablement se’n dolen, que anvides pusch creure que entre mil desaventurats se’n tròpia un que hage amenada la sua causa a gloriosa fi.

***

Oh! Quão grande é o perigo, quantas são as solicitudes e angústias daqueles que sofrem por amor! Pois, embora alguns amados pela Fortuna, depois de infinitos infortúnios, tenham chegado ao tão desejado porto, tantos são os que consideravelmente sofrem, que mal posso crer que, dentre mil desventurados, se encontre um que tenha conduzido sua causa a glorioso fim.

Principiar com uma alusão à Fortuna é um dos mais notáveis recursos poéticos clássicos, oriundo de duas tradições: a primeira, greco-romana (Aristóteles [384-322 a.C.], Políbio [200-120 a.C.], Tito Lívio [c. 59 a.C. - 17 d.C.] e Plutarco [46-120]); a segunda, medieval (a da Consolação da Filosofia, de Boécio [c.477-524]). Por exemplo, uma geração antes de Enyego d’Àvalos, Ausiàs March (c. 1397-1439) muito se valeu disso em seus Dictats.21

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Os remédios para uma e outra Fortuna (De remediis utriusque Fortunae, c. 1503), de Petrarca (1304-1374), BnF, Ms Fr 224, folio 9r (public domain). Na iluminura, realizada por Jean Pichore (f. 1501-1521) a Fortuna está entronada, com sua Roda acima da cabeça. Tem uma face com duas cores – a boa fortuna e a má – e está rodeada por duas senhoras (uma, visivelmente, se trata de uma monja). A da esquerda lhe oferece uma flor. A Fortuna porta um vaso vermelho, provavelmente com os remédios descritos no texto por Petrarca. Enyego d’Àvalos manteve a tradição de se valer da imagem da Roda da Fortuna para a abertura de Curial e Guelfa.

IV.2. A Astronomia

Vejamos agora as alusões astronômicas do Proêmio do Livro II:

Aquest segon libre, per la major part, és de cavalleria, usada en diverses maneres; e és atribuïda a Mars, lo qual, segons la opinió antiga e poètics ficcions, fonch déu de batalles. Aquest Mars és planeta calt, e és-li atribuïda una virtut: que tota cosa a ell noÿble foragita. Mars, de sa pròpria natura, importa guerra, batalles, escàndels, falsedats, furts, secrets; importa granesa e valor d’ànimo, e fa emprendre coses terribles de batalles; dóna franquesa e virtut a sostenir les nafres; dóna tempre, e força, e leugeria de cors, e liberalidat, e cavalleria; importa muller. Fa lo seu cors en dos anys, e està en cascun signe sexanta jorns. La sua casa és en lo signe de Leó; dejús d’ell és lo signe de Escurpí e de Àries, e regna en lo signe de Scurpí. És de sa natura calt e sech, e és de color roja e resplandent, e ha un poch de negror. Tempera Jovis e Venus la sua malícia; los seus effectes són calts, e de sa natura produeix luxúria, encara que lo signe de Leó a açò.l conforta; e, segons Macrobi, la sua pròpria color és de foch, e la sua natura tota és enemigable e superba.

***

Em sua maior parte, este Livro Segundo pertence à cavalaria, que é praticada de diversas formas: ela é atribuída a Marte, o qual, segundo antiga opinião e poéticas ficções, foi o deus das batalhas. Esse Marte é um planeta quente, e lhe é atribuída uma virtude: a de expulsar tudo o que lhe incomoda. Marte, por sua própria natureza, causa as guerras, as batalhas, os escândalos, as falsidades, os furtos, as intrigas; importam-lhe a grandeza, o valor de ânimo, o empreender coisas terríveis nas batalhas; dá generosidade e virtude para suportar as feridas; dá temperança, força e agilidade corporal, além de liberalidade, mas, sobretudo, cavalaria; chama a atenção das mulheres. Faz sua rotação em dois anos e permanece sessenta dias em cada signo. Sua casa é o signo de Leão, sob ele estão os signos de Escorpião e Áries, e reina no signo de Escorpião. Sua natureza é quente e seca, sua cor vermelha e resplandecente, além de ter um pouco das trevas. Júpiter e Vênus temperam sua malícia, seus efeitos são quentes, a luxúria é produzida de sua natureza, embora o signo de Leão a anime e, de acordo com Macróbio, sua cor própria é a do fogo e sua natureza é completamente inamistosa e soberba (os grifos são meus).

Nesse aspecto, Enyego d’Àvalos não inova, mas preserva a tradição. Além do fato de a Astronomia ser a última (e importantíssima) disciplina ensinada no Quadrivium das sete Artes Liberais (Costa 2016: 140), o século XV manteve a percepção existencial de que tudo o que ocorria no mundo sublunar sofria influência do movimento dos astros do mundo supralunar. Inclusive os corpos humanos!22

Para me ater exclusivamente ao âmbito da cultura medieval catalã, Ramon Llull dedicou um de suas obras à Astronomia, uma das sete Artes Liberais – claro que a seu modo, inserindo-a em sua Arte.23

IV.3. As Musas e as Piéridas

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O desafio das Piéridas (c.1520), de Rosso Fiorentino (1494-1540). Óleo sobre madeira transferido para tela, 31 x 63 cm, Musée du Louvre, Paris (public domain).

Mas, como disse, o clímax mitológico ocorre no Proêmio do Livro III – cultismo pouquíssimo corrente nos textos medievais em catalão.24 D’Àvalos recorre ao belíssimo mito da disputa entre as Musas e as Piérides:

En aquest tercer libre, per ço com fa menció de les Muses, deus pressupondre que los poetes han fingit nou Muses, en forma de nou dones o donzelles, habitants en Monte Parnaso e colents Elicona; e foren per ells appellades Calíope, Clio, Euterpe, Talia, Melipomene, Pol·límia, Èrato, Tersícore e Urània. E sobre aquestes fabuliza Ovidi, en lo quint libre, que altres nou germanes, nades en Grècia, de Píreus, pare seu, e de mare Evipta –e per ço són dites Pièrides–, aprengueren sonar e cantar maravellosament, e per rahó de aquella delectable sciència que és apellada música, de la qual per venture elles no eren tan grans maestres com pensàvan, devengueren molt superbes e vanaglorioses, en tant que, menyspreant totes les altres persones expertes en aquella art, se volgueren no solament parificar ab les Muses, ans encara subpeditar-les. E axí, oÿdores per los déus, a batalla o disputa vengueren en aquesta manera: que les dites Muses diputaren una d’elles, e les Pièrides, semblantment, altra de lurs germanes, les quals disputassen, e aquella que mills ho faria guanyàs per a la sua part la victòria. Per què, oÿdes les parts, fonch judgat Calíope haver cantat e sonat mills que la altra que les Pièrides havien elegida. Tantost, les dites Pièrides foren per los déus convertides en piques, que en comun lenguatge cathalà són dites garces, e són ocells garruladors, e aprenen parlar en totes lengües ço que ·ls mostren, emperò no saben ni entenen ço que dien.

E, quant a l’integument d’aquesta faula, diu Fulgenci que nou Muses són dites nou consonàncies de la veu humana, e les nou Pièrides, nou dissonàncies. E diu Pàpias que aquestes Muses són dites filles de Jovis e de Juno, per rahó com tota veu de vent e de aygua se fa. E Musa és dita a moys, grech, que és aygua, perquè tot so musical de ayre e de aygua s’engendra, car no pot alguna veu sonar sens vent e sens aygua e lurs moviments; e axí, de aquestes dues coses totes les forces del cant e de la modulació vénen.

***

Neste terceiro livro, como é feita menção às Musas, tu deves pressupor que os poetas imaginaram nove Musas na forma de nove senhoras ou donzelas, habitantes do Monte Parnaso e veneradas em Helicão, por eles chamadas Calíope, Clio, Euterpe, Tália, Melpômene, Polímnia, Erato, Terpsícore e Urânia. Ovídio fabula sobre elas em seu Livro Quinto, no qual outras nove irmãs nascidas na Grécia, de Píero, seu pai, e de sua mãe Evipe – e por isso são chamadas Piéridas – aprenderam a tocar e a cantar maravilhosamente, e por razão dessa deleitável ciência chamada Música, na qual elas não eram tão grandes mestras como pensavam, tornaram-se muito soberbas e vangloriosas, tanto que menosprezaram todas as outras pessoas peritas naquela arte, e quiseram não só comparar-se às Musas como ultrapassá-las. E assim, quando isso chegou aos ouvidos dos deuses, a batalha ou disputa deu-se da seguinte maneira: as ditas Musas escolheriam uma delas e, da mesma forma, as Piéridas uma das irmãs, e ambas disputariam. Aquela que se saísse melhor obteria a vitória para as suas. Assim, ouvidas as partes, foi decidido que Calíope havia cantado e tocado melhor do que aquela que as Piéridas haviam escolhido. Imediatamente as Piéridas foram transformadas pelos deuses em pegas, que na linguagem comum catalã são chamadas garças, aves gorjeadoras que aprendem a falar em todas as línguas que lhes ensinam, mas não sabem nem entendem o que dizem.

Quanto ao significado dessa fábula, diz Fulgêncio que as nove Musas correspondem às nove consonâncias da voz humana, e as nove Piéridas às nove dissonâncias. Papias diz que estas Musas se consideram filhas de Júpiter e de Juno, pois toda voz se faz com vento e água, já que a palavra Musa vem do grego moys, que significa água, porque todo som musical se engendra do ar e da água e nenhuma voz pode soar sem vento, água, e seus movimentos. Assim, dessas duas coisas procedem todas as forças do canto e da modulação (os grifos são meus).

As Musas (μοῦσαι) habitavam o monte Helicão, e ali estavam sob a dependência do deus Apolo, que dirigia seus cantos junto à sagrada e poética Fonte de Hipocrene. Representadas como virgens de comprovada castidade, são elas: Calíope, a da bela voz, enaltecida pelos poetas, que a ela se dirigiam à procura de inspiração; Clio, quem proclamava a glória dos guerreiros e as conquistas de um povo; Euterpe, musa que presidia a Música e criadora da flauta e de outros instrumentos de sopro; Tália, quem presidia a Comédia e a Poesia; a trágica Melpômene; a sacra Polímnia; a amabilíssima Erato, e a celeste Urânia.25

As Nove Musas

Musa

Significado

Arte

Atributo

Calíope

A da bela voz

Poesia elegíaca

Tabuleta, buril e lira

Clio

A que oferece a glória, a proclamadora

Épica e, posteriormente, História

Pergaminho, corneta, láurea

Erato

A amável

Poesia amorosa e, posteriormente, Geometria e Mimo (teatro com mímica)

Cítara

Euterpe

A muito prazerosa, doadora de prazeres

Poesia monódica e aulética

Aulo e flauta de Pã

Melpômene

A melodiosa

Tragédia

Máscara trágica, espada e clava

Polímnia

A de muitos hinos

Dança e do canto sagrado

Véu, cachos

Tália

A festiva, que faz brotar flores

Comédia

Máscara cômica, cajado de pastor, hera (planta)

Terpsícore

A que agrada com sua dança, a rodopiante

Poesia coral e dança

Lira e palheta

Urânia

A celestial

Poesia didascálica e, posteriormente, Astronomia

Globo celeste e compasso

O mito das Musas narrado por Enyego d’Àvalos em Curial e Guelfa foi registrado pela primeira vez por Platão (c.428-348 a.C.) – filósofo que sempre respeitou a tradição mitológica e um dos primeiros a se valer do termo teologia26 – mas sem as Piéridas.27 Em sua obra Fedro, o filósofo conta que
...antigamente as cigarras eram gente, antes de haverem nascido as Musas. Mas, com o aparecimento das Musas, tendo surgido o canto, de tal modo alguns homens ficaram embevecidos ante o novo deleite, que não faziam outra coisa senão cantar, e esquecidos de comer e de beber, morreram sem dar por isso. Dessa gente é que provém a raça das cigarras; elas receberam das Musas o privilégio de não se alimentarem e de cantarem sem comer nem beber desde o nascimento até à morte, para depois irem contar às Musas quem as cultua na terra e como cada uma é particularmente venerada.
 
A Terpsícore dizem o nome dos que a honraram nos coros, o que a deixa benevolente para com eles; a Érato, os que a cultuam em seus poemas amorosos, e assim com todas, conforme o culto peculiar a cada uma. À mais antiga delas, Calíope, e à que se lhe segue, Urânia, identificam quem passa a vida a filosofar e aprecia a música que lhes é própria. São essas as Musas que se ocupam particularmente com os discursos divinos e humanos e as de voz mais agradável. Por tais razões é que não devemos dormir ao meio-dia, mas entretermo-nos a conversar.” (Fedro, 259c-d) (os grifos são meus).

A citação alegórica às Musas em obras literárias marcou de tal modo a tradição literária do período que, pouco depois da morte de Enyego d’Àvalos, Andrea Mantegna (c. 1431-1506), pintor paduano do Quattrocento, imortalizou sua envolvente e harmoniosa dança ao som da harpa e do canto de Apolo no quadro Parnaso (imagem 5).

Por sua vez, a disputa entre as Musas e as Piérides surgiu maravilhosamente nas Metamorfoses (8 d. C.) de Ovídio (43 a.C. - 17 d.C.), obra que, a partir do século XII e durante todo o Renascimento italiano e a Idade Moderna, foi o mais completo guia dos poetas, literatos, pintores, escultores, músicos e dramaturgos para os mitos greco-romanos.28

Muito possivelmente Enyego d’Àvalos foi leitor das Metamorfoses através das Genealogias de Boccacio (1313-1375)29 ou algum outro texto intermediário30 – assim como o foi de Macróbio (fl. 400), esse sim, literalmente citado no Proêmio do Livro II, autor do Comentário ao Sonho de Cipião (séc. V), obra essencial que, juntamente com A Consolação da Filosofia, de Boécio (c. 480-524), consolidou a alegoria como a melhor forma de expressão intelectual para manifestar as sensibilidades textuais e imagéticas dos letrados durante séculos!31

Em seu Livro V, o poeta romano narrou como Minerva (a Tritônia) visitou as Musas no monte Helicão – na mitologia grega, Helicão era dedicado a Apolo. Sua parte oriental estava consagrada às Musas, com as fontes sagradas de Aganipe e Hipocrene (surgidas de duas patadas do cavalo Pégaso). Acreditava-se que as Musas ali se reuniam periodicamente para cantar e dançar. Eram realizados jogos dedicados a elas, e uma escola de poetas gregos foi fundada ao pé do monte (depois residência de Hesíodo [fl. 750-650 a. C.]).

Nas Metamorfoses, Urânia, Musa que presidia a Astronomia e, originalmente a poesia didascálica (poema didático com algum tipo de ensinamento), recebeu calorosamente no Parnaso a visita de Minerva, deusa triádica do panteão etrusco (juntamente com Júpiter e Juno)32, eterna virgem da Sabedoria – mas também das artes, da estratégia, da justiça e muitas outras competências. Enquanto conversavam, nove pássaros (pegas) cantavam um lamento. Urânia então contou à deusa a história daquelas aves, antes as orgulhosas e desafiantes Piéridas, derrotadas em uma disputa com as Musas e transformadas em pegas, “algazarra dos bosques (...) que ainda hoje se mantêm nestes seres alados a antiga facúndia, a ruidosa garrulice e a ânsia incontrolável de falar”.33

Imagem 5

Parnaso (1497), de Andrea Mantegna (c. 1431-1506). Têmpera e ouro sobre tela, 159 x 192 cm, Louvre. Marte e Vênus estão em um arco natural de rochas diante de um móvel (em azul, branco e vermelho). Ao fundo, uma vegetação com frutas na parte direita (masculina) e apenas uma na parte esquerda (feminina), o que simboliza a fecundação. A postura de Vênus deriva da escultura antiga. Marte e Vênus são acompanhados por Anteros (um dos quatro filhos alados de Afrodite, deus do amor correspondido e vingador do amor não correspondido). Com um arco e uma zarabatana ele aponta para os órgãos genitais de Vulcano, marido de Vênus, retratado em sua oficina (uma gruta). Atrás dele, cachos de uva, talvez um símbolo da intemperança do bêbado. Abaixo, à esquerda, Apolo toca a lira. As nove Musas dançam, alegoria da harmonia universal. Seu canto poderia gerar catástrofes, simbolizadas pelas montanhas em ruínas no canto superior esquerdo. Tais desastres poderiam ser evitados pelo casco de Pégaso (à direita). O toque de seu casco também poderia alimentar as quedas do Monte Helicão, ao fundo. Ao lado de Pégaso está Mercúrio, com seu tradicional chapéu alado, o caduceu (símbolo da negociação) e os sapatos alados de mensageiro. Está presente para proteger os dois adúlteros.

Assim como Ovídio, do mesmo modo Enyego d’Àvalos nomeou as aves: pegas (piques, no singular, pica)34, que “...na linguagem comum catalã são chamadas garças, aves gorjeadoras que aprendem a falar em todas as línguas que lhes ensinam, mas não sabem nem entendem o que dizem” (“...en comun lenguatge cathalà són dites garces, e són ocells garruladors, e aprenen parlar en totes lengües ço que ·ls mostren, emperò no saben ni entenen ço que dien”). E também as adjetivou como garruladors – exatamente como o poeta romano (garrulitas!).

Trinta e seis anos após a morte de d’Àvalos, Rosso Fiorentino (1494-1540), pintor maneirista florentino, coroou artisticamente o duelo entra as Musas e as Piérides na pintura O desafio das Piérides (imagem 2).

IV.4. Píramo e Tisbe

Imagem 6

Píramo e Tisbe ao lado de uma fonte. Iluminura do Ovídio moralizado (séc. XV). Países Baixos, folio 55r. Royal MS 17 E IV (public domain).

Logo no início da novela (I.26, A paixão de Curial e Láquesis), há um momento em que Láquesis, uma das mulheres que conduz todo o enredo do elenco masculino – e não é por acaso que seu nome evoca uma das Parcas, aquela que, na mitologia, estabelecia a vida que cabia a cada um – desfalece após beijar Curial e dele se despedir. Sua mãe, desesperada, mas também desconfiada de que sua filha estivesse simplesmente apaixonada, inteligentemente gritou: “– Láquesis, olha Curial!”.

Per què Làquesis, al nom de Curial, no menys que Píramus al nom de Tisbes, obrí los hulls e, obrint los braços, alargà lo coll; e sa mare besà-la moltes vegades. Mas, com Làquesis se trobàs enganada e no sabés cobrir la sua passió, dix: “–¿On és?”.

***

Ao ouvir o nome de Curial, Láquesis, não menos que Píramo ao ouvir o nome de Tisbe, abriu os olhos e, estendendo os braços, levantou a cabeça; sua mãe beijou-a várias vezes. Mas como Láquesis estava iludida e não conseguia disfarçar a sua paixão, disse: “– Onde ele está?”.

D’Àvalos relaciona o despertar de Láquesis ao ouvir o nome de seu amado à paixão de Píramo por Tisbe, dois lendários amantes da mitologia greco-romana, citados pela primeira vez por Higino (64-17 a.C.) em suas Fábulas35, e, posteriormente, nas Metamorfoses de Ovídio (43 a.C-17 d.C.).36 Conforme já nos ensinou Ernst Robert Curtius (1886-1956), Higino foi muito citado na Idade Média por suas fábulas a respeito das constelações, e Ovídio, seu amigo, tornou-se uma verdadeira enciclopédia da mitologia clássica para os eruditos medievais.37

Aquele mito sobre o amor, oriundo da Babilônia, conta que os belíssimos Píramo e Tisbe viviam sob o reinado de Semíramis, e foram proibidos de se casarem por suas famílias – curioso notar que é provável que Shakespeare (1564-1616) tenha se inspirado nessa lenda recontada por Ovídio para compor tanto sua tragédia Romeu e Julieta (c. 1591-1595) quanto sua comédia Sonho de uma noite de verão (c. 1595-1596)38, além de Boccacio (De mulieribus claris, 1374) e Chaucer (c. 1340-1400).39 Por isso, a forma com que, em Curial, Láquesis abre os olhos, não é menos delicadamente apaixonada que o olhar de Píramo para com Tisbe! Sem uma nota explicativa ao final da novela, dificilmente o leitor atual compreenderia a expressão de Láquesis à procura de seu amado.

Píramo e Tisbe são novamente citados no final do Livro III (III.95, Vênus surge em sonho a Guelfa e lhe mostra Cupido, que a fere com uma flecha de ouro), quando d’Àvalos cita uma maravilhosa penca de apaixonados, os casais de enamorados mais famosos do mundo poético, demonstrando assim sua paixão pela mitologia grega:40

E puys que la dita dona fonch ferida, vírats la gran festa e lo gran danar: e de tant pres bé a la Güelfae a la abadessa, que tots los que veyen conexien. Aquí vírats Tisbes e Píramus fer-se maravellosa festa, Flors e Blancaflor, Tristany e Ysolda, Lançalot e Genebra, Frondino e Brisona, Amadís e Uriana, Phedra ab Ypòlit, Achil·les tot sol, menaçant son fill Pirro, Tròyol e Briseyda, París e Viana, e molts altres, dels quals, per no ésser lonch, me callaré.

***

Depois que aquela senhora foi ferida, vós veríeis uma grande festa e um grande baile. Guelfa e a abadessa estavam muito à vontade, pois conheciam a todos que viam. Ali veríeis Tisbe e Píramo trocarem deslumbrantes afagos, Flores e Brancaflor, Tristão e Isolda, Lancelot e Guinevere, Frondino e Brisona, Amadis e Uriana, Fedra com Hipólito, Aquiles, desacompanhado, conduzindo a seu filho Pirro, Troilo e Briseida, Paris e Viana, e muitos outros, sobre os quais, para não me alongar, me calarei.

Trata-se de uma longa (e amorosíssima) referência metaliterária41, espécie de clímax mitológico-amoroso de Curial e Guelfa.

Conclusão: e, por fim, as mulheres!

Além de negociar, mas o mínimo possível, a busca pela fidelidade à intenção do texto, confiei em minha percepção auditiva (fui músico profissional durante vinte anos!) para tentar manter a elegância e o sentido rítmico da ordem das palavras na narrativa – advertências precisas de Umberto Eco para o trabalho de tradução. Em minha proposta de verter a novela de cavalaria Curial e Guelfa para o português, também procurei preservar o refinado e opulento mundo cortesão quatrocentista, mundo-limite portador da nascente, bela, porém efêmera, estética moderna que transcorre ao longo de seus três livros.

Ler Curial e Guelfa atenua a terrível sombra que a historiografia projetou sobre esse período, desde a notável Barbara Tuchmann (1912-1989) e seu Espelho Distante42 até Henri Pirenne (1862-1935)43 e Luis Suárez Fernández (1924-)44, mas principalmente pela erudita porém opressiva tradição marxista, que só viu crise após crise (como, por exemplo, nas obras de A. H. de Oliveira Marques [1933-2007]45) e Guy Bois (1934-2019).46

A imagem tenebrosa da vida dos séculos XIV-XV exposta por essa tradição historiográfica não poderia ser mais contrastante com a cortesia, a leveza e a delicadeza da novela. Ao ler Curial, percebe-se que era a vida uma obra de arte, não o Estado, como pensava Jacob Burckhardt (1818-1897).47 E embora a novela seja muito mais fruto de suas influências de além-Pireneus (francesa, italiana e occitana) do que propriamente ibérica – não nos esqueçamos que a construção da Espanha foi um processo pluralíssimo! – ela é hispânica, uma de suas mais originais e diversificadas vertentes, a da Coroa de Aragão, mas hispânica.

Não é à toa que esse período é considerado o Grande Século da História da Espanha, o centro do tempo histórico de sua cultura, a essência do resplendor de sua amplitude cósmica, como frisou o notável historiador José Enrique Ruiz-Domènec (1948-).48

Curial e Guelfa expressa muito bem esse extraordinário e amoroso sentido poético da vida percebido pelos homens e mulheres de então. Ah, as mulheres! Elas são dinâmicas e incisivas protagonistas da novela, pilares fundamentais da trama narrativa49, algo bem de acordo e em sintonia com o tom de sua época – afinal, desde o Gótico, mas sobretudo desde o início do Renascimento, tanto nas iluminuras quanto nos vitrais e esculturas, a mãe de Deus, feliz, passou a sorrir: sorri para seu Filho, também alegre, brincalhão e cheio de vida.50 Curial faz um belo eco literário à essa (lenta, porém contínua) ascensão feminina ocorrida durante a Idade Média51, literariamente iniciada com Maria da França (fl. 1160-1215) e duas dezenas de trovadoras (trobairitz) – como, por exemplo, Azalais de Porcairagues (séc. XII), Condessa do Dia (1140-1180) e Castelloza (fl. séc. XIII)52 – e coroada com Cristina de Pisan (1364-1430) e sua obra A Cidade das Damas (1405).53

Esse marcante protagonismo feminino em Curial – que, aliás, deveria ser Guelfa e Curial, e não Curial e Guelfa (não é Guelfa quem patrocina a educação de Curial e aguarda seu desabrochar para concretizar seu amor?) – é ainda mais notável se levarmos em conta o ambiente cultural de seu desabrochar: o cosmopolita cadinho linguístico e europeu (no sentido mais generoso e historicamente acolhedor da palavra) que foi o da mediterrânea e ensolarada Coroa de Aragão.

Ficarei imensamente feliz se, para os leitores de língua portuguesa, especialmente os da Terra brasilis do Atlas Miller (c. 1519) de Lopo Homem (c. 1497-1532), eu tiver conseguido manter em minha tradução um pouco do devaneio estético que senti ao ler essa que é, nas palavras de Antoni Ferrando i Francès (1947-), uma joia da literatura europeia tardo-medieval e, particularmente, da narrativa catalã.54 Desfrutem, pois, de Curial e Guelfa!

 

***

 

Notas

  • 1. BADIA, Lola. “El Curial e Güelfa: un clásico anónimo para el canon europeo”. In: SIMÓ, Meritxell (coord.). “Prenga xascú ço qui millor li és de mon dit”. Creació, recepció i representació de la literatura medieval. San Millán de la Cogolla: Cilengua, 2021.
  • 2. ECO, Umberto. Quase a mesma coisa. Experiências de tradução. São Paulo: Editora Record, 2007.
  • 3. DANTE ALIGUIERI. Convívio (trad. literal e notas de Carlos Eduardo de Soveral). Lisboa: Guimarães Editores, 1992, p. 44-45 (Livro I, VII)
  • 4. SCHLEIERMACHER, Friedrich. Sobre los diferentes métodos de traducir (trad. Valentín García Yebra), Madrid: Editorial Gredos,  2000.
  • 5. NOLLER, Jörg. “Humboldts Begriff des Geistes”. In: ALBER, Karl. Die Aktualität des Geistes. Klassische Positionen nach Kant und ihre Relevanz in der Moderne, 2018, p. 126-138.
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  • 8. FLETCHER, Richard. Em busca de El Cid, São Paulo, Unesp, 2002.
  • 9. SOLER, Abel. La cort napolitana d’Alfons el Magnànim: el context de Curial e Güelfa (3 vol.). Universitat de València: Institució Alfons el Magnànim-CVEI, Institut d’Estudis Catalans, 2017.
  • 10. BUTIÑÁ JIMÉNEZ, Julia. Tras los orígenes del Humanismo: El «Curial e Güelfa». Madrid: UNED, 2000.
  • 11. COSTA, Ricardo da; VESCOVI, Letícia Fantin. “Ainda suspira a última flor do Lácio?”. InCaplletra 58, 2015, p. 29-54.
  • 12. LUÍS DE CAMÕES. Os Lusíadas (leitura, prefácio e notas de Álvaro Júlio da Costa Pimpão). Instituto Camões, 2000.
  • 13. MAGALHÃES, Joaquim Romero (coord.). História de Portugal. Volume III. No Alvorecer da Modernidade (1480-1620). Lisboa: Editorial Estampa, 1993.
  • 14. HOBSBAWM, Eric J. A Era dos Impérios, 1875-1914. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
  • 15. COSTA, Ricardo da. “Os novos desafios do Fim da História”. InRevista Farol n. 13, 2015, p. 157-166.
  • 16. HUIZINGA, Johan. O Outono da Idade Média. São Paulo: Cosac Naif, 2010.
  • 17. Duby, Georges. “Los feudales”. InObras selectas de Georges Duby (presentación y compilación de Beatriz Rojas). México: Fondo de Cultura Económica, 1999.
  • 18. MACHADO, Luiz Raul. Chifre em cabeça de cavalo, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2007.
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  • 20. FRANCESCO PETRARCA. Cartas a los más ilustres varones de la Antigüedad (introd. y trad.: Andrés Ortega Garrido). Sevilla: Editorial Renacimiento, Ediciones Espuela de Plata, 2014.
  • 21. COSTA, Ricardo da; LEMKE, Wilson Coimbra. “Roda da Fortuna nos Dictats de Ausiàs March (c. 1397-1439)”. InSCRIPTA núm. 20, 2022, p. 27-51.
  • 22. COSTA, Ricardo da. “Guerra nas Estrelas. A metáfora artística da sociedade medieval no macrocosmo astrológico do Homem Zodiacal”. In: ZIERER, Adriana; VIEIRA, Ana Livia B. (orgs). História Antiga e Medieval. Conflitos Sociais, Guerras e Relações de Gênero: representações e violência. São Luís: EDUEMA, 2017, p. 375-398.
  • 23. RAMON LLULL. Tractat d’Astronomía / Tratado de Astronomia (trad. e notas: Ricardo da Costa). Madrid: Editora Palas Atenea, 2016.
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  • 26. COSTA, Ricardo da. “As raízes clássicas da transcendência medieval”. In: NOGUEIRA, Maria Simone Marinho (org.). Contemplatio. Ensaios de Filosofia Medieval. Campina Grande: EDUEPB, 2013, p. 19-42.
  • 27. PLATÃO. Fedro (ed. bilíngue. trad.: Carlos Alberto Nunes). Belém: Ed. UFPA, 2011.
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  • 30. MARTINES, Josep. “Aproximació a les novetats lèxiques i semàntiques del Curial e Güelfa”. In: FRANCÉS, Antoni Ferrando (ed.). Estudis lingüístics i culturals sobre Curial e Güelfa, novel·la cavalleresca anònima del segle XV en llengua catalana. Amsterdam / Philadelphia: John Benjamins Publishing Company, volum 2, 2012, p. 987.
  • 31. COSTA, Ricardo da; SILVA, Matheus Corassa da. “A Alegoria. Do mundo clássico ao Barroco”. In: OSWALDO IBARRA, César; LÉRTORA MENDONZA, Celina (coords.). XVIII Congreso Latinoamericano de Filosofía Medieval – Respondiendo a los Retos del Siglo XXI desde la Filosofía Medieval. Actas. Buenos Aires: Ediciones RLFM, p. 87-96.
  • 32. VILLALBA I VARNEDA, Pere. Roma a través dels historiadors clàssics. Bellaterra: Universitat Autònoma de Barcelona, 1996, p. 28.
  • 33. OVÍDIO. Metamorfoses (ed. bilíngue. Trad., introd. e notas: Domingos Lucas Dias). São Paulo: Editora 34, 2021.
  • 34. MARTINES, Josep. “Aproximació a les novetats lèxiques i semàntiques del Curial e Güelfa”. In: FRANCÉS, Antoni Ferrando (ed.). Estudis lingüístics i culturals sobre Curial e Güelfa, novel·la cavalleresca anònima del segle XV en llengua catalana. Amsterdam / Philadelphia: John Benjamins Publishing Company, volum 2, 2012, p. 982-985.
  • 35. HIGINO. Fábulas (introd. y trad. de Javier del Hoyo y José Miguel García Ruiz; notas e índices de Javier del Hoyo). Madrid: Editorial Gredos, 2009.
  • 36. OVÍDIO. Metamorfoses (ed. bilíngue. Trad., introd. e notas: Domingos Lucas Dias). São Paulo: Editora 34, 2021.
  • 37. CURTIUS, Ernest Robert. Literatura Européia e Idade Média Latina, São Paulo, HUCITEC, 1996.
  • 38. PRUNSTER, Nicole. Romeo and Juliet Before Shakespeare: Four Early Stories of Star-crossed Love. Toronto: Centre for Reformation and Renaissance Studies, 2000.
  • 39. CHAUCER. “The Legend of Good Women”. In: BENSON, Larry D. et al (eds.). The Riverside Chaucer. Houghton Mifflin Harcourt, 1987, p. 587-630.
  • 40. BABBI, Anna Maria. “Il Curial e Güelfa e i romanzi francesi del XV secolo”. In: FRANCÉS, Antoni Ferrando (ed.). Estudis lingüístics i culturals sobre Curial e Güelfa, novel·la cavalleresca anònima del segle XV en llengua catalana. Amsterdam / Philadelphia: John Benjamins Publishing Company, volum 1, 2012, p. 142.
  • 41. TURUL, Albert & RAMÍREZ, Esperança. “Tipologia dels noms propis en el Curial e Güelfa”. In: FRANCÉS, Antoni Ferrando (ed.). Estudis lingüístics i culturals sobre Curial e Güelfa, novel·la cavalleresca anònima del segle XV en llengua catalana. Amsterdam / Philadelphia: John Benjamins Publishing Company, volum 2, 2012, p. 1059.
  • 42. TUCHMANN, Barbara. A Prática da História. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1991.
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  • 44. SUÁREZ FERNÁNDEZ, Luis. Historia Universal VI. De la crisis del siglo XIV a la Reforma. Pamplona: Ediciones Universidad de Navarra, 1980.
     
  • 45. OLIVEIRA MARQUES, A. H. de. Portugal na crise dos séculos XIV e XV. Lisboa: Editorial Presença, 1987.
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  • 49. MEZZA, Mabel. “La ‘descriptio puellae’ en el Curial e Güelfa”. InRevista Valenciana de Filologia 11 (2018), 2018, p. 109-140.
  • 50. KING, Margaret L. “A Mulher Renascentista”. In: GARIN, Eugenio (dir.). O Homem Renascentista. Lisboa: Editorial Presença, 1991, p. 193.
  • 51. COSTA, Ricardo da. “Mulheres na Idade Média”. In: CAMPAGNOLO, Ana Caroline (org.). Guia de bolso contra mentiras feministas. Campinas, SP: Vide Editorial, 2021, p. 33-39.
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  • 53. CRISTINA DE PIZAN. La Ciudad de las Damas (edición a cargo de Marie-José Lemarchand). Madrid: Ediciones Siruela, 2000.
  • 54. FERRANDO, Antoni. “Introducció”. InCurial e Güelfa (introd. et édition par Antoni Ferrando). Toulouse: ANACHARSIS, 2007, p. 5.

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